Os Versos (Miniconto)

Mesmo com um olho só, Luís podia ver que sua caneca de cerveja estava vazia.

― Catarina! – Chamou o homem barbudo com quem aprendera a conviver em uma cabine minúscula, durante os meses angustiantes de viagem a nau – Mais uma!

Os cabelos negros e encaracolados da moça roçaram no ombro de Luís enquanto ela se inclinava para encher o recipiente. O olhar penetrante da moça encontrou o seu próprio, e Luís sentiu o arrepio familiar dessa sensação. Cedo demais, ela sorriu e deu meia volta, balançando as anáguas vermelho-sangue, para atender o chamado de outro ex-marinheiro bêbado, do outro lado do salão.

― Um brinde! – Matias tornou a enunciar – Ao maior poeta do Latim! De Portugal! Luís Vaz de Camões!

Todos os demais beberam grandes goles, enquanto Luís ria silenciosamente sobre sua própria bebida.

― Não me concederam o título ainda, meu amigo, mas um dia com certeza irão.

― Você agora é o poeta do rei! – Gritou Humberto, o mais bêbado de todos.

Luís não gostava de pensar que sua poesia tinha um outro dono, além dele mesmo. Mas era verdade. Esta pequena comemoração festejava a conclusão da última viagem como marinheiro, antes de ocupar sua posição oficial de poeta da corte.

― Escrevo para o rei para poder escrever para mim mesmo. Agora que abandonei a vida no oceano, tive que arrumar outra vida para ganhar.

― Nem um olho a menos o fez parar de escrever! – Humberto disse, arrancando risadas inebriadas dos demais.

― E agora? Só irá ver metade de seu livro impresso? – Matias acrescentou, em seu humor alcoólico.

― Não, e logo vocês também o verão inteiro.

― Os Lupíadas! – Humberto falou, levantando a caneca em um brinde.

― Luzíadas! – Corrigiu Matias, sério – Se for falar o nome, que seja o correto!

Luís riu e tomou outro gole de sua caneca.

Em meio à multidão, seu olhar encontrou novamente o de Catarina e a seguiu, enquanto ela saía sorrateiramente pela porta dos fundos.

***

O beco de fora da taberna era escuro, mas Luís conseguia ver sua silhueta contornada pela meia-luz.

― Então é verdade – Ela falou, recostando-se na parede – Você está de volta e em grande estilo. Bom, ao menos a maior parte de você.

― Devia ter visto o outro cara.

Catarina riu, levemente, e Luís completou com:

― Tenho pensado em você.

― Assim como em várias outras Catarinas que conheceu em suas viagens.

Luís negou com a cabeça, pegando um papel amassado do bolso. Ele o depositou nas mãos pequenas e calejadas da moça, dizendo:

― Só você.

Catarina encarou profundamente o olho de Luís, antes balançar a cabeça em negativa, colocar o papel não lido de volta em seu esconderijo e dar um passo para trás.

― É isso que você sempre diz.

Instintivamente, ele segurou a mão dela, que ainda estava perto da sua.

― Um dia, Catarina, você não vai conseguir escapar.

Ela sorriu, desentrelaçando seus dedos, antes de abrir a porta e retornar à taverna.

***

A plateia era grande e o salão, maior ainda, mas nenhuma dessas circunstâncias era suficiente para deixar Luís nervoso. Ao final de sua primeira apresentação para a corte, seus versos haviam sido celebrados com uma revoada de palmas e admiração dos nobres que se amontoavam ao redor do trono do rei.

O poeta se preparava para sair do palco quando abaixou-se em um gesto de reverência e agradecimento. Aquele papelzinho amassado que levava no bolso, para qualquer lugar que fosse, caiu no chão com um barulhinho.

O burburinho de interesse da plateia encheu o salão, e até mesmo o rei ajeitou-se melhor na cadeira em curiosidade. Luís recolheu rapidamente o objeto, mas não antes de algum felizardo gritar:

― O que é isso?

― São versos inacabados, vossa senhoria.

― Ora, vamos ouvir!

A plateia concordou em uníssono, para o detrimento de Luís.

― Não seria adequado mostrá-los antes de sua completude, Vossa Senhoria. Perderia todo o mistério. – Completou, com um sorriso no canto dos lábios.

Além de que os ouvidos da corte não eram dignos deles. Estes versos doídos, escritos e apagados, repensados, rejeitados, ainda eram propriedade de uma única pessoa, quer ela quisesse ou não.

Entretanto, a ironia não foi bem recebida pela corte.

― O senhor se recusa a atender um pedido da nobreza? – O nobre enunciou.

― Prefiro separar os meus projetos pessoais daqueles que lhes apresento, vossas senhorias. Tenho muitos outros versos para mostrar-vos, se assim desejarem.

O rei, que até agora não havia proferido uma só palavra, levantou a mão direita, fazendo o cômodo cair em um silêncio ansioso.

― Então eu o proíbo de escrever quaisquer versos que não aqueles direcionados a esta corte. 

O enfurecimento de Luís subiu-lhe à garganta. Ele teve que silenciar sua voz cheia de insultos, porque um conflito com o rei não seria benéfico para si ou sua carreira.

― Claro, Vossa majestade – Disse, enquanto terminava sua reverência não feita e se retirava do recinto.

***

Os referidos acontecimentos haviam sido dados como sigilo da corte, então é claro que todos estavam sabendo. Luís era o poeta mais comentado de fora dos muros do palácio. Ele estava de volta à taverna depois de longas semanas na corte, rindo e contando do embate com o rei aos amigos, na esperança de que Catarina tivesse ouvido todos os rumores.

Quando sua comunicação não-verbal os levou novamente ao beco escuro, Luís se apressou a declamar os fatídicos versos, agora completos, e encarar a expressão confusa da moça.

― Que língua estranha é essa?

― A língua Portuguesa. Eu a criei. O rei não pode proibir-me de versar em uma língua que ele mesmo não conhece. - Ele disse, entrelaçando os dedos nos cachinhos castanhos - Eu garanto: nunca criei dialetos inteiros e arrisquei meu pescoço por outras moças, Catarina. Esse será nosso próprio código.

Ela sorriu e entrelaçou os braços no pescoço de Luís.

― Declame de novo.

― "Amor é um fogo que arde sem se ver".. 

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