ℭ𝔞𝔭í𝔱𝔲𝔩𝔬 𝔔𝔲𝔞𝔯𝔱𝔬

Não fiquei espantado quando Gaius me disse que o nosso alvo era o Lorde Janzo Gameda. Só aquele nome bastou para explicar toda aquela confusão.

Janzo e Gaius tinham sido amigos, em tempos. Ambos vinham da mesma província do reino, apesar de serem de casas privilegiadas diferentes, o que fez com que, de certa forma, crescessem juntos. Frequentavam os mesmo círculos sociais, os mesmos bailes e os mesmos torneios. Até chegaram a entrar para a Corte ao mesmo tempo.

Foi a disputa pela mão de Harina que os tornou rivais e desde que o meu pai se tornou rei que o Lorde Gameda lhe tem um rancor que não esmorece com o tempo.

Os meus contactos disseram-me que Janzo estava sozinho em casa com os criados, a cunhada viúva, a mulher e o filho mais novo. O restante da sua prole ou está na guerra ou no banquete real em honra da coroação de Tallius.

Tive de cobrar favores para que eu e Gaius pudéssemos entrar na mansão Gameda sem sermos denunciados e para descobrir que Janzo se fecha na biblioteca todas as noites após o jantar. A maioria da sua guarda pessoal teme-me muito mais a mim do que a ele.

Vá se lá saber porquê.

Os passos ritmados no corredor indicam que o patriarca se aproxima. O meu pai, que se encontra ao lado da porta, agarra a espada com mais força. Eu uso o indicador para afastar ligeiramente as cortinas para espreitar a rua. Teremos mais trabalho se os guardas honestos estiverem demasiado perto.

Mas a costa está livre, por enquanto.

A porta abre-se e Janzo entra sozinho no espaço iluminado. Eu volto-me a tempo de ver o meu pai a pressionar a adaga que ele guardava na gaveta da secretária na garganta do seu rival.

— Gaius....

— Sh! Não é preciso falarmos tão alto — digo, sentando-me numa cadeira próxima — Agora faça-me um favor: diga ao criado que aí vem que não quer ser incomodado.

A adaga de cabo dourado pressiona mais o seu pescoço e, relutantemente, o homem obedece. Uma vez que os passos do criado de afastam, o meu pai fecha a porta com o pé e tranca-a com o auxílio da chave na fechadura, empurrando o homem na minha direção em seguida.

— Faça favor — falo, estendo o braço como se o estivesse a convidar a sentar na cadeira do outro lado da pequena mesa. Gaius obriga o Lorde a sentar e toma o meu lugar quando me levanto. — Sabe porque é que estamos aqui?

— Claro que sabe — sussurra o meu pai. 

— Para me irritar?

— Oh! Nunca me tinhas dito que ele era comediante! — digo, encostando o rabo nas costas do sofá e cruzando os braços sobre o peito — Quanto a si, Lorde Gameda, já o avisei sobre esse tom de voz.

O homem puxa o escarro e cospe-me nos sapatos. Eu olho as biqueiras sujas antes de levantar a cabeça para ele, fuzilando-o com o olhar. 

— Posso matá-lo agora?

— Ainda não. — Gaius espeta a sua adaga predilecta no tampo da mesa que o separa do lorde. — A quem é que contaste?

Eu começo a vaguear pela divisão, analisando o meu entorno.

— Se soubesse que o Rei me vinha visitar, tinha preparado um banquete.

— Estás um pouco desactualizado, Janzo. Já não sou rei.

— Que pena. — Ele puxa as mãos do regaço para cima da mesa. — Não percebo para que é que foste atrás da coroa se não a tencionavas usar até ao fim. Ou vais dizer-me que nunca quiseste o poder?

Ao chegar a uma pequena secretária do outro lado da divisão, começo a abrir gavetas.

— Eu amava a Harina e foi por isso que me casei com ela.

— Gaius... Tinha-te em melhor conta. Agora sinto-me humilhado por ter perdido para um pinga-amor.

— Por muito que eu esteja a gostar deste reencontro... — digo, deixando a carta que acabei de ler no seu lugar e reaproximando-me dos dois homens à mesa — Não foi para isso que viemos. Para além disso, não consigo vê-lo a gastar os seus últimos momentos de vida a remexer as suas feridas por sarar. Dá dó. Só queremos saber se deu com a língua nos dentes para o podermos tirar do seu sofrimento, Lorde Janzo.

Ele olha-me de alto a baixo de cenho franzido, acentuando as rugas do seu semblante. 

— Quem é o fedelho? 

— Não me reconhece? — pergunto de forma dramática, levando a mão ao peito numa dor fingida — Se que já lá vão alguns anos desde a última vez que me viu mas, mesmo assim, fico magoado. Além disso — acrescento, colocando-me atrás da cadeira do meu pai —, as nossas parecenças são irrefutáveis.

A minha identidade jamais poderia ser segredo, já que herdei praticamente toda a minha aparência do meu pai. Até a maioria dos meus traços psicológicos advêm dele.

Quem não nos conhecesse, julgar-nos-ia irmãos.

— Tu... és o bastardo! — exclama, os olhos esbugalhados em reconhecimento.

— Assim está melhor! Mas tenha atenção ao tom de voz. Não queremos ter companhia.

— A quem é que contaste, Janzo? — insiste o meu pai.

— A toda a gente! Por esta altura, já todo o reino sabe! — exclama, na defensiva — Guarda!

Num movimento rápido, retiro uma adaga do meu cinto e atiro-a em frente. Esta passa rente à orelha do lorde e acaba espetada num livro de uma estante na outra ponta da sala.

— Baixa o tom, Janzo... — sibila o meu pai, irritado.

Durante uns instantes de silêncio na divisão, fico à escuta. Mas não há movimento. Ou os guardas honestos não o ouviram, ou os restantes estão a cumprir com a sua palavra.

— Eu não acredito em si. — Avanço devagar até ele, apanhando a adaga espetada na mesa pelo caminho. — Os seus olhos dizem-me que não contou a ninguém. Estou certo, não estou?

— Não sabes o que dizes, criança.

— Deixei de ser criança há muitos anos.

Paro ao seu lado. O seu corpo, poucos anos mais velho que o de Gaius mas em muito pior estado de conservação, é percorrido por um tremor.

— Não sabes nada sobre o Gaius — diz com uma voz vacilante — O homem a que chamas de pai tem segredos tão sombrios que assustam o próprio Diabo. Não se compara a nada que tenhas alguma vez ouvido, visto ou feito.

Sendo filho de quem sou, é normal que a minha reputação me preceda. Só não esperava que o Lorde Gameda me temesse assim tanto.

— Como eu calculo que saiba, adoro segredos. São o meu passatempo favorito. E são tão úteis. — Agacho-me para ficar à sua altura, com o punhal suspenso entre os nossos corpos. — Mas o meu pai não me quis contar os dele. Nem um.

— Locke...

Olho o meu pai antes de voltar a encarar o Lorde.

— Mas você parece sabê-los. Por isso cumpra o que prometeu naquela carta e conte-me um que eu ainda não saiba. — Levanto o indicador direito e faço um beicinho infantil. — Só um.

— Locke... — repete Gaius, num tom ligeiramente mais alto que o anterior, num aviso.

O homem encolhe-se na cadeira, indeciso. Mas ao olhar para a cara do meu pai, parece encher-se de coragem. Ou talvez seja a vingança que o motiva.

— Toda a gente sabe que a tua mãe foi assassinada. O que eles não sabem é que o teu pai... é que o teu pai matou a tua mãe!

Por uma fração de segundos, ninguém respira.

— É mentira! — exclama Gaius assim que se recupera do choque da acusação.

O seu olhar dispara para mim, em busca dos meus olhos. Ele receia a minha reação. Mas eu não o encaro de volta. Aliás, eu tenho de me esforçar para conter o enorme ataque de riso que parece tomar conta do meu corpo.

— Esse segredo é ótimo! — digo com a mão sobre a boca, entre risos — Se todos os segredos que este homem sabe forem como este, então não precisamos de nos preocupar, meu pai!

— Porque é que te ris? — pergunta o velho, receoso, mais encolhido que nunca.

Do meu pai herdei quase tudo. Da minha mãe tenho apenas três coisas: as ondas do cabelo aloirado que o meu pai me deu, os olhos castanhos escuros profundos, que levam qualquer dama a perder-se neles, e a coragem. A coragem para fazer a coisa certa, mesmo quando dói.

Aproximo-me da sua orelha cautelosamente mas falo alto o suficiente para o meu pai ouvir com clareza.

— Porque fui eu que a matei.

Eu tinha 7 anos quando tirei a minha primeira vida. Apesar de trabalhar todos os dias nas cozinhas do castelo como se nada fosse, ela estava muito doente. Por vezes tinha dores horríveis que os médios eram incapazes de curar. 

Naquele dia foi assim. 

Deitada na sua cama no nosso quarto, ela pedia aos céus por misericórdia e esforçava-se para não gritar. Mas era em vão. Eu não aguentei vê-la assim muito mais tempo e ofereci-me para lhe tirar as suas dores. Ela agradeceu, beijou-me uma última vez e, apesar da vontade de se contorcer, ficou quieta para que eu pudesse espetar no seu pescoço a navalha que o meu pai me tinha oferecido naquela manhã. 

Um rapaz que tem de matar a própria mãe, ainda por cima em tão tenra idade, fica marcado para a vida.

O Lorde arqueja, em busca de ar. Eu afasto-me com uma risada, deliciando-me com o seu horror.

— E agora que sabemos que não espalhou aos quatro ventos o passado obscuro do meu pai, também o posso matar a si.

Assim que a adaga lhe tira a vida, encaro Gaius. Nos seus olhos não vejo qualquer tipo de julgamento e isso agrada-me. Provavelmente já lhe tinham chegado aos ouvidos as histórias da minha curta paciência e como ela me leva a resolver as brigas nas quais me vejo envolvido.

Ou então os seus crimes são mais hediondos que os meus e, por isso, ele não se encontra em posição para me julgar.

É algo que eu talvez nunca saberei.

Mas só talvez.

Afinal,  os segredos são a minha especialidade.

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