Capítulo 9- Os (Não) Elegidos II
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Algumas horas após o alvorecer de Quartis, José usou de sua boa vontade e da costumeira curiosidade para levar o café-da-manhã até o quarto da guerreira sarama. Caminhava sem tanta pressa, pois, depois de aprender a teleportar, andar sempre lhe trazia calma a mente, pelo menos, na maioria das vezes. Viu crianças correndo, entusiasmadas; alguns civis da alta classe que lhe cumprimentaram; e ainda observou indecifráveis seres místicos alados através das janelas de um dos corredores.
Sua caminhada só estacionou quando uma porta abriu enquanto passava e a guerreira ratazana saiu por ela, arrumando o cabelo branco; suas angulosas vestes claras um pouco amassadas. A mulher lhe lançou um olhar surpreso antes de se voltar à passagem ainda aberta, por meio da qual o rapaz loiro constatou a dama víbora enrolada nos lençóis com o mesmo semblante da outra, possivelmente desnuda.
— É... — pronunciaram os três em uníssono.
— Tenham um bom dia. — Não esperou que elas respondessem sua fala, apenas se retirou dali o mais rápido que pôde para evitar que o constrangimento se prolongasse.
Balançou a cabeça para anexar em seu pensamento que se qualquer relacionamento que as duas marcianas tivessem fosse do interesse dele, elas teriam lhe contado, então só precisava deixar de pensar no assunto. O que não foi tão difícil quando notou o aglomerado de pessoas mais à frente, do qual depressa se aproximou.
— Aposto dez magnotes como não consegue atravessar o corredor sem chorar. — Um dos quatro adolescentes alegou em tom desafiante para outro do grupo. Todos aparentavam a mesma idade do bruxo.
— E eu aposto vinte. — O que apostavam era o dinheiro que circulava por toda Marte.
— Espero que estejam prontos para perder. — O desafiado inflou os pulmões com o olhar focado no final do caminho.
— Esperem, olhem. — O quarto e mais baixo dos jovens levou a atenção até José, o qual estacionou. — É o Bruxo da Natureza.
— Bom dia...
— Então, bruxo, nós quatro apostamos, cada um, dez magnotes como você não consegue atravessar o Caminho das Falsas Lágrimas sem aparentar tristeza. — O que antes era desafiado provocou o moço de veste mística esverdeada. Devia ser o líder do quarteto.
— Obrigado pela oferta, porém, devo recusar. — O riso que os rapazes emitiam lhe trazia péssimas recordações do tempo em que frequentava a escola, por isso preferiu ignorar, era o que fazia em sua antiga vida.
Seguiu sem olhar para trás, com a bandeja prateada em suas mãos. Depois de poucos passos, uma angustia repentina o alcançou, seus olhos azuis logo marejaram. Em situações normais, poderia achar que não teria explicação, porém, sabia exatamente o que estava acontecendo.
Então é verdade, a morte do amigo a deixou desestabilizada. Ainda bem que me preparei para isso...
Enquanto os adolescentes observavam apenas suas costas, o loiro foi envolvido por um manto de serenidade que o fez suspirar de alívio. À medida que os que o assistiam exclamavam surpresa, ele agradecia mentalmente ao seu irmão telepata por ajudá-lo a suportar a tristeza. Antes de ir até ali, pediu ao dragão que protegesse sua mente, o que teorizava funcionar, já que as emoções partiam do psicológico. Mantinha o receio por causa da distância entre ele e outro, contudo, isso não pareceu ser um empecilho, o que talvez tivesse sido no dia anterior.
Chegou à porta de acesso ao aposento da guerreira e bateu na madeira escura. Enquanto esperava que fosse aberta, deixou seu orgulho apreciar o espanto que os jovens ainda mostravam ao vê-lo sorrir. Pensou em percorrer o resto do Caminho das Falsas Lágrimas para mostrar que podia cumprir o desafio, entretanto, sua atenção foi requisitada.
— Desculpa, vou tentar me controlar! Agora me deixa em paz! — Foi a única coisa que ouviu através da passagem trancada.
— E se eu estiver trazendo comida? — Sabia que ela não havia feito nenhuma das refeições do dia precedente, devia estar com uma fome feroz.
Pôde escutar os passos lentos e quase inaudíveis, em seguida, a porta se afastou para apresentar a ígnea de íris ainda mais vermelhas que o comum. Com os olhos fundos, ela encarou o loiro antes de observar a bandeja que trazia consigo. Também ficou impressionada com seu semblante acalentador, quando já deveria estar chorando.
— Obrigada... — Tomou a prataria prateada para si e regressou para sua cama sem fechar a abertura, o que José entendeu como a deixa para sua entrada. — Espero que eu não tenha deixado todos preocupados.
— Alguns sim, outros só ficaram curiosos em conhecer o famoso Caminho das Falsas Lágrimas — enunciou em tom de misticismo após fechar a passagem e se aproximar da cama.
— Meu subconsciente buscou alguma forma de me manter sozinha, repelindo as pessoas... — Seus olhos vistoriavam qual dos alimentos seria melhor para saborear primeiro em seu desjejum. — Os sensatos se afastaram daqui, mas os bocós insistiram em me atazanar...
— Eu...
— Não, não falo de você. — Apresou-se em aclarar sua alegação. — Me refiro aqueles asnos que estão a todo o momento correndo em frente ao meu quarto. Se eu não estivesse tão fraca, já teria acabado com a raça deles.
Nos poucos dias em que esteve naquele planeta, nunca havia presenciado uma cena em que a dama manipuladora de emoções não houvesse mostrado empatia ao invés daquela raiva que surgia em seus orbes carmesins. Contudo um aspecto de gratidão foi notado na marciana loira.
— Obrigada por ter vindo, aliás, sente-se aí. — Sua fala levou o moço receoso para mais perto dela, para então se acomodar no acolchoado também. — Passei tanto tempo nesta cama, refletindo, sozinha... Percebi que o que me faltava era alguém para desabafar este sentimento negativo.
— Estou a sua disposição — declarou o bruxo empático. Seu sorriso convidativo gerava dúvida na fera sarama. Como ele poderia estar sorrindo quando todos os outros choravam ao se aproximar dela? Algo de especial ele possuía, entretanto, a poderosa não descobriria o que seria, já que não tinha conhecimento a respeito dos poderes telepáticos do dragão.
Seja o que for, acho que somente uma pessoa muito fria poderia se proteger da tristeza imensa que estou emitindo... — Sua mente se mantinha alerta enquanto sua face buscava disfarçar o que sentia, assim como o jovem à sua frente fazia constantemente.
— É sobre seu amigo, não é? — A indagação do moço recebeu um aceno de cabeça.
— Creio que nunca estamos prontos para perder alguém que amamos... Por mais que a vida nos prepare. Sempre acreditei que a esperança era uma das mais poderosas emoções, mais forte que o próprio destino, porém, não sei se acredito mais nisso... — Seu estoque de lágrimas já havia esgotado, não haveria mais choro para exteriorizar o que sentia. Umedeceu sua garganta com o líquido lilás da taça prateada antes de voltar a falar.
— Ele era considerado imortal, mas o destino quer sempre mostrar que nada está fora de seu domínio...
— Eu entendo... — Aproveitou a lenta mastigação dela para expor seus pensamentos. — Contudo ainda acredito no destino, foi o que me tornou um bruxo e acho que ganhei outra vida graças a ele, talvez tenha sido quem me fez conhecer várias pessoas incríveis, e ainda me mostrou um mundo que eu nunca poderia imaginar... Ele age sempre de forma inusitada, por mais que não saibamos como e o porquê.
Baixou a cabeça para reorganizar as ideias e as palavras que usaria, então, continuou:
— Se me permite dizer, o guerreiro medo-ecoante nunca morrerá enquanto os que estão vivos lembrarem-se dele e o quão poderoso ele era...
— Obrigada pelas palavras... Acho que estava precisando ouvir isso. — Sua respiração mostrava-se mais calma, assim como a serenidade que voltava aos olhos. — Eu e meu amigo nos conhecemos quando ainda éramos jovens, naquela época, o que mais me ligava a ele era sua alegria contagiante. De alguma forma, parecia que era ele quem manipulava minhas emoções, fazendo-me sorrir a todo o momento... Há um ano, tudo mudou, era impossível reconhecê-lo, não era mais o mesmo, quase como se estivesse...
— Morto. — O adolescente completou em tom metafórico o que era a mais pura verdade.
— Exatamente, parecia morto... — repetiu a palavra com angústia. — Desculpa, não deveria estar despejando tudo isto sobre você...
— Não, tudo bem, estar sozinho nunca é a solução.
— Entendo agora por que foi escolhido como Bruxo da Natureza — proferiu a guerreira com um sorriso mínimo. — Você é capaz de mostrar empatia por todos que...
À medida que concluía sua frase, também aproximava sua mão do ombro do jovem. Entretanto, assim que o toque aconteceu, a alma dos dois aparentou ser sugada para fora de seus corpos num segundo. Um piscar de olhos fez seus músculos relaxarem totalmente e, de repente, a dupla se via numa vastidão branca, um em frente ao outro, de pé.
— Que lugar é este? — balbuciou a loira, buscando sentido para o que via.
— E-eu não sei... — O mais novo gaguejou, finalmente sentindo a tristeza da outra, já que a intervenção de seu irmão telepata parecia não chegar ali. — Já estive aqui outras vezes, mas agora sinto algo diferente.
Olhavam em volta, todavia, não havia nada para ver além deles mesmos e uma imensidão alva. Um empurrão súbito os fez regressar ao aposento da marciana que recuou sua mão com velocidade, findando o toque.
Irmão, você está bem? — O dragão mostrou preocupação por telepatia. — Por um instante, deixei de captar seus pensamentos.
Tudo certo, não foi nada...
Enquanto vigiava o estado psicológico do loiro, o fera branco assistia o treinamento de sua pequena amiga de vestido de penas alaranjadas. Quando souberam que seria ela a treinar ali no centro de treinamento, ninguém mais resolveu presenciar além do dragão e do cervo-real que seria o instrutor dela. O velhinho de longa barba branca ditava exercícios para que a menor cumprisse no meio do recinto, cujas paredes apresentavam dezenas de armas brancas.
Decidido quem seriam os doze novos Guerreiros Ferozes, nenhum deles poderia morrer nos duelos decisivos. Ela deveria aprimorar sua habilidade sonora e encontrar uma forma de não matá-los por acidente. Na realidade, sua animação em finalmente aperfeiçoar sua capacidade escondia a indignação todas as vezes que se questionava o porquê de ele nunca tê-la treinado antes. Por que não a ensinava usar seus poderes em vez de contê-los?
— Esvazie sua mente e focalize nesta única frase: pule duas vezes. — Foi o que o senhorzinho instruiu. Teoricamente, ele achava que ela possuía capacidade de comandar outros seres através da fala, contudo, seu descontrole era um grande bloqueio. — Vou retirar a barreira sonora agora...
A guerreira do galo respirou fundo, buscando coragem no oxigênio que fluiu para seu cérebro. Observou seu amigo sentado próximo de onde o tutor deixou o cajado, ele a olhava com confiança, então decidiu também confiar em si mesma.
— Pule du...
— Pare! — A exclamação do ígneo interviu de forma brusca na tentativa sussurrante. Ele refez a proteção acústica e pousou as palmas em seus ouvidos que começavam a expelir um fluido dourado, seu sangue. Os olhos escuros arregalados mostravam que aquela era a primeira vez que ocorria tal acidente. Por sorte, o marciano foi rápido o suficiente para coibir a propagação do som.
— O senhor está bem? — O criocinético mantinha distância enquanto via com atenção a cena se desenvolver. — Acho que deveríamos tentar de outro modo...
— Não existem muitas opções... — O careca já havia limpado os lados de seu rosto e buscava em sua mente a solução para um enigma: Como aperfeiçoar a voz de alguém que não pode falar?
— A resposta é simples... — Os ígneos tiveram sua atenção requisitada pelo dragão. — Ela não precisa falar.
— Você conhece alguma outra forma de fazer isto? — indagou sem se ater ao fato de que o fera frio parecia ter respondido sua mente. Era mais um dos que não tinham conhecimento sobre a habilidade telepática dele.
— Antes de serem poderosos, todos os feras foram criaturas — formulou sua ideia enquanto levantava. — Pelo que sei, galos não falam...
— Eles cantam! — Ao exclamar, os olhos arregalados da pequena transitaram do amigo até sua figura paterna.
— Esta é uma ótima teoria, que não custa tanto tentar. — O guerreiro se preparou fisicamente e considerou-se pronto para outra tentativa depois de desfazer o escudo acústico envolta da moça. — Fale a mesma frase de antes , porém, desta vez, com uma entonação melódica.
Pule duas vezes... Era simples, só precisava relaxar e cantar. Com um murmúrio incerto, todavia, melodioso, foi o que fez antes de se espantar com a escuridão que cobriu os olhos coloridos do seu instrutor. O homem permaneceria estático como uma escultura, se não fosse forçado a executar um salto mínimo. Após a surpresa dos que o assistiram mostrar que não iria embora tão cedo, o tutor retomou seus orbes multicolores.
— Então, o detalhe estava na entonação... — Primeiramente, sua mente buscou a certeza de que exercia suas perfeitas funções. Aquele era o real poder de sua filha adotiva. Possuía uma beleza encantadora e, ao mesmo tempo, uma capacidade destrutiva. Os pensamentos dele se embolavam no raciocínio do telepata frio. — O treinamento acabou por hoje, hora de descansar.
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