Capítulo 8- Torneio Feroz I

A madrugada, que parecia ter ganhado horas a mais, passava com suspeitoso sossego, visto que esse mesmo adjetivo seria inadequado para que fosse usado mais tarde. Os poderosos que conversavam por telepatia se despediram sem muito drama, mas com esforçada confiança, pois precisavam de positividade. Passariam mais tempo naquele diálogo se isso não exigisse tanto do dragão psíquico, ele era o que mais necessitava do descanso depois de transmitir pensamentos numa distância quilométrica.

Obrigaram seus corpos a desligar para que estivessem dispostos ao máximo quando chegasse o momento. Para aqueles que conseguiram dormir, a noite se passou tão rápida quanto um smilodon. O Torneio Feroz teria início às dez da manhã, por isso todos os competidores deveriam estar prontos nas duas horas antecedentes, todavia, a pequena guerreira do galo foi acordada instantes antes disso.

— Já está na hora? — Foi a única coisa que perguntou ao homem pálido que a despertou de seu pesado sono.

— Sim. Você deve estar no salão dos guerreiros em poucos minutos — informou tomando distância da cama, na qual a garota sonolenta erguia seu corpo minúsculo.

— Queria agradecer mais uma vez pela sua ajuda...

— Não foi nada — cortou-a dando as costas.

— Ontem, você disse que via a possibilidade de se beneficiar com minha presença aqui... — relembrou aquela que se botava de pé, arrumando seu vestido de penas brancas alaranjadas. — Pode me explicar?

— Bem... — Os olhos brancos paralisaram, assim como todos seus músculos pouco desenvolvidos. Prezava pela verdade, no entanto, aquela indagação seria mais bem respondida por uma mentira, foi o que imaginou antes de olhá-la outra vez. — Eu queria apenas uma companhia e você me parece bem legal...

A olimpiana não escondeu seu sorriso depois de ouvir aquilo, nem mesmo quando sua boca se encheu pela comida que pegou da bandeja sobre a mesa. Logo após alguns minutos, a moça se julgava pronta para o embate. Um espelho surgiu em sua frente e ela o adentrou com firmeza, como se desse um passo em direção ao perigo. Depois, tinha que se lembrar de agradecer a manipuladora de dimensões, se saísse com vida, é claro.

Já havia tornado a conversar com seu amigo dragão, entretanto, houve uma interferência psíquica quando adentrou a existência espelhada. Talvez a habilidade dele não atravesse dimensões... Via o espaço sendo destruído e refeito com velocidade extrema. O salão dos guerreiros se mostrou e ela reapareceu no mesmo banco que estava antes de ser resgatada. Tinha esquecido como era aquele local ameaçador, havia mesas e assentos suficientes para acomodar dez mil pessoas ou mais.

Muitos feras pareciam ainda dormir, jogados de forma desconfortável em qualquer canto que lhes aparentasse ser o melhor. Outros já haviam despertado, ou talvez nem tivessem dormido; conversavam entre si, assim como também permaneciam em silêncio, preparando-se mentalmente; aqueciam seus corpos para a batalha, ou jaziam quietos para que não chamassem atenção indesejada. Para o azar da menina de olhos escuros, sua aparição não passou despercebida como pensou.

— Achei que tivesse fugido, pequena assassina! — O mesmo brutamonte a abordou com mais atenção daquela vez. — Foram seus amigos do castelo que a ajudaram?

Não poderia mais recuar, o evento estava prestes a começar e ela precisava ficar ali. Não posso ter medo! Não posso...

Eu acredito em você. — Escutou a grave voz de seu amigo.

— Não há mais para onde fugir... — A ígnea mantinha a expressão corajosa diante do musculoso que se aproximava junto de seus capangas. — Sua jornada acaba aqui...

— Por que não implica com alguém do seu tamanho?

O guerreiro pálido surgiu dos espelhos brilhantes entre o fera e a menina surpresa. A atenção voltou-se para a cena à medida que muitos buscavam se distanciar do confronto.

— Alguém do meu tamanho? — Gargalhou como se tivesse ouvido a melhor piada de sua vida, pelo menos, foi como encarou a fala daquele poderoso quase cadavérico que devia medir uns quarenta centímetros a menos que ele. — Então vou implicar com outra pessoa, porque você não está à minha altura.

No mesmo instante, uma explosão de labaredas verde-cintilantes atrás do medo-ecoante fez os brutamontes cessarem o riso maléfico que davam. As chamas envolviam um círculo escuro no chão, como um abismo infinito, do qual saiu uma criatura brutal que se assemelhava a um troll. Possuía duas vezes o tamanho daquele que ameaçava seu conjurador, a pele verde-acinzentada e os músculos eram como troncos de árvores antigas.

— Arranjei alguém da sua altura... — pronunciou o necromante com o que talvez pudesse ser chamado de sorriso, um que transmitia uma assombrosa aura.

— E-eu não quis... — balbuciava afastando-se inconscientemente, sendo parado pelos amigos que se viam paralisados demais para recuar. Reparavam também os vários braços cadavéricos que lutavam por espaço, para que saíssem pela circunferência de fogo. — De-desculp...

Num avanço rápido, o marciano de cabelo lívido alcançou com a mão o pescoço do outro, os olhos brancos vazios eram hipnotizantes. Começou falar com a voz anormalmente rouca, como um sussurro da morte:

— Se você se atrever a sequer direcionar seu olhar para esta senhorita antes do torneio... — aproximou seus rostos, puxando o homem pela garganta para baixo —, irei garantir que sua morte seja lenta e dolorosa. Depois que te matar, vou ressuscitar e tirar sua vida novamente de outra forma. Farei isso até o fim da minha eterna vida... Entendeu?

— S-sim! — gritou como quem pedia perdão pelos pecados cometidos e correu para longe, junto dos outros feras.

As chamas verdes se ampliaram repentinamente e engoliram os seres que foram invocados, levando-os de volta para dentro do círculo obscuro, sumindo logo depois. O evocador virou seu rosto para trás, olhando por cima do ombro para a menina que mantinha os olhos arregalados, desacreditando do que eles acabaram de ver. Com uma piscadela, desapareceu magicamente da mesma forma como havia surgido ali. A pequena pôde respirar com mais calma outra vez, abanando seu rosto com as penas do próprio traje.

As enormes portas duplas do salão dos guerreiros se abriram com um ranger que alertou a todos, contudo, mesmo assim, muitos ainda pareciam dormir pesadamente. Um austêmoto que lembrava um mordomo entrou, no meio dos outros dois robustos que serviam de guarda.

— Olá, feras ferozes! Desejo a todos um bom dia e adianto o meu: boa-sorte. Irão precisar... — Andava pela passarela que era formada pelo espaço entre as mesas dos lados e parou no exato centro do salão. — Irei dividi-los em quatro grupos e separá-los... O primeiro grupo será os deste lado...

O lugar podia ser dividido em quatro, pelas passarelas centrais que formavam uma cruz, por causa do ponto que coincidiam no meio. Os da direita sendo os mais perto da entrada; Os da frente, aqueles que ficavam próximos à grande lareira que ainda crepitava. Ele apontou para as dezenas de mesas que se encontravam do lado esquerdo, na parte de trás, sendo onde a pequena menina havia buscado refúgio.

— Vocês permanecerão neste templo! — informou e virou-se para seu outro lado, ignorando os murmúrios que se ampliavam. — Os daqui vão por onde entraram, seguindo meu colega...

Indicou um austêmoto que surgiu na única saída daquele salão, o aparato possuía a idêntica aparência do que falava.

— Já podem ir! — exclamou em censura a vagareza, e os milhares de poderosos se levantaram, indo em direção à passagem.

Foi naquele instante que a jovem de curto cabelo escuro percebeu que os que ainda permaneciam deitados não estavam dormindo, jaziam mortos. Quase vomitou depois de constatar as dezenas que mantinham o corpo sobre as mesas, como se tirassem um longo e pesado cochilo. Engoliu em seco, guardando em seu interior os pensamentos que lhe faziam imaginar o que teria ocorrido ali.

— Pois bem... — pronunciou o robô depois que os ainda vivos se retiraram, sem dar a mínima importância aos que continuavam “dormindo”. — Os da direita frontal irão por aquela passagem!

Estalou seus dedos mecânicos e a lareira se projetou para frente, depois para o lado, revelando um túnel e outro daqueles mordomos na abertura. Os feras apressaram em se retirar, dando visibilidade para mais ígneos que permaneceram estagnados no lugar.

— Por fim, todos deste lado, venham comigo! — ordenou aos da esquerda, mais próximos as chamas crepitantes. Ele apontou para o paredão paralelo a entrada principal, e uma passagem surgiu quando um pequeno pedaço da parede se precipitou, mostrando outro túnel.

Daquela forma, os competidores foram divididos em quatro. As passagens foram fechadas outra vez e as batidas do coração da moça talvez chegassem num ponto que ecoariam tão alto quantos os tambores usados no torneio. Tum, tum! Tum, tum! Tum...

Toc, toc, toc! Alguém batia na porta da residência de Maximus e o próprio anfitrião havia ido atender o chamado.

— Já falei com Dragon hoje por telepatia, parece que estão sendo levados para outro lugar onde vão esperar o começo do torneio. — Enquanto saboreavam o desjejum na mesa retangular, José relatou.

— Espero que fiquem bem... — Safira comentou acomodando melhor suas costas na cadeira ao lado do namorado.

— Mais positividade, querida, para atrair somente coisas positivas — aconselhou com doçura a mulher de cabelos alvos tão curtos quanto sua altura. Monkka se encontrava sentada próxima da guardiã terráquea.

— O magnetismo discorda... — Salazar apareceu em cena, junto do anfitrião que o deixou entrar. — Bom dia para todos.

— Mas ao que devo a honra? — A marciana levantou-se com cordialidade, assim que todos retribuíram o cumprimento. — Sente-se, por favor.

— Agradeço a gentileza, entretanto, estou aqui apenas com o intuito de convidar o Bruxo da Natureza para se juntar a nós e assistirmos ao Torneio Feroz. — Cruzou os braços atrás do corpo, numa posição imponente. O rapaz ergueu os músculos do assento e se pôs de frente com o seu igual. — Claro que sua companheira e a guardiã terráquea estão mais que convidadas também.

— Na verdade, não queremos incomodar, achamos melhor ir de balão mesmo — explicou-se o adolescente de cabelo tão amarelo quanto as íris do olimpiano.

— Sinto lhe informar que, no dia de hoje, esse meio de transporte está estritamente proibido, pois pode acabar atrapalhando o evento... — declarou com tom convincente.

— Mas o senhor Maximus e a senhora Monkka...?

— Não, senhorita, não se incomode conosco. — O homem logo a tranquilizou, vendo-a girar seu corpo para encarar o Bruxo Elétrico, estando ainda sentada. — Iremos assistir tudo daqui do conforto de nossa casa mesmo.

— Uma ótima escolha! — emendou com ânimo, juntando as mãos. — Então está tudo decidido. Estão prontos?

— Estamos... — Yara levantou-se, assim como a moça de cabelo verde. Na realidade, poderiam estar atrasados se precisassem ir de balão, ainda mais se contassem com a habilidade da poderosa em pilotar.

— Muito bem, vamos então... — Salazar deslizou o dedo indicador no ar e um traço elétrico surgiu em sua frente, depois esse se expandiu para os lados formando um círculo com bordas que emitiam descargas. Um corte no espaço que levava para outro cômodo muito mais luxuoso do que aquele em que se encontravam.

Primeiro, as duas terráqueas, depois os dois bruxos. Os quatro chegaram numa ampla sala de estar, com vários sofás, balcões onde eram servidas algumas bebidas e uma mesa cheia de comida. Havia muitos integrantes da alta classe, todos querendo cumprimentar o rapaz que ficou desconcertado em receber tanta atenção logo pela manhã. Como alguns já tinham o conhecido no castelo, não demorou muito para que o grupo estivesse livre dos olhares.

As conversas paralelas transitavam no recinto soberbo, todavia, não competiam com a gritaria que ecoava fora daquelas paredes enfeitadas. Sendo esse um detalhe que entregava o fato de estarem no templo central do antigo vulcão sob a voadora capital do Monte Olimpo. A varanda daquela construção havia sido projetada exatamente para servir como arquibancada, por isso contava com vários níveis de altura.

— Bom dia, povos de todos os cantos do sistema solar e sedentos por ação! — A exclamação ecoou por toda a cratera, fazendo as gritarias se intensificarem.

— Pelo visto, todos estão animados para o grande torneio, Bhav. — Ouvindo os comentaristas, as pessoas daquele salão se dispuseram a ir para seus assentos, aguardar o início do evento épico. — A pergunta não é mais se terão, mas quais serão as surpresas que veremos hoje!

José se perguntava quem conseguiria permanecer acomodado luxuosamente, degustando especiarias, enquanto assistia pessoas se matando. Talvez alguém que não tivesse conhecidos no campo de batalha. Antes que o trio se dirigisse às arquibancadas da alta sacada, o olimpiano com imenso cabelo preto os interrompeu:

— Existe um lugar melhor para assistir do que aqui... — Salazar piscou e os quatro desapareceram no ar, seus corpos se desfazendo em descargas elétricas.

Uma grande redoma envolvia todo o templo no meio da caldeira, protegendo-a da batalha que aconteceria, semelhante àquela milhares de vezes maior que cercava todo o perímetro do vulcão, dando segurança aos que estavam fora. Não se viam outros transportes aéreos senão steágnos com telões que transmitiam as imagens do terreno que logo serviria como palco de embate.

Safira observava isso enquanto Yara tinha seus olhos ofuscados pela luz repentina que vinha do sol, a qual deveria ser impedida pelo pedaço voador do monte, se ele não estivesse tão alto. José cumprimentava as duas figuras que também se encontravam naquela torre, sendo a mais alta da construção central, sua forma se assemelhava a um chapéu pontudo por causa do telhado.

— Não acredito! — A voz do primeiro homem reverberou por todos os lugares. — O próprio Bruxo da Natureza está aqui com a gente!

Então estes são Manish e Bhav... — imaginou o rapaz que tinha sua mão segurada por um dos marcianos. Os trajes dos dois eram anormalmente glamorosos para vestes místicas.

— É um... — cessou sua fala quando a percebeu também ecoar por cada canto e ouviu os gritos em resposta — prazer estar aqui...

— O prazer é completamente nosso, querido! — Era de se estranhar o fato desse ainda não ter soltado a mão do jovem, todavia, ele era educado o suficiente para não lhe mostrar que desgostava.

Bhav possuía uma voz supersônica, e Manish uma visão quilométrica, eram esses seus poderes. Porém um detalhe interessante era que podiam dividi-lo com qualquer um que mantivesse contato físico. Por isso os dois viviam de mãos dadas, compartilhando suas técnicas. Fato que logo explicaram ao loiro, depois de falar com as duas terráqueas e Salazar, sem usar as habilidades de intensificação, obviamente.

— Ficamos sabendo que você é muito amigo do recém-muito-famoso dragão... — A voz do supersônico serviu de gatilho para o brado dos que assistiam os telões mostrando José. — Isto é verdade?

— Na realidade, ele é meu irmão — relatou olhando uma filmadora flutuante que os rodeava de longe.

— Você acha que ele tem chances de vencer...?

— Oras, é um dragão, Manish! Óbvio que vai vencer! — Debateram e logo volveram o olhar ao rapaz de orbes azuis galácticos. — Certo?

— Tenho plena convicção que ele possa se sair vitorioso, eu acredito nele... — declarou com orgulho.

Muito obrigado, irmão... — Ouviu em sua mente e sorriu.

— Gostaríamos de entrevistá-lo, mas ele vai estar meio ocupado com o torneio, então você pode nos explicar de onde ele surgiu? — Suas altas vozes aguçavam a atenção daqueles que ouviam das arquibancadas.

— Ele foi abençoado um ano atrás, depois de permanecer por milhares de anos congelado na Terra. Estava lá porque foi levado pelos... contrabandistas... — Parou por um momento, transmitindo a mesma sensação ruim que todos compartilharam. — Fugiu deles quando ainda era recém-nascido...

— E como...?

— O Torneio Feroz já está prestes a começar! — Salazar tocou o ombro de Bhav para adquirir suas habilidades supersônicas. — Prontos para ter a experiência mais épica de suas vidas?!


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