ℭ𝔞𝔭í𝔱𝔲𝔩𝔬 𝔗𝔢𝔯𝔠𝔢𝔦𝔯𝔬

— Calculei que o pudesse encontrar aqui.

Gaius baixa a espada que mantinha encostada no meu pescoço e embainha-a.

— Foste seguido?

Ofereço-lhe um sorriso malicioso.

— Por quem é que me toma?

Ele gargalha em resposta e vira-me costas, afastando-se em passos largos pela passagem estreita.

— Entra antes que te vejam.

Sigo as suas pisadas pelo carreiro atrás da cascata, que desemboca numa gruta de tamanho médio. Esta é aquecida por uma fogueira central e é preenchida por mobília rudimentar — uma mesa com duas cadeiras, um catre e um pequeno móvel com poucos papéis e utensílios. 

— Gosto do que fez com o espaço — digo, colocando sobre uma pedra grande uma lebre que tinha apanhado de uma armadilha que o meu pai montou nas imediações. Ao fazê-lo, vêm-me à memória um par de recordações. Só tinha sido capaz de dar com o lugar porque já ali tínhamos estado os dois, várias vezes ao longo dos anos. Era o nosso esconderijo secreto.

Ele puxa uma cadeira e senta-se na beira da fogueira enquanto eu esfolo a lebre.

— Ia dizer-te para te deixares de hipocrisias, mas sei que é mais forte que tu. Faz parte da tua personalidade.

— Assim como não deixar o seu trabalho para os outros faz parte da sua — digo, virando-me de frente para ele — Por isso diga-me: porque é que abdicou? O que é que o assustou ao ponto de deixar as suas responsabilidades nas mãos de uma mulher incompetente?

— Tento na língua, rapaz! Rosalind é a tua Rainha!

Solto ar pelo nariz em forma de gargalhada e torno a virar-lhe costas.

— Nunca disse que não era. Mas eu sei, e o pai também, que ela não é a mulher mais inteligente do reino.

— Também não é a mais idiota — riposta Gaius.

— Por algum motivo, duvido disso. — Puxo a outra cadeira e sento-me à sua frente de modo descontraído, colocando a lebre num espeto sobre o lume — Sempre teve bom gosto nas mulheres. Nunca cheguei a perceber o que viu em Rosalind.

— Só quem tem uma coroa na cabeça sabe o seu peso. — Ele suspira. — Casar com Rosalind foi a única maneira que vi de ter apenas seis províncias rebeldes, e não sete. Ter uma herdeira de Jevd sentada no trono torna aquela província, que é das maiores províncias e mais importantes do reino, um excelente aliado. Se tivéssemos de batalhar contra eles também, seríamos transformados num monte de cinzas e cadáveres em menos de nada. 

— No que depender de Rosalind, não estaremos muito longe desse cenário. Ela não foi feita para governar, ainda por cima sozinha numa situação de guerra. Vamos ser dizimados.

Gaius levanta-se e coloca as mãos nas costas da cadeira.

— Eu não queria ter de pousar a coroa, muito menos agora. Mas não tive outra escolha.

— Há sempre mais do que uma escolha. Só temos de a saber procurar — digo com um olhar severo.

Segue-se um breve silêncio, durante o qual ele estuda as minhas feições.

— A tua mãe costumava dizer isso.

— Eu sei.

Rodo o espeto, deixando as pontas do lume acariciar a carne do outro lado da lebre.

Eu nasci de uma relação sem amor entre Wynd e Gaius. Ela era uma mulher da alta burguesia atribuída como dama de companhia a uma senhora de uma casa privilegiada e ele na altura não passava um homem da Corte que ambicionava o trono. O caso durou menos de um ano e terminou dias depois de eu ser concebido, poucas semanas antes de Gaius conquistar a mão e, segundo dizem, o coração de Harina.

Wynd foi deserdada quando a família a descobriu grávida sem estar casada e a mulher para a qual trabalhava virou-lhe costas mal soube da notícia, temendo as más línguas. Sem ter ninguém a quem recorrer, ela pediu ajuda ao meu pai, que lhe deu abrigo e proteção.

A minha existência, e a da minha mãe, nunca foi segredo para ninguém. Nem mesmo para Harina, já que desde sempre que vivemos num quarto de criados do castelo. Aliás, o coração bondoso da rainha foi a principal razão pela qual eu tive a educação digna de um príncipe e a minha mãe pôde trabalhar nas cozinhas até ao dia da sua morte. 

Ele solta uma gargalhada.

— Lá por ter dito que estava de mãos atadas antes, não quer dizer que o estou agora.

Liberto-me da nostalgia das memórias da minha mãe e encaro o meu pai.

— É isso que eu gosto de ouvir! — exclamo com outro sorriso malicioso — Finalmente aprendeu qualquer coisa comigo.

Gaius dirige-se ao móvel e retira um cantil. 

— Ontem chegou-me uma carta pela manhã.

Ele estende-me o cantil depois de beber uns goles do que descubro ser vinho tinto, pelo tom avermelhado que os seus bigodes loiros adquirem. Eu aceito-o, esperando que ele continuasse o que ia a dizer.

— E? — pergunto, farto do silêncio que ele teimava em não quebrar.

— Todos os Homens têm segredos, Locke. E parece que o Lorde que me escreveu descobriu os meus. 

Retiro um bocado de carne cozinhada da lebre e torno a virar o espeto.

— Que segredos?

— Coisas obscuras das quais não me orgulho propriamente. Não faças essa cara, que eu não quero, nem vou, dizer mais que quilo que já disse — acrescenta, voltando a sentar-se à minha frente. 

— Os segredos em si não são o problema —  constato, amuado.

— Precisamente. O problema reside no facto desse Lorde ter ameaçado contar a verdade ao reino.— Ele retira um pedaço de carne para si. — Se os segredos se tornarem públicos, o reino em peso virá atrás da minha cabeça e, muito provavelmente, das cabeças da minha linhagem também. Acredito que até mesmo tu estarias em perigo, mesmo sendo um bastardo. 

Inclino-me para a frente com renovada curiosidade. Não há nada que eu goste mais do que os segredos alheios.

— É assim tão mau? 

— Não tentes fazer os teus joguinhos comigo, que não vai funcionar. —  Ele suspira. — Mas sim, é assim tão mau.

De cotovelos fincados nos joelhos, apoio o queixo nas mãos entrelaçadas. 

Sei que o caso é sério quando Gaius reconhece que a única maneira de resolver a situação é a coberto das sombras. O que se segue vai ser muito divertido.

— Exigências?

— Por escrito? Nenhuma. Mas deduzo que tenha que ver com dinheiro ou poder. No máximo vingança. Ele deve achar divertido ter o seu Rei no bolso.

Não consigo conter uma gargalhada. O Lorde deve ser um idiota. Tem uma oportunidade tão boa nas mãos e é isto que faz com ela? Já não se fazem ameaças como antigamente.

— Deduzo que o plano seja matar o estupor para impedir que os seus segredos se saibam e depois retomar o poder até ao Tallius ter idade para governar. Isto porque, a esta hora, ele já deve ter sido coroado e já não se pode voltar atrás no facto de ele agora ser rei e não príncipe.

Levanto-me, já cansado de estar sentado. Os seus olhos seguem-me.

— Mais coisa, menos coisa. De nada lhe serve os meus segredos se eu não estiver numa posição em que lhe seja vantajoso chantagear-me. — Ela passa as mãos nos cabelos loiros que já tinham começado a desbotar há alguns anos e olha o chão. — Se o reino não estivesse numa situação tão frágil, poderia resolver isto de outra forma. Mas agora não vejo outro remédio. 

— Posso ajudá-lo?

Ele levanta a cabeça de repente e olha para mim, espantado.

— Lá por nunca ter entrado para a Guarda Real, como tantas vezes me pediu ao longo dos anos, não quer dizer que não me importe com o que acontece com este reino ou com a sua casa. Por isso diga-me, meu pai: quem é que temos de matar?

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