Capítulo 6- Emoções Elevadas I

§ HORAS ANTERIORES §

Se a aproximação do torneio já trazia a tona muitas emoções, juntou-se a isso a notícia bombástica de que o famoso deus do fogo havia conquistado uma parceira, e todo o Monte Olimpo vibrava em fofocas. “Quem será a sortuda?”; “Ouvi dizer que é terráquea”; “Que sejam felizes...”; “Tantas poderosas bonitas aqui em Fogo e ele buscou uma tão longe!”; “Aposto que ela enfeitiçou o Fire!”

Chegado o fim da tarde de Quartis, não havia ninguém mais que não soubesse da junção fenomenal do Salvador de Fogo com a Guardiã da Água. Os poucos, mas orgulhosos, terráqueos que se encontravam em Marte encarregavam-se de fazer reverberar o poder de Yara. “Ele tem sorte em conquistá-la...”; “Os feitos deles se equiparam em grandeza!”; “Yara não se apaixonou por nenhum terráqueo, mas achou um marciano!”; “Ele terá sorte se não acabar morto...”

A rapidez com que aquele fato se espalhou por todas as bocas se deu principalmente por causa da serva mestra do palácio, Arícia. A marciana se dava ao luxo de contactar aos funcionários sobre tudo que acontecia, mantendo-os atualizados enquanto ordenava funções para que cumprissem. Era ela a responsável por toda a organização do Torneio Feroz, pelo menos da parte estética.

Pouco antes que a noite fosse notada no horizonte, a ígnea cheia de afazeres desfilava seus quadris volumosos pelos corredores, traçando as íris cinza pela prancheta nas mãos que pontuava seus compromissos e obrigações.

Arquibancadas... em espera. Propulsores à vapor... prontos para ativar. Balões... posicionados. Quarenta e sete por cento da preparação concluída, agora só nos resta aguardar a Elevação... — mentalizava os preparativos para o evento, quando estacionou à frente de um pequeno buquê de rosas vermelhas largado no chão.

Parecia ter sido posicionado ali especificamente para lhe presentear, pensamento que a fez sorrir bobamente. Depois de vistoriar se havia alguém por perto e perceber que se encontrava sozinha no corredor, deu mais um passo em direção as flores, foi quando suas narinas dilataram e Arícia recuou com receio e raiva.

— Seu odor é repugnante, Promethei — cuspiu as palavras com desprezo, direcionadas ao buquê.

Repentinamente, as pétalas se destacaram das rosas e adotaram um aspecto de pelagens que rodeavam os galhos verdes, os quais se erguiam e tomavam outra forma. O que tinha a silhueta de uma pequena criança de meio metro aproximadamente, surgiu dos caulezinhos enquanto os pelos escarlates cobriram totalmente o corpo encurvado. Seu rosto era escondido por uma máscara da mesma cor de sua pele.

Dokkaebi, um ser místico metamórfico que podia assumir a forma de objetos inanimados, a maioria de sua espécie possuía comportamentos desordeiros. Todavia a olimpiana sabia que aquele não era um mero Dokkaebi selvagem, mas um fera em sua forma animal, Promethei, um dos Guerreiros Ferozes.

Por conseguinte, a pequena criatura ganhou tamanho e volume à medida que sua pose se tornava ereta como um humano adulto de dois metros e mais. O grande corpo musculoso e bastante tatuado mostrava muito da pele quase desnuda, se não fosse o pouco tecido que cobria apenas um lado do peitoral e da cintura para baixo.

— Boa noite, querida Arícia — cumprimentou com charme, arrumando seu cabelo carmesim. — Percebo que lembra-se do meu cheiro...

O sorriso sedutor serviu de gatilho para o revirar de olhos da mulher com tom de pele marrom como o céu noturno de Marte.

— Ah! Me poupe! — Disparou em direção a ele, querendo seguir seu caminho, seus orbes diziam: se você não sair da minha frente, vou atropelar! — Tenho muito que fazer...

— Mas nada...! — Segurou a marciana pelo pulso quando ela tentou desviar do corpo dele para continuar o que estava fazendo. — Nada será como o prazer de estar comigo.

— Acho bom você me soltar...

— E você vai fazer o quê? — inquiriu, forçando a aproximação de seus corpos. Seu semblante aterrorizava os pensamentos de Arícia. — Jogar perfume em mim?

Era inegável o fato de muitos já terem se perguntado a respeito de como pessoas com caráter questionável conseguiam chegar num cargo tão alto. Porém sabia-se que, para receber o título de Guerreiro Feroz, não era julgado caráter, personalidade ou sanidade, apenas seu poder e somente isso. Qualquer um que fosse páreo para enfrentar o torneio poderia alcançar tal honra de forma inquestionável.

— Não me obrigue a te machucar. — Talvez estivesse assustada por dentro, todavia, por fora, era como uma imenso monstro ameaçador. O semblante mostrava força e coragem, por mais que seus pulsos já ganhassem cor e sentissem a dor.

— Me machucar?! — Promethei fez sua gargalhada ecoar por aquele corredor. — Um mero rato serviçal como você não chega nem aos pés de um guerreiro...

— Me solte! — E quando tentou libertar as mãos que haviam deixado a prancheta cair, o homem ergueu uma das suas, mirando a face da serva mestra.

— Você a ouviu!

O pulso levantado sentiu um aperto firme que o imobilizou, assim como uma picada tão forte quanto a de uma...

— Cobra! — Foi o que o homem viu enrolada em seu braço e traçou o corpo da víbora com o olhar. Era como um extenso chicote vivo que seguia da ponta até adentrar sinistramente na palma da poderosa que se aproximou, sorrateira. — Margaritifer... Então vai se juntar a nossa festinha?

— Solte a Arícia agora! — Suas palavras saíam tão afiadas quanto as presas da peçonhenta que lançou.

Mesmo que fosse mais fácil se libertar de uma mão apenas, a mulher de cabelos brancos não era tão forte para se equiparar ao ígneo que irava. No entanto esse a soltou por vontade, não tão espontânea assim. Ela apanhou a prancheta, e o fera se pôs entre as duas mulheres, como se desafiasse a dama de olhos violetas iguais suas próprias vestes.

— Não entendo por que a defende com tanto fervor, mas se quer que seja assim, assim será!

— Não é da sua conta as decisões que tomo, mas não quero perder meu tempo com você — ralhou, fazendo a víbora soltar o braço de Promethei e retomar como um corda métrica, sumindo dentro de sua palma que se fechou totalmente. — Vamos, Arícia!

Foi quando a marciana tentou passar pelo fera e ir até Marga que a tensão se mostrou realmente ali. Era quase impossível sentir o frio que pairava no ar, no instante que uma tatuagem do pulso direito do homem brilhou em vermelho e uma lança bronzeada apareceu na mão dele, impedindo o avanço da serva que trajava um vestido de panos coloridos e angulosos.

— Agora que você arruinou o clima romântico que estava tendo aqui, ou se defende, ou serve como saco de pancadas. — Girou a arma afiada que portava para mostrar habilidade. — Vamos, colega guerreira, vai ser como um simples treinamento, certo?

— Já que insiste... — Encenou um aquecimento corporal, alongando seus músculos.

Depois de constatar a guarda baixa do oponente, Margaritifer usou toda sua habilidade para lançar sua saliva com um esguicho em forma de disparo certeiro que cruzou alguns metros em linha reta. Instintivamente, Promethei colocou a mão esquerda na frente do rosto e as costas dessa brilharam em vermelho, iluminando o desenho circular que a enfeitava. No mesmo instante, um escudo de bronze se fez presente para defendê-lo do ataque que o acertou em cheio.

— Venenosa... — proferiu o homem, baixando sua defesa braçal para ver a fumaça que emanava de onde o cuspe havia atingido. — Minha vez!

O sorriso sórdido da guerreira foi interrompido quando a lança e o escudo do dokkaebi sumiram e surgiram duas adagas em suas mãos. Ele avançou subitamente, findando em grande velocidade a distância que os separava. Com um pulo, rasgou o ar descendo as lâminas, as quais Marga evitou movendo o corpo para seu lado esquerdo.

As facas trocaram de lugar com duas manoplas cor de bronze no momento que outra ilustração reluziu nos pulsos dele. O ígneo as usou num ataque horizontal com a força de um guindaste, incidindo em cheio a barriga da mulher. Arícia não conseguiu conter o grunhido, imitando o mesmo som que sua amada emitiu ao colidir as costas com a parede do corredor.

— Só sabe fazer isso? — zombou a dama escamosa, pondo-se em defesa.

Com um suspiro de raiva, as manoplas desapareceram quando Promethei juntou as mãos e entre suas palmas fez-se presente o cabo de uma espada bem afiada, a qual apontou para sua adversária. Sabendo que cada figura de seu corpo representava uma conjuração, quais truques aquele marciano ainda escondia? Era impossível saber, mesmo observando com perspicácia todas as dezenas de tatuagens que se espalhavam por sua pele.

Com um impulso do pé direito, o fera avançou bradando a arma cortante, direcionando o pulso firme em direção ao meio dos seios da oponente que se concentrava. A espada logo encontrou a carne de Marga, a carne de suas mãos sofreram o corte frio por tentarem segurar a lâmina, mas conseguiram detê-la com êxito. Dessa forma, a disputa se tornou uma questão de força, o homem possuía a vantagem dos músculos, todavia, a guerreira apoiava seus cotovelos na parede, impedindo que seus braços cedessem.

— Sinceramente, não sei como você conseguiu se tornar uma de nós... — murmurou com um semblante ameaçador pairando sobre seus olhos escarlates. — Não vale nem o tempo que gasto aqui, então vamos acabar depressa com isso para que eu possa me divertir com aquela serva. Ela vai me serv...

Cessou sua fala quando constatou o brilho mortal nos orbes violetas e pupilas verticais da ígnea. Suas palmas cortadas deixavam um líquido dourado escorrer, seu sangue quente descia como cachoeira, porém, isso não impediu que apertasse com mais fervor a espada.

— Já chega! — Arícia tentou intervir, tinha medo que sua amada se ferisse, mas nada pararia aquele duelo.

Os finos dedos de Margaritifer, manchados por seu próprio sangue, começaram se alongar anormalmente e dar voltas na arma afiada, enquanto assumiam a forma de víboras que sibilavam. Com Isso, dez serpentes cresciam à medida que se entrelaçam e iam subindo já pelas mãos de Promethei. Depois de alcançá-lo, as cobras dispuseram toda sua força nas presas que abocanharam os braços do oponente.

Palavras insultuosas seriam proferidas, entretanto, ambos se viam com os lábios ocupados, tentando segurar o brado interior que media a dor que sentiam. Antes mesmo que o pensassem em fazer, a espada se desintegrou no ar e o marciano estagnou como se fosse congelado de dentro para fora, os olhos rubi vidrados sem ação.

— Promethei? — pronunciou a guerreira, fazendo as víboras recuarem, voltando a ser apenas seus dedos habituais. Sabia que havia injetado o veneno que o faria sentir dor e não o paralisante. — Você está...

— Me... desculpem... senhoritas — redimiu-se voltando seus músculos para Arícia, fez uma reverência exagerada e depois ergueu seu corpo de modo desajeitado. — Boa noite e tchau.

Enquanto as mulheres franziam o cenho, ele dava meia volta, retirando-se rapidamente dali.

— Você está bem?! — A serva mestra aproximou-se velozmente daquela que ainda fitava as costas do homem que se distanciava. Pegou as mãos dela e a encarou. — Margaritifer, como você está?

Algo está errado com ele, um errado fora do comum. Era como se ele estivesse sendo... controlado.

— Eu... — Deixou seus pensamentos teóricos quando admirou a visão que considerava revitalizante. — Eu estou bem, estou ótima!

— Suas mãos...

As palmas ainda sangravam o líquido dourado, no entanto, depressa regressaram ao normal quando a pele foi trocada por uma nova...

— Achei que tivesse dito que controlar a mente de outra pessoa fosse antiético! — Xiang Fei refutou a fala de Dragon. Tomavam distância do ocorrido que sorrateiramente presenciaram há pouco.

— Ele também estava fazendo algo antiético... — Deu de ombros.

•••

O dia de Quintos foi quando as viagens interplanetárias para Marte se intensificaram. A cada momento chegavam mais e mais poderosos e humanos normais, alguns permaneciam nas acomodações que ainda estavam disponíveis do castelo, outros haviam de procurar moradia na capital, ou até mesmo fora dela, além da muralha. O descontrole de feras já havia sido contido, dando espaço ao trânsito de pessoas que circulavam imparáveis.

— Sete anos?! — José e Safira alarmaram-se, a moça entre seu namorado e Dragon.

— Foi o que ela me disse... — Entre tantos assuntos aleatórios, o que os surpreendia daquela vez era a idade da jovem Xiang.

Depois de serem convocados para a refeição do meio-dia, eles andavam em direção ao salão de banquetes.

Após os dias que se passaram, puderam perceber que aquela construção gigantesca era uma mistura de castelo medieval feito de pedras polidas e madeira escura com uma máquina metálica à base de vapor. Geralmente, as partes mais baixas eram rochosas, como o pátio e as câmaras de treinamento, já as partes altas eram feitas de puro metal, como todas as torres e os dormitórios da elite.

Isso se devia a decorrência histórica de Fogo, na qual os poderosos começaram desenvolver primeiramente uma civilização com base rochosa, até descobrir e manipular os benefícios do metal e do vapor. Moldaram sua cultura para que se adequasse aquele novo meio de vida, contudo, o palácio primordial já havia sido construído e tomado à afeição dos que nele residiam, por isso não o reconstruíram do zero como todo o resto, apenas o aprimoraram. Tudo isso foi o que Tempe contou em outro momento daquela semana corrida.

— Ela parece ter uns quatorze ou quinze anos — comentou o rapaz loiro, trazendo o riso do deus do fogo aos ouvidos deles.

Fire caminhava ao lado de Yara, quem os visse poderia pensar que eram apenas amigos, já que mantinham certa distância entre si. Dariam as mãos como forma de afeto mútuo, todavia, na noite em que firmaram o relacionamento, prometeram que não formariam um casal meloso, e até usaram os dois jovens à sua frente como exemplo do que isso significava.

— Ela disse que tinha sete anos usando a contagem de tempo em Fogo — elucidou King, atraindo os olhares curiosos enquanto viravam no corredor —, o ano aqui tem, mais ou menos, o dobro de dias do ano na Terra. Então ela tem quatorze anos no tempo de vocês.

— Aah, é verdade... — O bruxo lembrou-se de que já havia lido aquela informação em algum livro. Então aqui eu tenho nove anos...

— Por que vocês estavam falando suas idades? — questionou a moça de cabelo esverdeado enfeitado com uma coroa de flores rosáceas.

— Xiang estava me explicando porque não podemos namorar...


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