CAPÍTULO 18

Me sinto bem em não participar de nada.
Me alegra não estar apaixonado e não estar de bem com o mundo.
Gosto de me sentir estranho a tudo...
~Charles Bukowski

**AMBER**

Encaro novamente meu reflexo no espelho sujo do banheiro da escola, enquanto fazia minhas mãos tremidas limparem minhas lágrimas.

Essa é a segunda crise de pânico que eu tenho hoje. Penso cansada.

Fiquei 40 minutos dentro desse banheiro tentando controlar essa crise. Eu não estou aguentando mais. Simplesmente não consigo mais acordar de manhã e pensar se esse vai ser mais um dia comum ou se algum amigo meu vai tomar um tiro hoje. Não dá mais.

Eu não aguento mais acordar aos gritos. Não aguento mais ver mortes e dor na minha cabeça. Não aguento mais o olhar de preocupação de meu tio. Não aguento a ideia de que desde que eu cheguei aqui só trouxe problemas para a gangue. Não aguento nem mesmo a ideia de dormir uma noite inteira.

Nunca pensei que a ideia de deitar em uma cama fosse tão pavorosa assim.

Eu estou farta! Estou farta disso, de sempre ter os mesmos pensamentos, de sempre me lamentar sobre as mesmas coisas, de me sentir a vítima.

Eu odeio isso! Pensei enquanto taquei a barra de sabonete que eu tinha em uma das mãos na pia.

Por que eu saí da cama hoje? Justo hoje?

Até meus sentimentos são uma mistura confusa e desmantelada, eu sinto ódio, rancor, dor, arrependimento, sinto culpa. E isso está me corroendo!

Batidas fortes surgiram na porta no mesmo instante.

Merda! Por que eu escolhi usar logo as cabines unissex?

Esfreguei as costas das mãos nas bochechas tirando o excesso dos rastros das lágrimas, apesar de não tirar todos. Respirei fundo destrancando a porta e escondendo minhas mãos tremidas nos bolsos.

Mais batidas na porta.
Que se foda minha aparência, se for algum aluno da Phillipez, duvido que repare na minha aparência de qualquer jeito.

Abri a porta da cabine com rispidez, e logo de cara percebi que meu erro foi abri-la. Porque é Carter que está na minha frente agora. Vendo meu estado após uma longa e cansativa crise.

- Bom dia senhorita Lewis. - ele disse com um sorriso que foi se desmantelando quando ele encarou meu rosto - Você está bem?

Ignorei ele. Eu já estou zangada e magoada suficiente. Não preciso se um psicólogo atestando isso também.

- Espere Amber - ele disse passando a minha frente e me parando.

Ele não encostou em mim, o que eu agradeço muito por isso, eu com certeza poderia cair no choro novamente, se alguém invadisse meu espaço pessoal.

- Você claramente não está bem, deixe-me ajudá-la.

Eu não queria, não queria aceitar a ajuda dele. Mas senti que outra crise estava vindo, e eu com certeza não quero passar por uma crise de pânico no meio do corredor do colégio.

Segurei o choro e assenti para Carter. Ele assentiu em sincronia e me conduziu rapidamente até sua sala não muito longe de nós.
Ótimo nenhum estudante da Phillipez no caminho.

Carter abriu a porta da sala e me conduziu até o sofá no canto do quarto.

A sala estava diferente da última vez que eu entrei aqui. O quadro no canto da sala tinha sumido, e agora no lugar estava esse sofá - bastante confortável por sinal - e uma poltrona acolchoada, onde provavelmente Carter atende seus pacientes de forma mais confortável.

Eu me sentei no sofá, sentindo que a crise piorava cada vez mais. Em um certo momento comecei a sentir minhas pernas tremerem, e esse tremor, infelizmente, já é muito familiar. Também percebi que meu peito doía muito e a falta de ar começou a ficar mais forte quando percebi que essa era a primeira crise que eu tinha na frente de alguém a muito tempo.

Sempre fui muito reservada sobre como deixar minhas fraquezas, os únicos que deixei ver todas as minhas fraquezas são minha gangue. Os únicos. E por motivos muito óbvios. E o fato desse alguém, dessa vez, ser o Carter, me deixa muito assustada.

Ele se aproximou com um copo de água na mão e me entregou com delicadeza e se sentou ao meu lado, em uma distância considerável.

- Tudo bem, Amber. Eu quero que você respire fundo, você está tendo uma crise, provavelmente uma de pânico, estou certo? - ele questionou mantendo sua voz calma.

Eu assenti, apesar de estar respirando pela boca com muita dificuldade.

- Tudo bem, olha - ele repeliu me entregando uma bolinha macia que ele tirou do bolso.
Por que ele tem uma bolinha no bolso?

- Essa é uma bolinha terapêutica. Eu quero que você conte até cinco e aperte ela constantemente. Você pode fazer isso?

Ele pôs a bolinha nas minhas mãos. Mas que merda. Eu estava tendo uma maldita crise de pânico, onde apertar uma bolinha me ajudaria?

Parece que, como sinal, minha garganta começou a se fechar mais. Eu encarei a ridícula bolinha na minha mão, me sentindo ridícula por fazer isso, mas comecei a apertá-la enquanto contava até cinco constantemente.

- Ótimo. Repita isso e continue respirando - ele respondeu me analisando - Bom.

Com o passar de alguns longos minutos, eu percebi que apertar a bolinha e manter sob controle a minha respiração, realmente me ajudou com a crise. Eu ainda não estava cem por cento bem, mas tenho certeza de que eu já estava uns quarenta por cento melhor.

- Obrigado. - respondi mantendo meus olhos ao chão.

Na maioria das vezes isso ajudava. O chão não é barulhento, nem chamativo, nem tem olhares julgadores. Ele é apenas... Bom, o chão. E me ajudava a manter os pés no lugar.

- Quer me contar como está se sentindo?

Eu não tenho certeza se deveria.

Eu só estou tão exausta de lidar com todos esses sentimentos conflitantes e instáveis. Cansada de ter que dormir assistindo um filme ou ouvindo música para evitar meus próprios pensamentos sombrios. Cansada de perder noite após noite meu sono, revivendo momentos horríveis do meu passado...

- Eu... Eu só estou cansada. - eu disse relaxando o máximo que consegui no sofá.

- Cansada de que? - Carter encurvou a cabeça se ajeitando na beira do sofá, assim seu foco poderia ser melhor em meu rosto.

Eu estou cansada de manter esses sentimentos em segredos. Não quero mais guardá-los de Jesus, da gangue, do meu tio. Quero simplesmente me livrar deles!

- Eu estou cansada, mas não sei exatamente o porquê. - eu comecei.

Ainda podia sentir os resquícios da minha crise em mim. Mas agora eles eram tão insignificantes como eu.

- Agora eu tenho uma família, tenho amigos, uma casa grande e uma boa escola. - eu enumerei frustrada - Eu não entendo por que ainda me sinto igual me sentia antigamente. Quando minha vida parecia mil vezes mais difícil do que está agora. Isso... isso me faz sentir uma... - me engasguei procurando palavras.

- Uma ingrata? - Carter sugeriu certeiramente.

A sensação que eu senti quando ele acertou com precisão a palavra que eu procurava, foi como se eu me sentasse na frente de um espelho, e enxergando meu próprio reflexo.

- Sim. - esclareci com leveza - Mas acima de tudo, estou cansada de mim. Das minhas atitudes e do meu passado.

- O que você quer dizer com isso, você sente vergonha de si mesma? - Carter perguntou sugestivamente ao meu lado.

A pergunta me pegou tão desprevenida que me senti como se estivesse sem roupa. Eu o encarei respondendo da forma mais sincera que já respondi alguém antes.

- Às vezes sim. Eu estrago as coisas. Não importa onde nem quando, eu sempre estrago.

Sendo verdade ou não, acredito no que disse. Eu tive certa parcela de culpa nos relacionamentos errados da minha mãe, tive certa culpa em ir para o reformatório e tive total culpa dos resultados que minhas ações tiveram lá.

- Onde você ouviu isso?

Carter claramente se perguntava como uma garota de quase 17 anos poderia dizer algo tão negativo e pesado sobre sua vida. Bom, eu respondi a sua pergunta:

- É uma coisa que minha mãe disse para mim, durante a minha vida toda. - eu dei de ombros. Porque apesar de doer, foi uma coisa que já me acostumei.

- E você acha que teria um motivo para sua mãe dizer isso a você?

Sim. Ela tinha motivos sim. Motivos demais.

- Acho que ela só precisava de alguém para despejar a injustiça que passava - falei analisando rapidamente todas as cenas da minha infância.

Fazia sentido ela descontar suas frustrações em mim já que eu fui o motivo da maioria delas.

- Ela foi expulsa de casa depois que engravidou de mim, e bom... Ela não tinha dinheiro e nem lugar para ir. - completei encurvando meus ombros com um suspiro - Para ela, eu ter nascido foi a pior coisa que aconteceu na vida dela.

Ele se levantou do assento do meu lado, passou as mãos nos cabelos arrumando o penteado bagunçado. Ele pegou seu caderno vermelho em cima da mesa e voltou a se sentar, mas dessa vez, na minha frente.

Ele cruzou as pernas, baixando o caderno aberto em seu colo, e puxando uma caneta de seu bolso.

- Amber, você não tem que se culpar por ter nascido e sua mãe não devia culpá-la por algo que você não tinha controle nenhum.

Eu sabia disso. Mas quando você passa a sua vida inteira ouvindo isso da única pessoa que te suportou, que te criou, independente de todos os infortúnios e todas as frustrações, você para de ligar pro que sabe e apenas aceita o que ouve.

- Ah eu não me recinto tanto sobre isso, acredite, passei vários anos escutando coisas desse nível e até pior. - disse sem esconder a arrogância na minha voz - A única coisa da qual me recinto é que, cada vez mais ela despejava seus sentimentos frustrantes em mim mais eu me tornava um reflexo dela.

Toda vez que me sinto ingrata, todas as mudanças de humor, toda frustração, tudo me torna mais com ela.

- Está dizendo que sente necessidade de despejar seus fracassos e inseguranças nos outros?

Sim. Não.

- Nos outros não, mas em mim.

Minhas cicatrizes são a maior prova disso.

Carter fez uma anotação em seu caderno e por fim perguntou:
- E como você faz isso?

Tentei me lembrar das palavras que vi escritas no meu relatório psicológico que fiz antes de entrar no S.M.

- Eu me torturo psicologicamente. Às vezes, eu tenho esses pensamentos conflitantes, e eu não consigo parar de pensar nos meus erros e nas minhas frustações até que eu surte e... - eu semeei a cabeça procurando uma continuação.

- E tenha uma crise - completou ele sugestivamente. Eu assenti.

- E você diria que sente essa necessidade de despejar as coisas em você, por que não quer ser o reflexo da sua mãe e despejar esses sentimentos nos outros?

Não respondo. Talvez seja verdade. Talvez não. Mas saber a resposta dessa pergunta vai me assombrar mais que o fato de eu estar tendo uma conversa tão sincera e verdadeira com Carter.

Depois de um breve momento de silêncio, Carter coçou a garganta e retomou:
- Essas crises, elas são muito frequentes?

Repuxei minha boca para a direita.

- Depende. - semeei mexendo a cabeça para os lados - Quando elas são engatilhadas durante meus pesadelos...

Carter me interrompeu antes que eu terminasse.

- Tem crises frequentes assim, durante o sono? - o seu tom assustado ficou nítido nesse momento.

- Sim, mas na verdade não são bem crises de pânico, eu diria que estão mais para terrores noturnos causados pelo estresse pós-traumático.

Se me lembro de alguma coisa sobre a consulta psicológica que tive antes de entrar no S.M, uma delas era o médico me avisando que S.M poderia deixar algumas marcas em mim. Não necessariamente físicas.

- Como....

Eu o interrompo antes mesmo que ele comece com seu mar de dúvidas sobre como sei disso, ou como posso afirmar tal tipo de coisa com precisão. Mas estou mostrando a ele que não quero tocar nesse assunto agora.

- Outras vezes, essas crises podem ser engatilhadas por datas simbólicas, o que ocorre com menos frequência.

Ele parecia ainda relutante e querendo esclarecer suas dúvidas, mas pegou seu caderno e voltou a fazer suas anotações.

- E as crises mais frequentes acontecem quando estou muito estressada e começo a ter pensamentos conflitantes, como eu lhe falei.

Eu esperava que nossa conversa parasse aqui. Estava feliz pelo caminho que essa conversa tomou e ao mesmo tempo estava orgulhosa de mim por ter conseguido ter essa de uns forma aberta e sincera.

- Me conte um pouco mais sobre pensamentos conflitantes.

Acho que nunca alguém já havia me perguntado sobre os meus pensamentos. Não é como se eu desse muito espaço para esse tipo de perguntas antes.

- São pensamentos similares à sobrecarga que causei ao meu tio, como a vida da minha mãe tomou um rumo tão ruim depois que ela engravidou de mim... - o gosto ácido das palavras que eu proferia descia pela minha garganta queimando e fervilhando me por dentro.

- Às vezes também penso como a vida dos meus amigos mudou depois de me conheceram. Esses pensamentos vão variando com o meu humor ou com as situações do dia a dia...

Mais anotações vieram no caderno vermelho. E minha ansiedade dava lugar a minha curiosidade e as anotações nas folhas amareladas daquele caderno.

- E qual motivo te levou a ter uma crise hoje?

Engoli em seco o veneno de minhas próprias palavras. Não é fácil falar sobre isso.

- Data simbólica, mas eu acho que também... - deixei que a frase morresse em minha boca e fiz como fiz tantas outras vezes durantes os anos e mantive meus pensamentos para mim.

É aquele maldito ditado quando repetimos algo por muito tempo isso se torna um hábito.

E se tinha uma coisa que eu era boa em fazer era a afastar as pessoas de mim e guardar meus sentimentos. Meus malditos hábitos.

- Não precisa me contar se não quiser, mas se sentir necessidade de se abrir com alguém Amber, saiba que eu sou alguém que pode confiar.

As palavras soaram num tom tão sincero, sem piadas, sem estiradas, não havia nossas provocações igual da outra vez. Isso me passava a imagem de que aquilo poderia ser verdade.

- Parece bobo, mas é difícil... é difícil me abrir com alguém quando passei tantos anos fazendo o contrário. - revelei incerta da escolha que estava prestes a fazer.

- Eu entendo Amber, velhos hábitos são difíceis de largar, e não pense que há algo de bobo em tentar se proteger. - Carter respondeu da forma mais suave que conseguiu.

Me passou segurança, de alguma forma, e isso agitou algo em meu peito que a muito tempo não se movia. Já estou farta de aguentar tudo. Tenho a dois anos os mesmos problemas e os mesmos medos. Eu estou farta. Estou cansada.

Eu já estava decidida. E quando dei por mim, já estava dizendo as palavras:

- Hoje...Hoje fazem dois anos desde... - parei incerta.

- Desde o que, Amber? - Insistiu ele.

- Desde que me jogaram no pior reformatório do país. - eu disse as palavras apertando minhas mãos no estofado do acento do sofá e encarando Carter com extrema atenção.

Não sei se Carter tinha conhecimento do reformatório ou não, não sei se ele realmente olhou meu histórico ou não, não sei se apenas selecionou pequenas informações minhas e ignorou o resto, mas agora ele tinha a informação crucial para tudo.

Não sei que reação eu esperava dele, mas de jeito nenhum esperava que ele tirasse os olhos do caderno de anotações como fez e encarasse meus olhos como fez e dissesse:

- Eu sinto muito.

Eu o ofereci um pequeno esboço de um sorriso e respondi de volta:

- Eu também.

◇◇◇

**LOGAN**

- Então - Jesus apareceu no meu retrovisor enquanto batucava os dedos no meu banco - Qual o lance com seu pai?

Eu não estava a fim de tocar nesse assunto com esses caras. Mas eu não tenho muito escapatória, estamos dentro de um carro a 10 minutos presos em um engarrafamento horrível.

Duvido muito que iremos para algum lugar na próxima hora.

- Qual o lance das tatuagens? - indaguei no mesmo momento.

Já virou um costume meu responder qualquer pergunta deles com uma pergunta minha. E apesar de estar indo encontrar meu pai, não queria contar agora sobre ele.

- Chega de jogos Harper. - respondeu Jonas parecendo realmente bravo por minha pergunta.

- Sim por favor, já estou farto dessas perguntas e suas insinuações. - continuou Jesus do banco de trás.

Talvez eles estivessem certos, eu já estava cansada dos meus próprios jogos.

- Meu pai é um alcoólatra. - respondi apertando as mãos nas laterais do volante e me esforçando para enxergar o que havia na frente da multidão de carros.

Levantei meu olhar para o espelho, encarando Jesus no banco de trás. Não me esqueco do que Jonas disse em italiano para Jesus, dias atrás no banheiro.

"Acredite em mim, eu não gosto de arriscar sua sobriedade tanto quanto você, mas não temos anestésicos pra você aqui."

Há apenas dois motivos para alguém como Jesus não gostar de bebida e drogas. Ou ele tem problemas com vício ou algum tipo de trauma com ele.

O vício deixa marcas irreparáveis nas pessoas.

Apesar da minha revelação rápida, Jesus não esbanjou mais nada do que uma simples tensão no maxilar.

- Então seu pai é um alcoólatra, entendo - respondeu Jonas batucando a janela levemente com seu dedo mantendo a neutralidade - Mas, por que você está indo vê-lo agora? - ele girou a sua cabeça para mim.

Ele tirou minha atenção de Jesus, mas ainda podia sentir os músculos dele tensos no banco de trás.

Eu analisei minhas opções. Não sei bem ao certo com o que esses garotos estão envolvidos.

Existem várias facções criminosas pelas redondezas de Estes Park. Seu padeiro, seu vizinho, a senhoria da barraca de doces, qualquer um desses podem fazer parte de uma facção e apesar de adolescentes se manterem longe desse mundo. Apesar de boa parte da população não saber disso.

Acontece que apesar de estar no meio de vários territórios criminosos, Estes Park sempre conseguiu manter seus cidadãos alheios a corrupção mafiosa que ocorre de baixo dos panos.

Eu conheço boa parte das pessoas envolvidas com essa corrupção mafiosa, crescendo aqui desde pequeno é difícil não conhecer, e apesar de ter plena certeza de que esses dois não fazem parte oficialmente de nenhuma facção, não duvido que esses dois possam ter contato com algumas pessoas que fazem parte.

Mas fazendo parte ou não de uma facção, as habilidades desses meninos, do grupo deles, ainda mais sendo adolescentes.... Seria um achado para qualquer um dos líderes das facções.

- Normalmente meu pai costuma a secar somente as garrafas de bebidas de casa, mas em algumas pequenas ocasiões, ele resolve ir a um bar qualquer e beber até a cair e sou sempre eu que tenho que buscá-lo. - respondi com indiferença ligando a seta do carro.

Não é surpresa para os que me conhecem, o faro que meu pai ser um alcoólico. O problema é que são poucos que me conhecem tão bem.

Desde a morte de minha mãe a uns bons anos atrás, meu pai se entregou ao mundo das bebidas e das drogas e meu tio - mesmo não querendo - teve que assumir temporariamente o negócio da família - e eu - que alguns anos depois foi passado para mim.

Acelerei ultrapassando rapidamente um carro enquanto mudava de faixa. E escutei Jesus reclamar.

- Faresti meglio a rallentare prima di colpire questa macchina di merda. (É melhor você desacelerar antes de bater este carro de merda)

Eu consegui entender o que o garoto dizia, mas eu estava com presa. Aprendi com os anos que quanto mais demorava para encontrar meu pai em situações como essa, mas estragos eu encontrava.

- Harper... - foi a voz claramente tensa de Jonas que me fez reparar o quão rápido o carro estava e diminuir.

- Foi mal - reduzi ao máximo a velocidade, mas percebi um pouco de hesitação ainda presente nos rapazes - Então, qual o lace do italiano com vocês?

Aquele era um bom quebra-gelo, não podia também negar que estava curioso para entender como aqueles dois e seu grupinho conseguem falar italiano com tanta facilidade.

- Bom, não são todos que sabem, mas eu sou italiano. - respondeu Jesus se encostando nas costas do banco de trás de forma jeitosa.

Elevei minhas sobrancelhas.
Apesar do sobrenome pouco comum, não imaginava que Jesus fosse italiano. É claro que, ele tem um jeito pouco diferente da maioria, como se fosse mais aberto e receptivo do que as pessoas estão acostumadas a serem.

- Sério? Você não tem sotaque.

Um sorriso malandro tomou os lábios de Jesus e pelo retrovisor vi que ele encrava Jonas. Que supunha ter um sorriso similar na cara.

- Posso agradecer a Amber por isso.

É claro que Amber estaria envolvida nisso. Apesar de tudo, queria saber mais sobre ele e como um italiano se juntou aos irmãos Gonzalez e a Amber.

- E como ela fez?

Jonas soltou um pequeno risinho e respondeu:
- Quando Jesus chegou aqui, ele não sabia nem sequer soletrar seu nome em inglês. Amber sentiu dó da cara de cachorro abandonado dele e o ensinou o idioma.

Percebi que Jonas tinha um sorriso provocador nos lábios e Jesus mantinha a cara seria. Eu estava bem no meio de um jogo de provocações dos dois.

- Eu já sabia o básico da sua língua - ele argumentou revoltado - Mas ela não sabia nem o básico da minha língua, mas então um dia ela achou um dicionário muito antigo e praticamente caindo aos pedaços, ele estava perdido pelo... Lugar. - ele respondeu meio hesitante - Ela começou a ler bastante aquele dicionário até aperfeiçoar o básico de italiano e começou a falar comigo nos dois idiomas desde então. - continuou Jesus com um sorriso bobo na cara - Eu ensinava italiano a ela e ela me ensinava a sua língua, e íamos intercalando nossas conversas assim

Então Amber ensinou inglês para ele, e ele em troca a ensinou sua língua. Mas se esse lugar que eles se conheceram é tão ruim como Amber havia me dito, por que eles estavam lá?

Me virei para encarar Jonas.
- Você e sua irmã também são italianos?

- Não. - ele respondeu de forma seca e simplória.

Eu já estava acostumado a sempre receber o mínimo de informações possíveis de Jonas. Ele tem o dom de sempre responder o mínimo possíveis com as menores informações sobre si mesmo.

- Mas não são americanos, não é?

- Somos do Uruguai. - respondeu ele me surpreendendo. - Fomos adotados pelo meu pai quando tínhamos 9 anos.

Eu conheço Jonas e sua Irmã a muito tempo, mas apenas de vista. Eles se mudaram para a cidade a uns 6 anos atrás, talvez. Eu os via caminhando pelos corredores, conversando com seus amigos populares, via aproveitando a fortuna de seu pai milionário a direita e a esquerda, e de certa forma eu os invejava... é claro que isso foi antes de muitas coisas acontecerem na minha vida e antes do sumiço misterioso dos irmãos por quase um ano.

Jonas e Micaela sumiram das vistas de todos depois um escândalo com drogas. Eu sabia que eles estavam no lugar errado na hora errada, mas acredito que eu sou um dos poucos que sabem disso.

Enfim, após o escândalo os gêmeos sumiram, e apareceram apenas um ano depois. Seu pai, por ser muito influente, disse que os mandou para a casa da vó na Califórnia. E todos acreditaram nele.

Mas quando os gêmeos voltaram... Algo estava diferente neles. As posturas, as falas, as atitudes, nem pareciam mais as mesmas pessoas que saíram de Estes Park. E também tinham as cicatrizes...

- Então além de inglês, vocês... - ele me interrompeu.

- Somos fluentes em espanhol e italiano.

Sorri movendo o carro alguns centímetros a mais. Que transito do inferno!

- Imagino que Jesus e Amber tenham parte nisso.

Jonas assentiu debruçando os braços sobre os joelhos para alongar mais as costas.

- Quando eu e minha irmã conhecemos os dois, percebemos que eles trocavam bastante de um idioma para o outro. E como eu e minha irmã já tínhamos tido aulas suficientes de italiano para nos apoiar, além toda aquela convivência.... - Jonas parou por um momento analisando o que dizer em seguida - Bom, aprender a língua foi fácil. E aquele dicionário velho, se é que aquilo ainda pode ser considerado um dicionário, nos ajudou bastante.

Assenti voltando a minha atenção para a rua parada. O rádio não tocava nada agora, apenas as vozes dos locutores repercutido.

O tempo esfriou desde que deixamos o colégio. Mas apesar disso, os vidros do carro já começavam a embasar por estarmos respirando e falando tanto.

- E você Capitão onde aprendeu italiano? - Interveio Jesus.

Encarei brevemente Jesus pelo espelho retrovisor. As vezes há coisas que são difíceis de falar.

- Minha mãe costumava falar italiano. Mas faz um bom tempo que eu não praticava ou ouvia - respondi simplório - Vocês se conhecem a muito tempo?

Mudei de assunto querendo ao máximo evitar falar sobre minha mãe.

- Sim, eu acho. - Respondeu Jesus semeando a cabeça, percebi que ele fazia muito isso quando pensava muito no que dizer.

- Eu e Amber nos conhecemos a quase dois anos atrás.

Sempre parecia surgir um brilho nos olhos do rapaz quando ele citava a Amber. Nos olhos dos dois. Isso era muito interessante, porque eu vejo esses caras todos os dias e posso afirmar que o olhar deles quase nunca se parece com algo brilhoso.

- Conhecemos o Jonas e a Micaela alguns meses depois, certo? - o garoto encarou Jonas e mais uma troca de olhares entre eles aconteceu.

- Alguns meses depois. - concordou Jonas de forma mal-humorada.

Seu comportamento me passava que ele era contra toda essa informação compartilhada que estávamos tendo. Era como se ele sentisse medo de que Jesus me falasse algo que não devesse. Como se tivessem algo a esconder.

- E vocês, sempre se deram bem?

Perguntei apenas por curiosidade afinal, aqueles dois pareciam mais do que unha e carne, se é que isso é possível.

- Na verdade não, na primeira vez que nos vimos, Jesus tentou me matar - Jonas respondeu em um tom acusatório e Jesus gargalhou no banco de trás do carro.

- Você estava muito marrento quando chegou, alguém tinha que abaixar sua bola - Jesus zombou enquanto Jonas revirava os olhos.

- Nós nos odiávamos. Brigamos por dias - Jonas dizia como se tivesse ressentimento em sua voz, mas ao mesmo tempo era claro que ele dizia com um tom de zoação. Jonas era especialista em ambiguidades do tipo.

- Você era muito esquentadinho na época, eu só estava te dando as boas-vindas - Jesus provocou mais Jonas fazendo careta, tenho certeza de que vi Jonas rosnar enquanto revirava os olhos.

Era engraçado pensar que Jonas e Jesus no começo não eram nem um pouco amigos, sendo que desde que Jesus chegou na Phillipez eu nunca os vi separados.

O trânsito ainda está péssimo, e isso me permitiu tirar as mãos do volante e encarei Jonas novamente:
- Uma pena que você não tenha dado nem um mísero soco na cara do Jesus. - provoquei os dois, sabendo que nenhum deles deixaria essa oportunidade de retrucar sem despejar um pouco de informação.

Jonas soltou várias gargalhadas e Jesus revirou os olhos se largando no banco traseiro
- Houve muitos socos. Antes de nós acertamos eu e Jesus tivemos algumas brigas enquanto os meses passavam.

- Algumas brigas? - Jesus repetiu boquiaberto - Nós tivemos várias brigas! Uma vez você me acertou com uma cadeira, repetias vezes!

Engasguei com meu próprio riso enquanto Jesus proferia a Jonas de uma infinidade de xingamentos em italiano. Jonas, indiferente como sempre, encarou o teto do carro entediado enquanto Jesus se lamentava no banco de trás.

- Ele trapaceou no jogo de cartas. - Jonas explicou ainda mantendo a aparência tediosa.

Jesus se exaltou mais ainda:
- Você quebrou a cadeira em mim, fratello! Tenho a maldita cicatriz até hoje.

Jonas faz jus a alguém com "temperamento ruim".

Ele quebrou mesmo uma cadeira em Jesus? Como esses dois podem ser amigos?

- Tiveram muitas brigas assim? - perguntei, porque se eles brigavam com tamanha violência assim, talvez explique boa parte das cicatrizes nas costas deles.

- Essa foi uma das nossas brigas mais leves. - respondeu Jesus se ajeitando nos espaços entre os bancos - Teve uma vez que Jonas me arrastou para uma briga, eu e ele estávamos apostando sabonetes contra outros dois ragazzi, em um jogo de baralho no pátio...

Apostando sabonetes em um pátio??

- E Jonas diz ter visto um deles trapaceando, e como uma pessoa muito sensata que ele é, decidiu virar a mesa em cima dos dois ragazzi. - arregalei meus olhos e encarei o mesmo.

- Não foi bem assim! - Jonas protestou no mesmo minuto - Eles roubaram, na nossa frente! E ainda insultaram a Amber e a minha irmã. Nós tínhamos que fazer algo! Eu puxei Jesus e nós dois brigamos contra os dois na mesma hora.

Tenho a impressão de que seria muito perigoso alguém pisar no calo de Jonas se ele acordar no dia errado.

- E ganharam a luta? Ou pelo menos, acertaram um sabonete na cabeça de alguém?

Jonas virou um pouco a cabeça para Jesus, e eu vi que mais uma vez, eles trocavam aqueles olhares silenciosos que diziam muito mais do que pareciam.

- A sim, três dedos quebrados, uma costela do Jonas lascada e uma série de hematomas, mas ganhamos a luta. - Jesus enumerou nos dedos, um pequeno sorriso aparecia em seu rosto, como se ele se orgulhassem dos machucados. Como um sádico.

Como dois adolescentes podiam entrar em uma briga tão grande.

- Pensei que tivesse sido só uma briga contra dois. Por que parece que vocês foram jogados em uma parede?

- Ah, é porque nós fomos - respondeu Jesus alegre, como se não acabasse de afirmar que ele e Jonas foram espancados - Honor e Titus eram bem grandes. - Ele e Jonas fizeram um sinal de cruz após dizer o nome deles - Que deus os tenha! - disse ele.

Eles os mataram?

- Vocês os mataram? - perguntei mantendo mesmo tom de voz indiferente que Jonas, o mesmo que eu sempre costumo usar.

- Você teria problemas com isso, capitão? - Jesus me provocou e Jonas se virou para mim, esperando uma resposta.

- Eu teria que me importar com vocês primeiro. - respondi no mesmo tom. Jonas deu um pequeno sorriso e voltou a olhar a janela.

- Não fomos nós. - respondeu Jonas por fim, num tom igual ao meu.

Um silêncio pairou no carro, e todos nós ficamos por instantes observando a fila de carro que começava a andar quilômetros na nossa frente.

- Pelo menos ganhamos os sabonetes e a luta. - Jonas respondeu replicando o mesmo sorriso que o que Jesus fez segundos atrás.

Dois sádicos.

- E um enorme esporo de Amber - Jesus sorriu de canto com a fala e semeou a cabeça, Jonas concordou com ele.

Resisti a vontade de revirar os olhos. É claro que a Amber estaria no meio, afinal, eles já se conheciam nessa época. Eu só não tenho noção do quanto.

- Amber?

- Quem você acha que suturava as nossas cicatrizes? - Jonas questionou irônico.

Hesitei por um segundo.
Eles tinham muitas cicatrizes. Eu já as tinha visto. Eram horríveis e nada bonitas. Imagino como deve ter sido para Amber cuidar de tudo aquilo sozinha.

- Amber me disse, que a cicatrizes que vocês dois carregam nas costas foram feitas em lugar ruim. Foi o lugar onde vocês dois a conheceram. - respondi em tom sugestivo que não mostrava bem se eu estava perguntando ou afirmando.

O clima subitamente pesou entre nós. Jonas e Jesus se encararam mais.

Estávamos entrando em um jogo perigoso.

Não era uma boa opção arrancar verdades desses dois. Já observei muitas tentativas não sucedidas de alguns estudantes da Phillipez.

A melhor coisa que eu podia fazer para obter mais informações dos dois era usar aa poucas migalhas que eu tinha como isca para que eles me fornecerem novas informações.

- Você está perguntando ou afirmando? - questionou Jonas com sua voz cortante e determinada.

- Os dois.

Dei a resposta que já havia planejado na ponta da língua.
Jonas me encarou por segundos a mais antes de respeitar profundamente e dizer:
- Nós nos conhecemos em um lugar ruim, e também foi o mesmo lugar que arrumamos as cicatrizes e as brigas.

Aproveitando a deixa eu segui.
- E eu suponho que o tempo que ficaram lá, é relativamente igual ao tempo que conhecem ela.

Eu precisava dessa informação. Ela era crucial para completar finalmente o quebra cabeça.

Eu sei que Jonas, Jesus e todo seu grupo se conhecem a quase dois anos. O problema é que seus históricos têm espaços em brancos com datas diferentes.

Amber tem quase um ano e meio de histórico em branco, Jesus tem pouco mais de um ano, e Jonas e Micaela tem uns 10 meses. Mas se todos eles conheceram ao mesmo tempo, todos no mesmo ano, significa que se encontraram em um lugar específico em um dado momento. e encontraram nesse período. E eu preciso ter certeza disso.

A única coisa que eu sei é que se separaram a quase oito meses atrás. Porque seus históricos têm informações diferentes.

O que quero saber é onde isso aconteceu.

Eu pesquisei. Quando há espaço como aqueles em um histórico só pode significar duas coisas.

A primeira é que a pessoa faltou o ano escolar, ou seja, não frequentou nenhum instituto de ensino. E a segunda é que a informação é lacrada por envolver alguma instituição governamental legal, ou seja, as pessoas dos históricos, teriam vivido em muito lares adotivos, programas de reabilitação, clínicas psiquiatras ou até mesmo instituições governamentais como a cadeia. E então a informação se mantem privada.

O problema é que, se o caso desse grupo fosse o número um, se todos eles tivessem mesmo faltado a quase dois anos escolares eles teriam que estar dois anos abaixo na grade escolar, mas eles não estão. Estão na grade certa para sua idade. Isso só pode significar que eles estiveram envolvidos com alguma instituição governamental.

E se isso aconteceu mesmo. Se eles foram para alguma dessas instituições, fica mais fácil descobrir qual se juntarmos ao quebrar cabeça as coisas que Amber me contou.

Como o lugar era precário, como havia vários deles pelo país, como suas cicatrizes foram feitas lá.... Bom, as tantas opções que eu tinha foram severamente reduzidas.

E se eu juntar tudo isso aos comportamentos e habilidades únicas desenvolvidas por cada um. A influência. A experiência de luta. O controle das facas. Os contatos. E encontrar um lugar onde todas essas habilidades podem ser usadas com excelência as instituições se reduzem para apenas uma.

Tudo que eu preciso é que ele confirme que o tempo que eles se conhecem é o mesmo que os dos históricos.

- Na verdade sim, por quê? - Respondeu Jesus.

Eu já tinha minha resposta.

- Apenas curiosidade.

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