Capítulo 14- A Todo Vapor II
Seus longos cabelos coloridos dançavam soltos na água, com uma coroa de corais. Conchas cobriam seus seios; um tecido branco envolvia o pescoço; e o pano azul ainda jazia em seu cós. De alguma forma, cresceram barbatanas em seus braços e pernas, as quais estavam enroladas em fitas azuis e rosa, e essas se alongavam por seus pés como se fossem uma cauda. Em sua barriga havia um tridente tatuado.
Fire vislumbrou a dama com encanto e quase não notou quando finalmente perdeu o fôlego. Contudo, antes que a agonia tomasse conta dele, a mulher estalou os dedos e bolhas de ar se formaram ao redor da cabeça dos três. Sentiram um alívio por poderem respirar normalmente e o casal animado começou nadar aleatoriamente. Enquanto King permanecia parado, apenas flutuante na água.
A guardiã aquática nadou até o deus de cabelos escuros e o segurou, mantendo-o calmo. Apontou para um local qualquer, muito longe dali e bem mais fundo do que onde se encontravam.
— Vamos para lá. Vou te ajudar. — Estagnaram, espantados com o fato de ela conseguir falar embaixo da água. — Que foi, gente?
— Você está... falando embaixo da água! — José percebeu que também podia fazer o mesmo e começou pronunciar várias coisas aleatórias sem sentido, enquanto sua namorada apenas revirava os olhos azuis e ria das suas comicidades.
— Vamos logo! — A poderosa apressou-os puxando Fire pelo pulso, o qual nada dizia, pois prendia o ar com cautela desnecessária.
Nadaram por alguns minutos, descendo na diagonal, conversando e observando as maravilhas do fundo do oceano. Chegaram a um local onde a claridade do sol já não penetrava mais aquelas águas abissais.
— Eu não estou conseguindo enxergar muita coisa...
— Vamos ter que nadar quanto mais? — O bruxo questionou depois de Safira. Não se mostrava mais tão empolgado quanto no começo; braços e pernas doíam pelo esforço demasiado.
— Sorte, chegaram a tempo! — A dominadora da água proferiu e os outros não a entenderam. No entanto descobriram ao que ela se referia quando o ambiente pôs-se a se iluminar aos poucos. Peixes, algas e águas-vivas surgiram brilhando intensamente.
Bioluminescência! — José e sua namorada pronunciaram mentalmente, perplexos com a beleza marítima.
— Ali. Vamos! — Diversas coisas se tornaram visíveis, corais coloridos, cardumes diversificados... Inclusive uma grande embarcação de aparência velha. — Nadem para o navio e não toquem em nada que emita luz, alguns são venenosos.
Nadaram um pouco mais, indo em direção ao barco, até que finalmente chegaram perto o suficiente para que observassem perfeitamente seus detalhes. À primeira vista, parecia apresentar um estado quase perfeito: os mastros e velas estavam inteiros e o casco se encontrava intacto. O lodo cobria cada parte do naufrágio, assim como algas e parasitas marítimos.
Desceram para o deck do navio e se dirigiram até a entrada da cabine do capitão. Com sua rapidez, Yara foi a primeira a chegar lá e abriu a porta. Ingressou sem dificuldades, seguida pelos outros três que tiveram algumas complicações. A água que insistia em entrar na embarcação era constantemente rebatida para trás, o que atrapalhava na hora de entrar. Entretanto, depois que finalmente adentraram, constataram estarem secos por absoluto, como se nunca tivessem entrado num oceano.
— Fire, acende as lamparinas, por favor. — A poderosa pediu depois que fechou a porta e o ambiente mergulhou na escuridão. — Acho que a falta de oxigênio as apagou desde a última vez que vim aqui embaixo.
— É... Primeiro eu teria que enxergar as lamparinas. — King retrucou revirando os olhos.
— Posso ajudar nisso. — Respirando fundo, o bruxo reivindicou os olhares. Runks surgiram por todo o cômodo, iluminando-o.
Então vislumbraram um âmbito mais zelado que o esperado. Comparava-se a uma sala de estar numa casa moderna. Com alguns enfeites espalhados pelos cantos e paredes; no teto, lampiões pendurados.
— Agora sim estou vendo. — O deus estalou os dedos e todas acenderam. Os Runks desapareceram assim que a claridade se intensificou.
— Vamos rápido, temos objetivos a cumprir! — A capitã chamou atenção, pegando uma lamparina e indo em direção à escada que descia para o deck inferior. Os três hóspedes do navio a seguiram.
Quando no final da escadaria, encontraram um corredor sinistro. King colocou o dedo indicador na frente da boca e uma pequena chama apareceu em sua ponta. Soprou, e vários disparos de fogo avançaram contra os lampiões do corredor, os quais acenderam em seguida.
— Exibido... Bem, aqui são os quartos disponíveis. — Yara informou quando avistaram melhor o lugar, do qual várias portas faziam parte. — Seguindo o corredor têm os banheiros, refeitório, cozinha, entre outras coisas.
— Precisa de alguma ajuda com os motores também? — Fire questionou para a capitã.
— Não. Inclusive, acho que já está na hora de partirmos...
A dama concentrou-se fechando os olhos, e o navio deixou seu repouso para balançar junto com o mar. Repentinamente, um impulso os desequilibrou e a embarcação começou se movimentar por baixo da água.
— Vão para seus quartos... Safira, depois vem me ajudar com a comida.
Havia apenas quatro quartos, os dois adolescentes se acomodaram em um, King e Yara ficaram com os outros dois, sobrando apenas um. Depois que se organizaram no aposento que não apresentava umidade, José e sua namorada foram até a cozinha e lá encontraram a anfitriã do transporte subaquático.
— Você pode pegar a caixa na dispensa — pediu a guardiã para o bruxo, apontando uma porta da cozinha, e ele se dirigiu para onde foi indicado. Na dispensa jazia o caixote que ela havia jogado no mar, encontrava-se cheio de frutas e legumes. — Você pode ir fazendo o arroz, não sou muito boa nisso...
O clima estava muito agradável enquanto preparavam a comida com ânimo. José não deixava que as senhoritas parassem de gargalhar. Descobriram várias coisas interessantes sobre a mais velha, inclusive que ela era uma guardiã e o que isso significava. Suas aventuras por todo o mundo e um fato interessante: como aquele era um antigo navio pirata e não podia ser visto, a poderosa o fazia navegar por baixo da água, o que tornava mais rápidas as viagens.
Algumas vezes, Safira transparecia um pouco de infelicidade e Yara não demorou em perceber:
— O que você tem, querida? Está cabisbaixa — interrogou olhando-a e o bruxo a fitou com preocupação.
— Não é nada — respondeu seca, quase num tom ríspido.
— Você está bem, amor? Parece diferente desde que entramos na água. — Foi a vez de seu namorado se pronunciar. — Você tocou em algo brilhante lá fora?
— Não! É só que... — Parou de cortar o pimentão e se dirigiu à dama com sinceridade. — Fiquei meio pensativa depois que vi o jeito como olhou para José lá em cima.
Inesperadamente, a mulher começou dar risadas contidas e o adolescente a olhou com curiosidade.
— Vou contar um segredo a vocês... Em nosso mundo existem lendas e profecias. Uma dessas fala sobre uma dama do mar que seduz os homens que a olham. É quase impossível resistir e todos acabam enfeitiçados pela sua beleza. Porém aqueles que já amam outra pessoa não cairão nesse encanto. — A guardiã narrou brevemente e já sabiam que se referia a ela mesma. — José não sente nada por mim, tive essa certeza quando o olhei nos olhos. Ele te ama de verdade.
Terminou, e os dois se olharam fixamente exalando o amor. Tinham certeza de seu amor um pelo outro, contudo, aquilo acabou com as possíveis incertezas restantes que havia.
A atmosfera romântica foi por água a baixo quando uma risada alta e excêntrica reverberou no recinto. Os olhares se puseram na entrada da cozinha, onde Fire se encontrava.
— Eu poderia jurar que pensei estar sentindo algo por você, mas, pelo visto, fui apenas enfeitiçado por uma mera profecia — cuspiu as palavras com rispidez e tristeza interna.
— Talvez seja só isso... — retrucou com um suspiro. Não havia quem conseguisse imaginar o quanto aquilo a martirizava todos os dias e ninguém sofria com aquela profecia mais que ela. O fitou em seguida.
— No entanto a lenda tem uma segunda parte — a olharam curiosos, depois que revelou enquanto mexia a colher dentro da panela —, a segunda parte diz que apenas um único homem se apaixonará verdadeiramente pela dama do mar em sua vida.
— E... como vou saber que esse sou eu? — King cortou-a, com pressa.
Ele está realmente atraído por ela/mim... — Foi o que pensou a mente dos três que o ouviram.
Seu passado guardava um longo tempo sem ao menos se afeiçoar por outra pessoa, muito menos sentir tanta atração como experimentava. Não aguentaria a si mesmo se descobrisse que os seus sentimentos naquele momento eram apenas efeito de um mero encanto. Tem que ser real!...
— Bem, a profecia narra que a mulher também só poderá se apaixonar por um homem em sua vida, somente o escolhido — esclareceu Yara, olhando-o fixamente.
— Então a única forma de eu ser o escolhido e não apenas mais um pobre enfeitiçado, é fazendo você gostar de mim? — Fire inquiriu perplexo de indignação.
— Ninguém faz outra pessoa gostar dela...
— A não ser que use um feitiço profético... — José interrompeu a conversa dos dois e se pôs a cozinhar novamente, depois que recebeu olhares censuradores.
— Os homens que caem no feitiço não gostam de mim, eles me desejam intensivamente, quase como animais irracionais — elucidou-os tampando a panela. — As pessoas não criam o amor do nada, elas devem cultivá-lo.
— Então, como eu faço para cultivar seus sentimentos? — Aproximando-se dela, o deus indagou.
— Que tal um duelo? — questionou estendendo a palma.
Sério isso?! — Os mais novos se questionaram em consciência.
— Aceito! — Quando suas peles entraram em contato, vapor emanou do toque.
— Resolvido. — A poderosa soltou a mão de King.
Seus olhos azuis cintilantes adotaram um brilho intenso. Ela suspirou profundamente, parecendo aliviada por tirar um enorme peso das costas, e o navio começou balançar mais que o normal. José e Safira tiveram que se agarrar nos móveis da cozinha para que não caíssem e segurar as panelas com a comida. Depois de poucos segundos de turbulência na navegação, Yara chamou atenção deles:
— Vamos subir. — Seguiram-na até o que seria a cabine do capitão, por onde entraram, e a mulher abriu a porta de entrada.
Navegavam sobre as águas do oceano, viajando livremente sem que terra alguma fosse vista no horizonte. O sol ofuscava os olhos e a brisa refrescava a pele.
— Nossa! — Foi o máximo que os dois jovens conseguiram dizer quando saíram.
— Gostaram? — Apenas assentiram com a cabeça. — Vão lá para cima. — Ela indicou a parte superior do navio, em cima da cabine principal.
O casal subiu para lá. O bruxo apressou-se em mexer no leme, entretanto, por mais que girasse o aparelho, nada acontecia. A capitã andou até o outro extremo do navio e virou-se para seu entusiasmado oponente, que se encontrava estagnado, perto da porta.
— Pronto? — Yara o encarou sorrindo maliciosamente enquanto aquecia seu corpo, estalando-o. Fire ainda fitava a paisagem que era quase toda azul, por causa do céu limpo e do mar brilhante.
— Depende... — respondeu espantando a tensão do corpo, movendo os músculos dos braços e pernas exageradamente. — Vou deixar claro que não quero te machucar.
— Quando estiver pronto. — Ignorou sua conversa fiada, revirava os olhos.
— Pode vir...
Antes que terminasse de falar, um jato d’água já avançava contra ele. A dama atacou usando as palmas e King se defendeu à altura, lançando chamas com as mãos. O encontro entre as duas ofensivas gerou uma explosão de vapor que tomou conta da embarcação. Os duelistas estavam mais para o estibordo, o lado direito do navio, para que não fossem atrapalhados pelo mastro no centro.
— Essa chama é tudo que tem?! — Enquanto intensificava sua técnica, a mulher indagou com deboche.
— Já que você insiste — rebateu o deus convicto. Seu fogo aumentou de potência, porém, ainda não era o suficiente para acabar com o jato d’água e esse se aproximava cada vez mais, enquanto as labaredas diminuíam.
— Esperava mais do rei do fogo — zombou em português, com a certeza de que ninguém entenderia. Os dois adolescentes realmente não compreenderam, todavia, King apenas sorriu maleficamente.
— Eu não sou o rei do fogo. — Surpreenderam-se quando ele contestou também em português. — Eu sou o deus do fogo!
O avanço aquático alcançou-o, mas, antes que o acertasse, uma labareda de flamas o envolveu como um casulo. O fogo evaporou todo o líquido lançado, deixando os que assistiam boquiabertos. Ele juntou os braços ao corpo e jogou-os para os lados, extinguindo as chamas que o rodeavam.
Logo em seguida, perceberam que o fera havia se transformado em meio à labareda e suas correntes já tilintavam com seus movimentos. Sentia-se liberto após se livrar daquela roupa apertada de Curupira.
Sobrando apenas um pouco da névoa causada pela evaporação da água, Fire não enxergava muita coisa além da neblina concentrada ali. À sua frente, Yara apareceu de repente, num pulo alto em sua direção. Ela surgiu disparando com um chute voador, o qual King segurou com a palma enluvada.
— Vamos ver como se sai numa luta corpo a corpo. — A capitão atirou as palavras cerrando as pálpebras coloridas, fazendo o mesmo com os punhos.
— Pode tentar me acertar — retrucou ainda segurando seu pé.
A dama recuou desprendendo-se e avançou novamente, dessa vez desferindo socos ágeis e ligeiros. O deus pôs-se a revidar à altura e desviar enquanto se afastava para trás. Poucos golpes realmente faziam efeito, pois eles eram defendidos ou desviados. Lutavam deslizando pelo deck do navio, quase como uma dança sincronizada de golpes. Uma valsa violenta.
Então se afastaram um do outro, com pulos baixos para trás. Subiram com equilíbrio na borda do navio, em lados opostos, olhavam-se esbanjando superioridade. Suas respirações já transpareciam cansaço, mas seus olhos mostravam desejo. Uma vontade louca por algo ainda desconhecido.
— Está cansado, deus do fogo? — Yara inquiriu debochando, porém, também suspirava.
— Não tanto quanto você, capitã. — Fire contrapôs recuperando o fôlego.
Encararam-se com o olhar analista e previram o avanço oponente. O pirocinético lançou uma bola de fogo e a guardiã desviou, atacando com um disparo d’água. Poucos segundos depois, estavam correndo com agilidade pelas bordas do navio, assaltando um ao outro à distância. Seus ataques às vezes se chocavam e em outras eram contornados.
— Vamos dificultar um pouco. — Com um sorriso sádico, a mulher propôs. Seus punhos foram envolvidos por um líquido, imitando as luvas de boxe. Correu rapidamente em direção ao seu inimigo.
— Gostei da ideia. — Suas mãos se envolveram em chamas flamejantes e ele revidou. Encontravam-se ao lado do mastro principal, trocando socos poderosos.
Uma nova disputa de golpes encantou o casal que assistia com os olhos arregalados. Entretanto eles não se preocupavam mais em desviar, apenas atacavam. Os murros fulgentes do deus sempre iam de encontro com os socos envolvidos em água da poderosa. Dos impactos causados pelo encontro dos golpes emanavam grandes massas de vapor.
A neblina que já havia se dissipado os cobriu outra vez e a visão dos dois jovens encontrou certa dificuldade.
— O que acha de um duelo de monstros? — Fire indagou enquanto ainda disputavam com ardor.
— Me parece uma boa ideia. — Yara assentiu e girou no ar dando um salto para trás.
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