2 | Exploração
Ao chegar a uma localização aleatória do globo, Lírio percebeu que as outras estações tinham razão: a sua roupa era desadequada àquele novo século. Assim, depois de risadas e olhares estranhos por parte de quem o via passar, o espírito da Primavera encontrou um sítio recôndito e sem movimento para, estalando de novo os dedos, atualizar a sua indumentária. As calças de ganga justas, o hoddie cor de rosa, o gorro e os sapatos com plataforma que conjurou não faziam nada para o aquecer ou arrefecer, já que o novo corpo humano de Lírio era incapaz de sentir diferenças de temperatura. Porém, as peças assentavam-lhe bem e ajudavam-no a misturar-se entre os humanos.
Depois, Lírio partiu à aventura.
Apesar de ter visitado a Terra algumas vezes entretanto, o mundo tinha mudado muito desde a última vez que ele tivera oportunidade de interagir com o plano físico. Primeiro, havia mais coisas para ver e para fazer. As cidades tinham crescido e ficado modernas, cheias de vida, sons e cores. A mobilidade era mais eficiente e rápida, à distância de um bilhete de transporte, e abundavam novas experiências gastronómicas à espera de serem desfrutadas ou atividades lúdicas para todos os gostos.
Segundo, as próprias pessoas mudaram. A atmosfera da sociedade alterou-se nos últimos séculos, levando a algo paradoxalmente dinâmico e solitário. Por todo o lado se encontrava gente, conversas e gargalhadas. Talvez houvesse mais indiferença, irritação e cansaço no ar, mas havia mais paz e abertura para o que é diferente e inovador.
Lírio não tinha passado ainda muitos minutos nesta "nova" Terra para perceber que, de todos aqueles que tinha vivenciado, este era o seu século favorito.
Enquanto turistava pelo mundo, saltando de país em país e cidade em cidade como uma criança a transpor uma pequena poça de água no seu caminho, a Primavera alternava hemisférios. Em ambas as metades, absorvia a evolução do Homem e da História que era sua testemunha, de uma maneira que a sua forma etérea não lhe permitia experienciar. Porém, enquanto no sul aproveitava para espalhar um pouco da sua essência, apagando os resquícios do trabalho de Polaris, no norte perdia-se nas maravilhas do trabalho de Bosco, o espírito do Outono.
Era para ele admirável como Bosco geria a Natureza, mesmo com a dificuldade que as alterações climáticas acarretavam. Mesmo quando subtis, as mudanças necessárias estavam presentes, encaminhando todo um ciclo para o seu fim com a mesma mestria e delicadeza das grandes obras clássicas de música que Lírio tantas vezes ouvira nos séculos passados. Mas mesmo que o hemisfério norte estivesse envolvido pelo poder do espírito, os sinais não eram iguais em todos os locais. Cada recanto do planeta azul beijado por Bosco tinha os seus próprios sintomas de Outono, que Lírio teve o privilégio de testemunhar graças ao seu mágico estalar de dedos.
Felizmente para ele, graças à energia do cometa, não lhe era difícil principiar os sintomas de primavera no hemisfério sul enquanto admirava todo aquele espetáculo.
Pode dizer-se que a Primavera, ainda que na forma humana, correu meio mundo num só dia, aproveitando muitas das coisas boas que a modernidade tem para oferecer. Mas o equinócio de outono estava a chegar ao fim e, com ele, a experiência mundana de Lírio. Por isso, era chegada a altura de disfrutar de um prazer que nunca mudava: admirar o céu noturno.
A Terra, e tudo à sua superfície, sofria alterações constantes. O firmamento, por seu turno, era bastante estável e familiar. Havia a morte de estrelas e a rotação dos astros que alteravam as constelações visíveis a partir do solo, mas nada disso era estranho para o espírito da Primavera, que passava mais tempo entre as estrelas do que no planeta azul.
Lírio parou, à semelhança da sua primeira aparição naquele dia, numa localização aleatória. Depois inclinou a cabeça para trás, fitando o céu. A copa das árvores obstruía-lhe a visão.
Olhando em volta, a Primavera analisou o parque urbano onde se tinha materializado. Regra geral, as cidades não permitiam uma boa observação das estrelas, mas Lírio estava determinado em fazer uma comparação entre o que era capaz de identificar numa cidade, numa qualquer aldeia remota, no topo de uma montanha e num deserto. As diferenças com certeza o deixariam entretido por muito tempo.
Lírio afastou-se da árvore que o escudava do céu. Contudo, o seu olhar não se levantou muito acima do nível do solo. As estrelas eram o seu fascínio mas, naquela noite, algo diferente tinha despertado a sua curiosidade.
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