Capítulo 22- Profecia I

Horas depois do incidente desastroso, quase tudo já havia retornado ao estado normal na Floresta Encantada, a não ser por aquelas que despertavam de seus subconscientes.

— O que aconteceu? — Arya questionou erguendo seu corpo composto de nervos doloridos. Conseguia lembrar-se do que fez, mesmo quando estava sendo manipulada, mas sua memória alcançava até o instante em que pousou a adaga de prata no próprio pescoço, nada mais depois disso.

Após se ausentar das recordações penosas, constatou a cama confortável na qual repousava e o resto do recinto humilde. Via-se numa espécie de toca subsola, mas não tão bem estruturada quanto era o reino oculto, aquela se mostrava úmida e com raízes aparentes no que deveriam ser as paredes.

— Curupira e Meredyth guerrearam por sua mente e você meio que sofreu muito, mas já tá tudo bem. — Safira apressou-se em explicar em resumo, colocando um pano molhado na testa dela, enquanto a mulher vistoriava seus próprios braços, estranhando-os. — Pelo menos espero que esteja.

— Água! — pediram Yara e Aurora, em uníssono, despertando nas outras duas camas daquele quarto apertado.

— Que bom que acordaram. Pensei que iam dormir eternamente. — A jovem fez o que foi lhe pedido, pegando a jarra sobre o criado-mudo entre as camas das guardiãs.

— Aquela fadinha dissimulada jogou alguma coisa em mim! — A capitã esbravejou olhando o cômodo. — Mas você já deu um jeito nela, não foi, Safira? — concluiu com tom de alívio e satisfação.

— Se por “dar um jeito” você quer dizer que eu ajudei ela a se livrar das trevas, então sim — sanou colocando água no copo segurado pela espectro que bocejava.

— Ela, com certeza, não falou desse “jeito” aí. — A mulher espectral comentou entre um sorriso cansado que ela interrompeu para tomar o líquido.

— Você achou o Curupira? — interrogou Yara, que não se permitia ficar ineficiente e já levantava.

— Ele tá no outro quarto... — A adolescente de olhos verdes parou-a e a fez retornar para seu lugar, com um olhar de negação. — Deve estar cuidando de Meredyth.

— Ela está bem? — indagou Aurora, mostrando empatia por aquela que passou pela mesma contaminação obscura.

— Você está preocupada com ela? Devia estar preocupada com a Guerreira Do Oriente aqui. — A guardiã da água refutou sarcasticamente a indagação, apontando para Arya, a qual olhava bobamente para seus pés e os alisava sem muita noção de tato.

— Ela vai ficar bem. — A de cabelo verde vivo tomou a palavra colocando a jarra em seu devido lugar, voltando-se para a espectro em seguida —, e Meredyth vai melhorar também, estava descansando, mas já deve ter acordado.

— E como vocês salvaram ela? — A Guardiã da Luz continuou o interrogatório, curiosa.

— Longa história...

— Pelo visto, vamos demorar um pouco mais aqui, então pode começar a contar. — Yara expressou sua impaciência, arrumando seu longo cabelo colorido.

Safira pôs-se a descrever detalhadamente o duelo épico que ocorreu enquanto suas amigas estavam desacordadas. Às vezes, ampliava alguns fatos, tornando-os mais envolventes, principalmente quando ela ingressava em cena.

Depois que o efeito das ervas de Meredyth cessou interinamente e assim que Arya recobrou totalmente seus sentidos, o quarteto saiu pela porta do cômodo baixo. Deram de cara com túneis iluminados por lamparinas no que seria o teto da toca que mantinha certo charme em sua aparência brusca. Enquanto andavam, perceberam algumas rachaduras espalhadas por todos os corredores, os quais aparentavam formar um labirinto e não demoraram muito a encontrar a sala onde eram feitas as refeições.

— Finalmente acordaram. — Curupira cumprimentou-as mantendo a gentileza, acomodado à mesa que esbanjava uma comida vinda completamente da natureza. — Sentem-se.

Obrigada! — A moça agradeceu mentalmente, vislumbrando a refeição que descreveu como divina, bastando apenas pousar seus olhos famintos nos alimentos.

A mesa média possuía exatamente seis lugares, o suficiente para que as convidadas se acomodassem, dado que dois dos assentos, os das pontas, já se encontravam ocupados. Aurora fez questão de sentar ao lado de Safira, ato que Yara reprovou com o olhar, mas não interviu na decisão, então ela e Arya sentaram-se juntas.

— Vocês estão bem? — Meredyth finalmente se pronunciou com uma voz pesarosa e um olhar entristecido que as guardiãs se assustaram em presenciar. A dama da floresta sempre se apresentou com alegria, prepotência e a sinceridade afiada de uma personalidade forte, contudo, aquela que viam nem mais espelhava o encanto que havia em toda a Floresta Encantada.

— Estamos. — A capitã assegurou que sua voz sairia o mais sublime possível para o momento. A raiva que sentia dela se esgotou tão rápida que pôde estranhar a si mesma.

— E você? — questionou a espectro, chamando atenção daquela que voltou-se para ela lentamente.

— Eu estou... — respondeu vagamente, parecendo ponderar sobre seu próprio estado. — Bem, estou bem.

— Então tá... — dizendo isso, Safira foi a primeira a provar da refeição colorida e logo expressou sua satisfação por ter o feito, com um sorriso largo e tensionado por causa da comida que ainda mastigava.

— Eu gostaria de pedir perdão por...

— Meredyth! — O guardião interviu negando com a cabeça.

— Mas foi culpa minha...

— A culpa é de Malléphycus! — Aurora e a jovem ao seu lado refutaram em uníssono.

— Ele só me controlou por que fui fraca e nem toda aquela maldade veio das trevas dele — relatou baixando seu rosto que se cobriu com os fios brancos do cabelo.

— Pelo contrário! — Curupira tomou a palavra e a atenção. — Você, mais do que todos que já foram infectados, foi forte e lutou contra o poder dele.

— Suas íris oscilavam sinistramente entre cinza e vermelho, como se o mal e o bem lutassem em seu interior. — A egípcia cessou a refeição que fazia de modo exagerado, tocando na mão da guardiã na tentativa de reconfortá-la.

— Você é a quem eu mais devo desculpas — afirmou Meredyth, olhando-a em seus olhos dourados. — Usei meu poder para controlar sua vontade...

— Não fez por mal. — Arya reafirmou colocando fim no drama.

— Como eu dizia... — O ruivo retomou bebendo o suco de alguma fruta que Safira não identificava, mas gostou do sabor. — De alguma forma, a floresta percebeu que sua guardiã estava correndo perigo enquanto Malléphycus lançava suas trevas contra você e te enviou poder suficiente para não ser dominada completamente.

— Isso explica os olhos...

— E sua personalidade que não parecia tão afetada assim também. — A hidrocinética complementou a fala da mulher ao seu lado. — Senti um pouco de você em meio à maldade.

— Até me fez um vestido novo. — Safira relembrou apontando seu novo traje em que seu busto era parcialmente coberto por um tecido verde rodeado de folhas.

— Disso eu lembro e não me arrependo — revelou fazendo todos gargalharem, mas regressou a seriedade outra vez, de modo brusco. — Eu só queria que as pessoas aprendessem a respeitar a natureza...

— Sua parte do mal queria transformar o mundo numa selva... — A jovem de dezessete anos comentou plenamente.

— Iria fazer uma coisa ruim, mas com uma boa intenção, foi por isso que toda a Floresta Encantada ajudou-a não só na luta como também em sua libertação. — Curupira declarou, desejando inflar o ânimo da dama.

— A Safira descreveu indivíduos com asas que reluziam e que eles doaram forças a vocês, cantando... — Arya relatou como um questionamento. Os dois guardiões das pontas da mesa fitaram a adolescente levantando uma sobrancelha, e ela deu de ombros, sorridente. — Onde eles estão?

Meredyth assoviou e as duas que não eram guardiãs tamparam os ouvidos, pois esperavam um som ensurdecedor, constatando o tanto de ar que a anfitriã injetou em seus pulmões. Entretanto o assovio era quase inaudível.

 Parecido com um zumbido — mentalizou a moça.

— Aqui estão. — A mulher da floresta proferiu, levando a atenção da egípcia à abertura de entrada, porém, um barulho vindo das paredes tirou seus olhos de lá.

Nas paredes daquela sala também haviam raízes grossas com pequenas fendas, assim como no próprio solo rachado. Foi das fissuras da planta que os brilhos cintilantes surgiram sobrevoando todos ali com graciosidade. A Guerreira do Oriente os olhava com estranheza, perguntando-se onde estariam os homens com asas.

— Onde estão...?

— Fadas — sanaram os quatro guardiões em um coral animado.

— Eu posso ter esquecido de mencionar um mínimo detalhe. — Safira explicou-se gesticulando com o dedo indicador e o polegar.

— Põe mínimo nisso — replicou Arya, esticando sua mão, na qual pousou um daqueles seres alados que zumbiam e eram alvo do seu vislumbre. Todos gargalharam vendo sua cara de insatisfação, a qual modificou quando sua mente a lembrou que deveria ser grata por qualquer experiência. Não havia essas coisas belas no reino oculto, lá nada voava, além dos morcegos...

— Estas fadas habitam na Árvore Mãe. — Depois de controlar seu riso, Meredyth informou olhando para cima. — São as melhores companhias para qualquer pessoa e sou grata a elas por isso. — Enquanto falava, algumas delas encostavam-se a ela como forma de afeto e conforto.

— Sobre essa Árvore Mãe... — a jovem poderosa começou, escolhendo as palavras que usaria —, eu acho que, de alguma forma, posso ter tirado ela do lugar — terminou inconclusiva.

— Isso explica o terreno cheio de fendas e buracos — a guardiã da floresta ponderou atentando-se as paredes —, mas não acredito que tenha sido culpa sua, pois esta árvore, como casa das fadas, é controlada somente pelas mesmas. Estas, sim, levaram-na até você, atendendo seu chamado.

A conversa durou por toda a refeição, na qual tudo foi esclarecido e explicado. Finalmente terminaram e a louça não mais fazia parte do cenário, uma vez que alguns animais foram convocados para levá-la.

— Agora que o Raphaello também já foi contatado, devemos procurar o Noel e saber de novas informações. — Yara afirmou o plano, chamando atenção com seriedade. Safira descobriu naquela mesma conversa que o Raphaello mencionado também era um guardião, o qual residia numa ilha isolada do oceano Pacífico.

— Onde eles estão agora? — questionou a jovem, acrescentando seu namorado à frase.

— Podem estar com Freya, ou já podem ter voltado de lá e estarem na base da Antártida. — Aurora comentou descansando suas costas na cadeira de madeira.

— Eles também podem estar sendo mantidos em cativeiro por ela... — Atraindo olhares com cenhos franzidos, a capitã sugeriu. — Depois de Tutancâmon, ela é a mais provável a mudar de lado.

— Acho mais fácil eles terem ido até essa Freya, já terem voltado para casa e, conhecendo eles, aposto que já saíram novamente em outra jornada. — A adolescente de olhos verdes tentou ser mais positiva que a anterior.

— E a pergunta que não quer calar é: como vamos saber? — Arya inquiriu o que todos se questionavam.

— Você não poderia, por acaso, sentir todo o ar da atmosfera, não é mesmo? — Meredyth interrogou para ela. Curupira apenas observava-as, mas sua mente anciã vagava muito mais a frente em acontecimentos possíveis.

— Ainda não cheguei nesse nível — respondeu desconfortável com autoadmissão.

— Projeção austral! — Aurora revelou acendendo como uma lâmpada.

— Você pode fazer isso? — Yara interrogou incrédula.

— Não sei...

— Você não sabe, ou não sabe se sabe? — indagou a egípcia.

— Eu não tenho certeza, mas é possível e talvez eu precise de sua ajuda. — A espectro informou levantando-se do seu assento com confiança.

— Você sabe que isso seria bem útil em vários momentos dos últimos dias, né? — Safira inquiriu retoricamente, como uma afirmação que fez enquanto a via se preparar fisicamente.

— Ser uma poderosa é estar limitada a sua criatividade, você não poderá fazer algo até que pense em fazê-lo. — Aurora chamou atenção de Arya, estirando suas mãos sobre a mesa, ela levantou prestativamente, então, e pegou-as. — E digamos que eu tive um tempinho para pensar enquanto estava desacordada. Agora vamos ver o que temos na combinação de luz e ar concentrados.

— Aconselho procurarem Maria, ela saberá onde eles estão. — Curupira sugeriu depois de analisar a situação.

Fecharam os olhos, concentraram-se e, em poucos segundos, uma manta reluzente e translúcida, ao mesmo tempo, cobriu o corpo das duas interinamente como uma segunda pele. Passados alguns minutos, todos se encontravam exatamente iguais, sem mover um milímetro de seus corpos.

— Vocês já se projetaram? — Safira questionou aos murmúrios, com uma voz tipicamente fantasmagórica.

— Se você não falar, será mais fácil se concentrar. — A aerocinética reclamou quase sem mexer um músculo.

Mais alguns minutos se passaram e ainda se mantinham como estátuas ali.

— Aurora? Arya? — A senhorita de roupas florestais chamou-as, mas não obteve resposta.

— Parece que já foram. — Yara informou o óbvio, olhando-as imóveis.

— Ótimo. — Safira pronunciou estranhamente e os três guardiões a olharam levantando suas respectivas sobrancelhas. — Não queria que ela escutasse quando eu perguntasse sobre o porquê de não ter dito que é uma fera — concluiu indicando a egípcia paralisada.

— Por que não pergunta a ela? — Meredyth indagou confusa, como se aquilo fosse o mais evidente a ser feito.

— Se ela não contou, então deve ter um motivo para isso — sanou a capitã, cruzando os braços bem desenvolvidos.

— Vergonha...

— Por que teria vergonha? — A jovem redarguiu o julgamento do Curupira.

— Virar uma fera não é tão simples e mágico como muitos pensam. — O ruivo apresentava grande propriedade no assunto abordado. — Além dos vários riscos, um deles é a má formação de certas partes do corpo, por ser, muitas vezes, trágica a mudança em seus organismos.

— Não reparei em nenhuma “imperfeição” no corpo da Arya. — A jovem disse olhando-a de cima à baixo do outro lado da mesa.

— Em mulheres, uma das partes com mais riscos de degenerar na transfiguração é o útero. — A guardiã da natureza esclareceu, e o coração das duas, que se sentavam na lateral da mesa, doeu insuportavelmente na mesma hora.

Enquanto isso, na Antártida, na câmara da esfera reluzente, uma imagem luminosa e translúcida de Aurora e Arya surgiu clareando o recinto. Suas presenças não foram notadas de início pela senhora de vermelho que observava centrada no globo. No entanto, quando as visitantes tentaram se aproximar, Maria virou-se para elas e de sua face transparecia muita aflição que refletia em suas mãos tremulas.

— Que bom ver vocês, José e Noel precisam de ajuda!




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