Capítulo 1- Antes Da Morte I
§ JOSÉ §
Safira parecia estar conversando com alguém, porém, encontrava-se sozinha entre as árvores diversas. Não consegui chegar mais perto sem ser percebido e ela não aparentava surpresa com a minha presença. Virou-se de súbito e nossos olhares se chocaram suavemente, como gotas de orvalho em folhas tremulantes.
— O que faz aqui, José? — perguntou como se eu estivesse em um interrogatório.
— Eu sempre venho aqui. — Tentei acalmar os ânimos que constatei em seus orbes azuis iguais safira. — E você? Não é perigoso uma garota andar sozinha há esta hora? — Era fim de tarde, momento que o céu misturava cores quentes do dia e os tons frios da noite.
— Ainda não está tão tarde e eu sei me cuidar muito bem sozinha. — Mostrava irreverência como se nada a abalasse.
Nós já havíamos trocado palavras antes, mas aquela já havia batido o recorde de maior conversa que tivemos. Nunca insisti muito, pois percebia o receio que ela sentia desde os primeiros anos escolares que cursamos juntos. Será que sou feio demais?
Naquele momento, nossas vistas se traçaram de uma forma que eu não queria, em um silêncio constrangedor. A floresta à nossa volta fazia a calmaria ecoar, não que eu estivesse calmo.
— Venho a-aqui quando estou com tédio — gaguejei vendo a moça se divertir com isso. O que é que eu estou fazendo? — Às vezes as árvores parecem uma companhia melhor que os humanos.
— Te garanto que elas sempre ouvem o que as pessoas dizem. — Transparecia mais calma, pelo visto, eu havia acabado de encontrar o assunto dela.
— Claro, não tem como elas fugirem disso — tentei fazê-la baixar a guarda usando do bom-humor —, afinal, não se levantam e andam para longe.
— Iria ser engraçado se saíssem andando. — Sorriu Safira, as curvas simétricas do seu semblante eram uma obra divina, em mistura com lindos orbes azuis e os cachos marrons. — E eu gostaria de saber o que elas têm para dizer...
Mais uma vez, o silêncio tomou conta de tudo, não parávamos de olhar nos olhos um do outro. Naquela moça parecia haver tudo que se precisa encontrar na pessoa certa, ela possuía o necessário em suficiência e na medida correta. Demorei alguns anos para perceber, mas, notando isso, acho que me faltou coragem para exteriorizar meus sentimentos.
Tentei buscar qualquer assunto para quebrar o gelo:
— Eu soube que seu pai... — comecei e, pela expressão da adolescente, vi que não gostou.
— Henzo não é meu pai! E é verdade, ele quer derrubar a floresta para construir uma fábrica no lugar, mas eu estou criando projetos para acabar com essa ideia.
— Entendi, mas qual vai ser o tamanho dessa fábrica? Que é preciso destruir toda a floresta! — Fiz um questionamento retórico, pois gostaria de mostrar apoio. — Além de que não adianta construir fábricas se só tem uma cidadezinha próxima.
— Deve ser este o motivo. Pode estar fazendo isso para atrair mais pessoas. — Sua voz parecia sintonizar com os sons da fauna.
— É difícil se sentir atraído por um lugar que tem um prefeito corrupto. Sem ofensa!
— Concordo, parece até que Henzo só quer fazer isso por que o pai do John está investindo muito.
— Pai do John?! — indaguei com uma indisfarçável cara de surpresa. — O empresário?
— Este mesmo. Acho que foi ele quem botou isso na cabeça do meu padrasto.
— O John também não parece a melhor das pessoas para se ter uma amizade. — É... Até que a conversa está fluindo bem.
— E o pior é que nossos pais querem nos ver juntos — ela fez uma expressão cômica de nojo, despertando meu imperceptível sorriso —, Deus que me livre!
— Voltando para seu projeto... — Nós dois mostrávamos não gostar daquele assunto, então mudei o rumo dele. — O que eu devo fazer para participar?
— Acho que só precisa pedir para entrar... — Safira estacionou a fala, surpresa, parecendo pensativa. — Além, é claro, de se empenhar para proteger a natureza.
Começamos circular lentamente ao redor de um eixo invisível, mirando toda a natureza bela ou a beleza um do outro.
— Tão fácil? Pensei que precisaria de algum teste, ou coisa do tipo.
— Não, só de ter a sua presença já é o suficiente... — Sua frase foi interrompida quando baixou a cabeça, como se punisse mentalmente, dando um suspiro, por fim. — Quero dizer, ter mais uma pessoa para ajudar.
— Entendo... — Mirando o fenótipo tão belo quanto carvalho escuro, suspirei. — Sua pele é tão bonita.
— O quê?! — Nossa translação cessou bruscamente pela exclamação da ativista surpresa, ou indignada, não entendi ao certo.
— A-as árvores são tão bonitas! — gaguejei, apontando uma planta qualquer que se estendia por ali. — As árvores são...
— É, são sim...
Antes que pensássemos em voltar ao circular monótono ao redor um do outro, meu impulso foi mais forte que a sensatez.
— Você quer sair comigo? — questionei sem, ao menos, pensar, mas também sem nenhum arrependimento. Acho que já está passando da hora de dar um passo adiante, nem que seja em direção a queda. — Digo, para falar sobre o projeto, tipo uma reunião ou talvez um...
— Eu aceito. — Ela concordou como uma deixa de despedida, mas, antes de nos afastarmos, chamei sua atenção.
— Só mais uma coisa! É... Eu às vezes te olhava quando estávamos na escola e percebia que me olhava também, mas não conversava contigo porque tinha vergonha ou medo, sei lá... Mas e você? Por que não falava comigo? — Sempre prezei pela sinceridade, a verdade cabia em todo canto, sendo ela qual fosse.
— Eu não posso dizer, mas me arrependo de não ter feito isso antes... Você parece bem mais verdadeiro que minhas "amizades" interesseiras.
Senti meu rosto adormecer. Por favor, não esteja vermelho...
— Acho que eu podia ver sua essência mesmo que não fôssemos tão próximos, principalmente sua inteligência... E depois de tanto “bom dia” e "olá" apenas, foi legal conversar com você.
— Com você também! — Me apressei em retribuir o elogio. — Meu intelecto não chega nem ao rastro do seu.
Tomei seu belo sorriso nos lábios carnudos como a melhor resposta possível. Nós cuidadosamente apertamos as mãos e saímos em direções diferentes. O meu rumo, com certeza, era o céu, pois eu me sentia nas nuvens e muito realizado. Logo percebi que o silêncio havia acabado e as árvores estavam agitadas outra vez, não pelo vento, pois a brisa não conseguiria levar uma folha sequer, era como se elas conversassem entre si. Deixei de lado essa paranoia e apressei o passo em direção a minha casa, não muito longe dali.
•••
Chegando ao meu destino final, senti o ar mais pesado sem entender a causa daquela carga negativa repentina. Da varanda florida, já percebi que meu pai não mais se encontrava no trabalho, e entrei. Havia algo de errado, ele se mostrava estranho, assustado com alguma coisa.
— Por onde o mocinho andou?! — interrogou de súbito, fechando a porta imediatamente depois de eu entrar.
— Na floresta, e você? — perguntei, sem entender o motivo de sua exaltação que o fazia se mover de modo monótono pela sala de estar. — Por que demorou tanto dessa vez?
Ele havia ido trabalhar anteontem, mas não voltou para casa desde então, apenas hoje. Normalmente, o filho estaria desesperado pela ausência do pai, mas eu... já estava acostumado de certa forma. O pintor era muito esforçado no que fazia, houve vezes de viajar até internacionalmente para concluir um serviço ou vender seus quadros.
— Na floresta?! E você não escutou nada?! — Joseph simplesmente ignorou minha pergunta, piscando, sem perceber, os olhos cinza.
— Não, o que aconteceu?! — Nunca o vi daquela forma, geralmente era mais sereno em resolver os problemas, quaisquer que fossem.
— Estava voltando para casa quando soube que ouviram um tiro na floresta e...
— Devem ter sido apenas os malditos caçadores... — Abominávamos aqueles matadores cruéis de bichos indefesos.
— Mas eu pensei... pensei... Nada! — Então era isso, ele estava assim por achar que eu corria perigo, não era nada mais que preocupação paternal. — Vá dormir, amanhã você tem aula e eu vou logo avisando que é de casa para escola, e da escola para...
— Amanhã é sábado e eu vou sair! — O interrompi antes que ele me proibisse.
— Você pediu a quem? Posso saber? — Se mostrava tenso, nervoso e confuso ao mesmo tempo. — Você é menor de idade.
Acho que eu falei cedo demais sobre puxar no meu pé...
— Você sempre deixou que eu saísse e agora quer me prender! — Sempre fui livre para andar pela floresta, que era nossa única vizinha, o que mudou?
— Qual a parte de “ouviram um tiro” você não entendeu?! — Explodia de tensão.
— Mas...
— Sem mas, por favor, já para o seu quarto.
— Boa noite! — gritei, arrependo-me em seguida, mas não voltaria atrás.
Subi para meu cômodo com batidas fortes nos degraus, fechei a porta com toda minha força, deitei na cama e pensei muito sobre tudo que estava acontecendo na minha vida e no que iria acontecer. Em relação à escola, a esse tiro, a Safira e seu projeto, ao meu pai...
§ JOSEPH §
Não posso mais baixar a guarda... Sinto que ele retornou e está vindo para cá... Porém não existem tantas formas de proteger meu filho senão falar tudo que precisa saber, mas também não posso contar a verdade, não ela toda... — Os pensamentos frenéticos infestaram minha cabeça enquanto buscava água para me acalmar. — Pelo menos, por enquanto, José precisa pensar que está tudo bem...
§ JOSÉ §
Não acordei durante a noite, então não me lembrava de nada, mas sei que tive um sonho estranho. Tudo estava branco num cômodo esquisito e algo ou alguém me dizia: "Você precisa morrer para ter vida, morrer para ter a vida..." Deve ter sido por causa do que Joseph me falou no dia anterior, minha imaginação era muito fértil.
Na manhã seguinte, meu pai se encontrava em casa, o que não era muito comum, já que ele também trabalhava ou seja lá o que fazia, no sábado. Acordei com batidas na porta do meu aposento e sendo chamando.
Tomei um tempo para refletir sobre o sonho, pareceu-me tão real, por mais que fosse apenas uma ilusão... Não demorei tanto para que minha porta não sofresse ainda mais com a pressa do artista preocupado.
— O que foi dessa vez? A casa está pegando fogo? — inquiri sonolento, depois de descer as escadas e encontrá-lo na mesa da sala de estar.
— Bom dia, flor do dia! Pensei que ia dormir o sábado todo. — Joseph transparecia animação, diferentemente do que eu vi ontem.
07h45min de uma ensolarada e energética manhã.
— Um ótimo dia, pelo que eu estou vendo — ironizei, pois acordar de bom humor, para mim, era tão raro quanto encontrar um diamante, ainda mais quando isso acontecia logo cedo —, se continuar assim, acho que a casa pega fogo antes de anoitecer.
— Deixe de drama, vá comer alguma coisa. Temos que sair o quanto antes, pois nosso destino é um pouco além do aquecimento.
O aquecimento era uma corrida/caminhada que fazíamos todos os dias que meu pai estava em casa pela manhã. Além de treinamento de alguns tipos de lutas. "Só para começar o dia direito" ele dizia.
"Você tem um jeito leve de pegar pesado", era o que eu falava todas as vezes antes de começar e ele sempre ria. Não sabia o porquê daquilo, nem via necessidade realmente, nunca pretendi ser lutador, mas bem que gostava do meu abdômen definido.
•••
Saímos correndo vagarosamente pela estrada deserta, onde não passava ninguém além de nós, até entrarmos na trilha da floresta.
— Estamos indo por um lugar diferente — pronunciei, querendo confirmar minha observação. — É um atalho?
— Não, nós só estamos indo para um lugar diferente — revelou, correndo à frente. Era um homem de 39 anos, os quais não aparentavam em seu corpo bem moldado, apenas no cabelo grisalho.
Nós morávamos perto de duas florestas: uma pequena com poucas árvores, pois já tinham sido cortadas muitas, parecendo mais um cemitério de troncos, do lado esquerdo para quem saía da minha casa, ela que nos separava da cidade. A outra do lado direito, na qual eu me via ontem, que era grande o suficiente para estar vagamente perto da minha casa e da cidade; destinada a ser derrubada pelo prefeito.
Nós costumávamos ir à floresta grande, só que um pouco perto da estrada, não para aquela parte bem no coração da flora. O dia era escuro lá, talvez por causa das gigantescas árvores muito próximas umas das outras.
— Eu posso saber o porquê de estarmos indo tão fundo na floresta hoje? — questionei confuso.
— Foi onde o tiro foi ouvido, ontem.
Por que diabos estamos indo em direção a onde teve tiro?!
— Achei que estivesse preocupado e não querendo ir em direção ao perigo...
— O policial me ligou, explicou quase toda a situação. — Ele não falava tudo, era óbvio, talvez por estar cansado da corrida.
— E por que ele te deu informações se você é só um pintor? — indaguei quando pareceu que já estávamos chegando perto do acampamento no meio da grande floresta.
— Acredite, você verá o porquê de eu estar indo e levando você...
Apenas naquele instante lembrei quem, além de mim, estava na ali ontem. Nossa! Como não pude perceber isso?! Sem notar, apressei o passo mais que nunca.
— O policial contou a você o que aconteceu? — interroguei, recordando-me de Safira. Espero que ela esteja bem! — Quem atirou? E por quê?
— Não. Ele me chamou exatamente para saber se tenho alguma informação, já que sou quem mora mais perto do ocorrido... — Diminuímos a velocidade.
Cheguemos num lugar, dentro da parte densa da floresta, um pouco mais aberto, onde as pessoas costumavam acampar. Havia uma estrada de terra, na qual se avistava alguns carros como o da polícia, os de repórteres eufóricos e de curiosos desocupados. Um tumulto se formava e tomava maiores proporções.
— Finalmente você chegou — cumprimentou o antipático policial, no qual corriam rios de suor. Aparentemente, ele não dava conta daquilo. — E melhor ainda, trouxe seu filho. Eu já estava ficando maluco aqui.
— Então já pode nos dizer para quê viemos até aqui. — Joseph tomou a palavra, querendo acabar logo com a situação.
— José? — Alguém chamou de algum lugar.
Era Safira, ela andava em nossa direção e em seu encalço vinha o prefeito. Atrás deles se amontoavam vários repórteres curiosos, tendo como objetivo a melhor manchete para uma cidadezinha pacata.
Não iríamos conseguir resolver nada em meio àqueles curiosos, por isso fomos para uma das cabanas daquele acampamento e nos trancamos lá.
— Então, é por isso que vocês estão aqui — suspirou o agente, direcionando sua afirmação mais para mim. — Esta moça relatou que estava com você ontem, aqui na floresta. Depois disso, o prefeito mandou chamá-lo com urgência.
— Como assim?! — O murmúrio gritante partiu de meu pai.
Devia ter contado que havia estado com a moça...
— É isso mesmo! — bradou o homem de terno preto como seus olhos, com a raiva transparecendo em seu rosto. — Quem você está pensando que é, para andar com a minha filha? Seu...
— Olha o que você vai falar! — Joseph o enfrentou imponente. Poucas vezes ele era bem duro comigo, mas não sabia que o pintor podia ser tão ameaçador assim. — Se era só para isso mesmo, já podemos ir, pois nós não sabemos de nada.
— Não, pai, eu quero escutar a história — declarei, parando-o em seu caminho até a porta trancada. Olhei para minha colega, em seguida. — E o que Safira tem para dizer.
— Bem, como eu aleguei antes — depois de limpar a garganta, começou a jovem que parecia envergonhada —, nós estávamos juntos na floresta, conversando apenas, e depois nos separamos. Eu estava vindo nesta direção quando escutei um barulho e corri para ver se havia mais algum imbecil matando animais. — Sentada numa das camas disponíveis do casebre, dizia sem disfarçar a raiva que sentia. — Quando cheguei, vi o Thom caído, desmaiado no chão, e um cervo correndo para longe daqui.
— Thom! O caçador? — interrogou meu pai, surpreso.
Incrível como todos se conhecem em cidade pequena...
— Este mesmo — o policial confirmou —, o qual disse que foi atingido na cabeça por um galho que não viu de onde veio, quando estava caçando o cervo.
— O policial presumiu que tinha sido eu a culpada — retomou a ativista, revirando os olhos —, mesmo com meu depoimento de que não foi. Além de Henzo...
— Seu pai! — corrigiu o próprio.
— Padrasto — Safira tossiu em resposta —, ele botou na cabeça que você tinha alguma coisa a ver com isso. — Referia-se a mim.
— Desculpe-me — iniciei sem querer parecer rude —, mas não há participação minha nessa história.
— Claro que há! — refutou o prefeito, rispidamente. — E o que você estaria fazendo na floresta?
— Nada que seja do seu interesse... senhor. — Enfrentei-o com o olhar. — Seguindo a minha vida.
— Ele estava ficando comigo! — interviu Safira, levantando velozmente como se quisesse apaziguar a situação.
— O QUÊ?! — Henzo e Joseph gritaram em uníssono, perplexos.
Com aquela exclamação pôs-se um fim na pouca civilidade que havia entre os dois. Antes que tudo se tornasse um escândalo de xingamentos, fomos para nossa residência, em busca da paz, pelo menos, era o que eu achava que encontraria...
Joseph me contou que os dois eram como rivais por terem opiniões diferentes desde há muito tempo, minha união com Safira seria uma afronta para eles, mesmo que não entendêssemos o porquê.
O que para os dois foi um desastre, para os repórteres se tornou um prato cheio de matérias. Trataram de espalhar a notícia falsa de um novo casal, "Romeu e Julieta", ateando fogo na palha seca.
Depois de ouvir sermões do por que aquela família era depravada pela corrupção, fui proibido de botar o pé para fora de casa pelo resto do sábado. Por isso não ouvi as invenções e mentiras que criaram ao nosso respeito, sorte minha morar isolado do mundo. Nem imaginava pelo que Safira estava passando...
O domingo atrelou-se ao seu antecessor, e a monotonia fez com que o tempo parecesse não passar mais... Foi quando chegou a tão esperada e temida segunda.
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