× capítulo 04 ×

Uma das coisas mais dolorosas para quem já perdeu praticamente tudo era ser lembrado que ainda tinha algo a perder e mais doloroso ainda quando o que tomou como garantido é ameaçado por algo fora do seu controle.

Seonghwa assistiu sua mãe morrer lentamente, sofrendo com uma doença cruel e covarde que a matou aos poucos. Assistiu seu pai afundar em dívidas para tentar custear o tratamento e falhar porque quando ela finalmente foi levada para ser tratada era tarde demais. Assistiu o homem que ele admirou a vida inteira e que jurou cuidar dele enquanto ainda respirasse sucumbir ao desespero. Assistiu quando ele o deixou para trás com palavras que pediam perdão por o estar abandonando, palavras essas que não significavam nada quando a decisão de partir já estava tomada. Assistiu sua madrinha aprender a cuidar e se importar com ele, só para assisti-la morrer também depois de ensiná-lo sobre a vida e tudo que podia no tempo que estiveram juntos. Seonghwa assistiu a si mesmo perdendo tantas coisas e pessoas que caiu no erro de achar que não tinha mais nada a perder. O universo fez questão de esfregar sua ingenuidade em sua cara.

Ele leu a carta várias vezes para ter certeza de que estava lendo certo e a cada vez o sentimento de desespero crescia mais dentro de si. Diante de seu silêncio, Yeosang olhou para ele e prontamente se levantou ao vê-lo pálido e suas mãos tremendo levemente diante da bomba que caiu em seu colo quando ele menos esperava.

Hyung? O que foi? — perguntou, escondendo as mãos dele entre as suas para tentar ajudá-lo a se acalmar. — O que tá acontecendo? O que a carta diz?

Seonghwa não queria falar em voz alta, já que falar apenas faria com que tudo se tornasse mais real, mas a preocupação na voz de Yeosang era tão intensa que ele se obrigou a explicar o que estava acontecendo.

— Meu estúdio.

Yeosang sentou ao lado de Seonghwa no sofá ainda segurando as mãos dele.

— O que tem o estúdio, hyung?

Seonghwa olhou para Yeosang, seus olhos tristes e pesados com o que estava em risco.

— Meu pai foi encontrado morto e as dívidas dele passaram pra mim. O estúdio vai ser usado como garantia e eu vou perdê-lo se não pagar em até seis meses.

O estúdio era a única lembrança material de sua madrinha além da tatuagem que carregava na própria pele, um presente quando ele chegou à maioridade. Seu apego ao lugar em que trabalhava ia além do profissional, era tão pessoal que Seonghwa não sabia como explicá-lo para qualquer outra pessoa.

Mas Yeosang entendia. Se existia uma pessoa no mundo que sabia o quanto o estúdio era importante para Seonghwa, essa pessoa era ele. Yeosang o conheceu depois que sua madrinha já havia falecido e no processo do luto, oferecendo os nano-alguma coisa que tinha inventado para ser usado em suas tatuagens, a fim de oferecer algo que nunca visto no mercado: tatuagens capazes de funcionar como chips. O negócio cresceu rápido, mesmo que por debaixo dos panos, e os dois se deram tão bem que a relação profissional evoluiu para uma amizade tão forte que Seonghwa foi a primeira pessoa para quem Yeosang revelou sua verdadeira identidade e seu rosto, o que, para um hacker, era uma demonstração e tanto de confiança, assim como Yeosang foi a primeira pessoa que Seonghwa chamou de família desde a perda de sua madrinha.

— O que eu vou fazer, Yeosang? A dívida é muito alta, eu não tenho como pagar em seis meses.

Seonghwa reconheceu a fragilidade em sua voz e não relutou quando Yeosang o puxou para descansar a cabeça em seu ombro, sabendo que ele precisava do apoio. Ele não fazia ideia de como conseguir uma quantia tão alta de dinheiro em tão pouco tempo. Seonghwa era um criminoso e estava com um problema enorme nas mãos que ele precisava resolver dentro da lei porque, infelizmente, ele não podia simplesmente pegar o estúdio e fugir.

Yeosang começou a passar a mãos pelos fios negros de Seonghwa, confortando-o da forma que podia.

— A gente vai dar um jeito, hyung. A gente sempre deu.

Seonghwa deixou que o conforto transmitido pelas palavras de Yeosang se espalhasse por seu corpo, fazendo com que ele derretesse contra o corpo ao seu lado enquanto ele acariciava suas costas em círculos e só então ele se permitiu processar a outra parte.

Seu pai estava morto.

A primeira notícia que recebeu depois de anos sem saber nada sobre o homem que sumiu no mundo e não olhou para trás era de que ele estava morto. Seonghwa tinha muitos questionamentos e nenhuma forma de obter as respostas. Seu pai se arrependeu em algum momento de tê-lo deixado para trás? Sentiu sua falta? Seonghwa nunca saberia se seu pai teve outra família, se seguiu em frente tão bem que nem lembrava que um dia abandonou um filho.

Seonghwa sentiu o ódio se expandir por seu corpo mais rápido do que ele podia controlar e seu corpo inteiro começou a tremer com a intensidade do sentimento. Que direito ele tinha de sumir da vida de Seonghwa como se não fosse nada e deixar os problemas que criou para ele? Que direito ele tinha de interferir em algo que lhe era tão importante? Não era justo, mas se tem uma coisa que Seonghwa aprendeu em seus anos de vida era que nada era. Justiça era um conceito que só se aplicava àqueles que podiam pagar por ela e pessoas como ele não tinham acesso.

Ele sentiu, então, seus olhos marejarem e as lágrimas escorrendo por seu rosto. Não era justo e Seonghwa não merecia nada disso, mas ele ainda teria que lidar com bagagens que não eram dele. Então ele se deixou chorar enquanto Yeosang o abraçava e dizia que eles iriam dar um jeito porque dar um jeito quando a situação parecia irreversível era o que eles faziam desde que entraram na vida um do outro.

⸻ 〤 ⸻

O dia já estava amanhecendo e Seonghwa podia dizer que ele dormiu pesado até demais. O cansaço acumulado dos últimos dias, mais a bomba que caiu em seu colo no dia anterior pesavam em seu corpo e ele se sentia incapaz de deixar a cama. Seus olhos, vermelhos e inchados pelo choro, estavam pesados e sua cabeça doía, mas ele se obrigou a levantar, encontrando Yeosang já trabalhando em algo em seu computador, provavelmente procurando por uma solução para a situação em que Seonghwa se encontrava.

Yeosang estava tão concentrado no que fazia que não percebeu a chegada de Seonghwa até sentir o toque dele em seu ombro, pulando levemente em sua cadeira com o susto.

— Desculpa. Eu não queria te assustar.

A voz de Seonghwa estava ríspida para seus próprios ouvidos e ele pegou um copo de água para aliviar a rispidez antes de se sentar no sofá, jogando a cabeça para trás no encosto depois de esvaziá-lo.

— Você não dormiu, dormiu? — perguntou a Yeosang, mesmo já sabendo a resposta.

Embora Seonghwa não tenha dormido da forma que deveria, ele sabia que Yeosang dormiria ainda menos porque ele não conseguia dormir enquanto o problema em suas mãos não estivesse resolvido. Era como ele funcionava e Seonghwa já precisou obrigá-lo a descansar vezes o suficiente para saber que daquela vez não seria diferente.

— Eu acho que eu sei o que a gente pode fazer — disse, ignorando a pergunta — é arriscado, eu sei que é, mas eu não acho que a gente tenha outras opções — concluiu Yeosang, hesitante.

— E o que seria?

Yeosang hesitou por mais um tempo antes de girar sua cadeira e encarar Seonghwa.

— Aurora.

Seonghwa o encarou por alguns segundos, tentando entender do que Yeosang estava falando, até se lembrar do rapaz que o procurou há algum tempo atrás, Aurora, lhe oferecendo uma vaga em uma equipe para um trabalho que, aparentemente, pagaria muito bem.

— É uma má ideia — respondeu de imediato. — É uma péssima ideia, Yeosang!

— Eu sei que é arriscado, hyung, mas eu passei a noite pesquisando sobre ele e eu descobri algumas coisas que podem servir de garantia.

Seonghwa sentiu o impulso de argumentar e vetar esse plano logo de cara, mas se controlou porque sabia que Yeosang jamais o colocaria em qualquer situação que pudesse lhe prejudicar se não fosse extremamente necessário ou se pudesse evitar.

— O que você descobriu? — perguntou, ao invés disso.

Yeosang sorriu de canto, um sorriso que Seonghwa conhecia bem até demais. Ele havia encontrado ouro.

— A identidade dele.

⸻ 〤 ⸻

Seonghwa sentiu suas mãos suando enquanto esperava por Aurora sentado no balcão do Dreamcatcher, assim como foi da primeira vez que eles se encontraram. Siyeon o observava de longe, franzindo a testa ao perceber a ansiedade mal disfarçada desde que ele entrara no bar em um horário que não era o normal para ele, mas não teve chance de se aproximar por conta do horário movimentado.

Impaciente, Seonghwa começou a bater o dedo indicador no balcão, sem conseguir controlar.

— Hyung, se acalma, vai dar tudo certo — disse Yeosang pelo fone escondido mais uma vez.

Seonghwa não respondeu verbalmente, mas acenou com a cabeça, sabendo que Yeosang o via pelas câmeras espalhadas pelo bar. Ele ainda achava que era uma má ideia, mas nenhum dos dois conseguiu bolar alguma coisa melhor, então eles decidiram pelo incerto. Era isso ou sair chantageando metade da cidade para conseguir o pagamento necessário e os dois sabiam que quanto maior o número de vítimas, maior a chance de serem pegos. Era um risco das duas formas, mas caso o trabalho de Aurora desse errado, eles tinham menos a perder do que se fossem descobertos pelas autoridades.

Yeosang fez uma pesquisa aprofundada em Aurora depois que Seonghwa finalmente decidiu ir deitar no dia que recebeu a carta, procurando por qualquer informação que desse uma vantagem a eles e achou mais do que estava esperando.

No ramo de negócios que eles seguiam, codinomes eram essenciais para se manter seguro tanto das autoridades quanto de pessoas da mesma área que pudessem ter interesse em fazer mal aos rivais para abrir espaço no mercado para si mesmos. Revelar a identidade era uma prova de confiança enorme e Seonghwa já viu ser usada como moeda de troca mais de uma vez, quase como uma garantia de que o trabalho deveria ser concluído como foi decidido. Descobrir a identidade de Aurora deu a eles uma vantagem tão grande que Seonghwa conseguia usar esse conhecimento como consolo. Caso tudo desse errado e Aurora causasse mais problemas do que valia a pena, Seonghwa e Yeosang iam simplesmente trazê-lo para baixo com eles.

Quando Siyeon, antes ocupada com clientes e pedidos que não paravam de chegar, finalmente ficou mais livre para se aproximar de Seonghwa, Yeosang falou em seu ouvido mais uma vez.

Ele chegou.

Seonghwa respirou fundo e apontou com a cabeça para a porta por onde Aurora entrou, Siyeon acenou, um sinal claro de que ela tinha entendido o recado antes de começar a secar a pilha de copos na pia abaixo do balcão enquanto se mantinha perto o suficiente para intervir, se necessário.

Aurora mal procurou por ele antes de seus olhares se encontrarem e ele sorrir de canto, quase confiante demais.

— Parece que alguém pensou melhor. — Seonghwa se obrigou a controlar o nervosismo enquanto Aurora se sentava no banco ao lado, exatamente na mesma posição de quando eles conversaram pela primeira vez. Era engraçado que as coisas estivessem tão parecidas e ao mesmo tempo tão diferentes, que Seonghwa fosse o desesperado da vez. — E então?

— Então o quê?

Aurora arqueou uma das sobrancelhas.

— O que te fez mudar de ideia?

Seonghwa se ajeitou no banco para encarar Aurora, se incomodando com o tom de voz quase debochado que ele usou.

— Não acho que isso seja da sua conta.

— Não é, mas eu preciso saber que seu propósito entrando nessa comigo agora não é simplesmente lucrar mais me entregando.

Seonghwa sabia que ele tinha um ponto, mas a desconfiança não lhe agradava mesmo assim.

— Não tem muito o que você possa fazer além de arriscar, da mesma forma que eu tô fazendo aqui. Não sei se você percebeu, mas eu já fiz muitos inimigos, você teria tanto a ganhar com um plano desses quanto eu. Provavelmente até mais. A merda pode acertar o ventilador pros dois lados.

Aurora o encarou por alguns segundos.

— Não acho que eu esteja mais interessado em trabalhar com você, Mist. Algo me diz que posso encontrar pessoas que oferecem menos riscos — disse, já se levantando.

Seonghwa não lidou bem com a recusa e dessa vez foi ele quem o segurou pelo pulso.

— Eu não acho que eu seria um problema. Se eu quisesse te entregar você não estaria aqui, Kim Hongjoong. — Aurora, Hongjoong, parou onde estava, se virando lentamente e Seonghwa notou como ele tentava disfarçar o olhar de puro pânico ao ver seu nome verdadeiro sair da boca de uma pessoa que ele não confiava. — Não se preocupe, eu saber seu nome é mais uma medida de segurança do que uma ameaça. Eu só vou usá-lo se sentir que preciso. Sua identidade tá segura comigo. Por enquanto.

Um assobio de Yeosang soou pelo fone.

Fiiiiu, hyung. Cruel, eficaz, mas cruel.

Seonghwa quis rir, mas conseguiu evitar.

— Parece que nós temos muito o que conversar agora. Por que não volta a se sentar? Acho que a discussão tá só começando.

Hongjoong obedeceu, sentando-se de volta em seu banco lentamente e Seonghwa imaginou que ele estava pensando nas opções.

— Não é possível que você ache que é muita boa ideia começar uma equipe me chantageando.

Seonghwa revirou os olhos e cruzou os braços sobre o peito.

— Eu não tô te chantageando, eu só te dei uma prova de que eu já podia ter acabado com você se o meu objetivo fosse esse — falou, balançando a cabeça levemente para tirar alguns fios de cabelo incômodos do rosto —, além disso, se a gente realmente entrar nessa juntos, você vai descobrir coisas sobre mim que tem o poder de acabar com tudo pelo o que eu trabalhei até hoje, então deixa o drama pra outra hora porque a gente tem muito o que discutir.

Hongjoong suspirou e apertou os olhos com força, quase como se estivesse sentindo dor física de ter que concordar com Seonghwa.

— O que você tem em mente?

───── continua...

Notas da autora

Olá, meus amores. 

Esse capítulo veio menorzinho que os outros, né? É porque é capítulo de transição. 

Vocês esperam alguma coisa daqui para frente na fic? Se sim, o quê??

Por hoje é isso, meus amores, até semana que vem ❤️❤️.

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