Capítulo 2- Jantar De Boas-vindas I
§ MOMENTOS ANTES §
Uma névoa esquisita pairava por todo o Monte Olimpo, um milenar vulcão que, estando inativo, servia como base para a civilização de todos os olimpianos. O nevoeiro em questão era uma tempestade de areia, a qual tornava o dia escuro e a noite um breu sem fim, bem recorrente em Marte, e era por causa dela que, naquele momento, todas as janelas e portas do castelo central se encontravam fechadas. Inclusive as do quarto no qual se acomodaram duas almas contrárias.
— Você estava me observando enquanto eu dormia? — Yara interrogou erguendo seu corpo na cama, trajava um vestido azul de tecido fino. Despertou sem tanta energia, mas ainda alarmada e arfando de cansada.
— Qual o problema nisso? — Sentado na poltrona escura ao lado do acolchoado, Fire King contestou. Aprumou a postura, como se elevasse a imponência junto com os ombros.
— A resposta certa era: não! — censurou retirando a coberta de cima de si mesma.
— Mas eu não disse que fiz isso — devolveu fazendo-a estancar qualquer movimento, ponderativa.
— Que cômodo é este? — indagou levantando-se para vistoriar o recinto e seus detalhes, todavia, quando o fez, suas pernas vacilaram por um momento, ainda desacostumadas com o ambiente. Talvez tenha sido ela a que mais sofreu com a viagem interplanetária.
King usou sua agilidade para findar a curta distância que os separava e a segurou com firmeza.
— Este é meu quarto — sanou olhando-a nos olhos, e depressa a poderosa o afastou de seu corpo, mas continuou segurando em seus braços, para manter o equilíbrio que lhe faltava.
— E por que estou no seu quarto?
— Bem, você estava inconsciente, então não tinha muito que discutir — esclareceu com simplicidade, enquanto ela se afastava para vagar pelo aposento, fitando as minúcias. — Como você ainda precisa se acostumar a atmosfera daqui, é necessário que fique sob observação...
— Sua observação? — inquiriu Yara, estacionando bruscamente para mirá-lo.
— De quem mais seria?
— É... Não sei.
Isso já está ficando constrangedor demais — imaginavam o mesmo.
— Vou tomar um banho e ver se a água gelada me desperta melhor.
O deus prestativamente apanhou a bolsa esverdeada em cima da mesinha pequena e entregou à mulher de longos cabelos coloridos caídos sobre seus ombros. Ela agradeceu com o olhar quando pegou a sua bolsa, pois algo a impediu de expressar mais afeição que aquilo, algum sentimento confuso a mantinha enclausurada, um ou vários deles num leque de emoções.
— É logo ali. — Apontou a porta metálica perto da grande varanda fechada.
A poderosa dirigiu-se até a passagem, mas parou antes mesmo de entrar.
— Espera, se eu devia ficar sob observação, por que você não ficou me observando? — questionou virando-se para o marciano outra vez sentado.
— Mas eu não disse que não fiquei.
Com isso, ela fechou a porta, remoendo seus pensamentos. Não tardou em sair, exalando o cheiro doce da brisa marinha, fazendo uso de seu traje místico. Como a noite já havia chegado, sem demora, os dois poderosos se encaminharam pelos corredores até o salão onde eram feitas as refeições. Não dirigiam uma palavra sequer durante o trajeto que percorriam lentamente. No entanto aquilo incomodou Yara, a qual tomou a iniciativa da fala.
— Fire — ele virou a cabeça rapidamente, para olhá-la e prestar atenção —, quando Olímpio disse que te conhecia desde chimpanzé, você afirmou que não precisávamos saber dessas coisas... Mas eu estou curiosa.
— Por que está interessada? — refutou arqueando a sobrancelha escura e um sorriso satisfeito.
— Considerando que estou em um lugar totalmente diferente, você é o mais próximo que eu tenho de uma aula de história.
— Você quer ouvir a história do meu planeta, ou a minha?
— A sua. — Assim que falou, King mudou seu semblante para um convencido. — Que foi?
— Por que quer saber da minha história?
— Por ser mais curta, e você não me passa a imagem de quem sabe sobre fatos históricos — respondeu afiada, tomando o sorriso nos lábios dele para si.
— Pois bem, senhorita historiadora, saiba que eu fui um grande marco na história do planeta Fogo. — Estufou o peitoral, convencido, gatilho para o revirar de olhos da guardiã. — A história que o Olímpio se referiu começou antes mesmo de eu ter um nome...
— Depois de me transformar de um chimpanzé, meu poder pirotécnico encantou os olhos de um homem, o dono da maior indústria de Marte e de mim, a quem ele deu o nome de Servo. Mas, depois de muito extrair do planeta e de seus, já escassos, recursos naturais, deu-se início a um efeito dominó de explosão de fábricas. Se a do meu dono...
Suas lembranças pareciam lhe aprisionar, assim como aquelas correntes negras que tilintavam ao seu movimento, as quais prendiam seu olhar pesaroso.
— Humano, se a desse humano explodisse, seria uma catástrofe.
— Mas você parou, não foi?
— Não antes que a destruição acabasse com tudo daquele... ser desprezível. — A raiva tomou o lugar da dor que sentia em seu interior, o que não passou despercebido por Yara. — Trabalhava próximo de onde se produzia vapor para alimentar as máquinas, eu não poderia parar a explosão, não era forte o suficiente... Ou talvez eu não quisesse, por que zelaria pela minha prisão?
Viraram em um dos vários corredores.
— Chegado o momento que me senti preparado, já dentro das chamas ardentes que se alastravam, eu absorvi toda a explosão para dentro de mim. Foi a única forma que encontrei de conter a devastação.
— E com todo esse poder dentro de você, isso te tornou um deus — deduziu a poderosa.
— Não, aprisionar a destruição me causou isto. — Apontou a cicatriz que começava de seu pé esquerdo e terminava no abdômen bem definido. — Meu corpo quase não aguentou e, por um momento, eu achei ter morrido, até um ser estranho surgir e me dizer que minha bravura me tornou um deus... Depois disso, nunca mais fui tratado como um servo...
Terminou baixando o tom à medida que se aproximavam das portas duplas gigantes, guardadas por dois homens de armadura vermelha. Os olimpianos abriram as portas enquanto acenavam com a cabeça e os poderosos entraram.
Os olhos da hidrocinética vislumbraram primeiramente os lustres pendurados no teto, depois as paredes bem detalhadas do salão retangular, das quais somente três delas exibiam entradas, sendo a principal àquela pela qual adentraram. No meio de tudo isso havia apenas uma grande mesa de quatorze cadeiras, também retangular, enfeitada com um banquete indescritível, ainda mais por aquela que não conhecia muitas das comidas que exalavam um cheiro apetitoso.
— Sim, eles gostam de exagerar — comentou o deus, guiando a dama até uma das seis cadeiras de uma das laterais da mesa e, só naquele instante, notaram a mulher preta que se levantava de um dos assentos. — Ah, boa noite, Tyrrhena.
— Boa noite, Fire e... — cumprimentou indo até eles, perto das duas primeiras cadeiras do lado direito para quem chegava pela entrada principal.
— Yara, prazer — apresentou-se apertando a mão da mulher de vestes azuis, etéreas e refletoras ao mesmo tempo.
— Sou Tyrrhena, uma dos doze Guerreiros Ferozes. — Aproximou-se da guardiã dos mares, como se quisesse lhe confidenciar algo. — Ele não estava se vangloriando com histórias do passado dele, não é? — Rindo sem graça, Yara negou com a cabeça depois de ouvir o cochicho, e a mulher afastou-se dos dois. — Bom, não pude esperá-los para o jantar, mas espero que o aproveitem, bom apetite.
Dito isso, uma espécie de vidro refletor surgiu repentinamente atrás dela, tinha as medidas exatas para refletir apenas a marciana, a qual deu um passo para trás e entrou em seu reflexo, sumindo por completo logo em seguida.
Então as histórias são reais... — A consciência da terráquea se referia ao grupo nomeado como Guerreiros Ferozes, sobre o qual já havia escutado a respeito. Alguns diziam que aqueles eram os mais fortes de todos os poderosos. — Estou ansiosa para descobrir mais...
— O que ela te disse? — questionou voltando seu olhar à terráquea.
— Coisa de mulher, você não vai querer saber — desconversou-o disfarçadamente.
— Então vamos... — Puxou um das cadeiras para que a dama de olhos azuis se acomodasse na mesma, ela o fez, e King sentou ao lado dela.
— Agora pode continuar o que estava me contando.
— Mas já acabou, era só isso mesmo — declarou enchendo o prato com tudo que podia alcançar.
— Não mesmo, pelo que Olímpio falou, em algum momento, aquele Marcos entrou em sua história, e você nem mencionou o nome dele — contestou convicta, passeando os olhos pelas comidas diversas.
— Não é a história mais linda de todas, mas... — Terminou de encher o prato, provou um pouco e começou falar de boca cheia. — Eu o conheço desde sempre, nós crescemos juntos... Eu como escravo e ele como filho único do meu dono, sendo assim, meu mestre também. Tentei ser amigo dele, mas Marcos recusou meu convite e adotou a violência contra escravos como um de seus passatempos favoritos. Ele era apenas um jovem, assim como eu na época...
— Ele devia ter sido punido! — Yara exclamou, prendendo o olhar do deus por poucos segundos em sua feição indignada.
— E foi. Depois que toda a fábrica foi destruída, a família Magnus perdeu tudo que havia construído com base da escravidão, mas foi aí que esse fato veio a público. — Engoliu com dificuldade e despejou uma das bebidas no copo ao lado de seu prato. — Foram todos julgados, por serem cúmplices, mas apenas o líder da família Magnus foi preso, alguns foram considerados inocentes e outros foram designados para trabalhar como servos aqui no castelo do Monte Olimpo. Este é o caso de Marcos.
— Imagino como deva ter se sentido liberto e feliz — comentou sorrindo para ele, porém, Fire estancou seus próprios movimentos, catatônico.
— Liberto da escravidão... Feliz com o poder... Sendo aclamado... — pronunciava friamente, olhando suas correntes. — Foi me dada uma escolha, acabar com toda a maldade e escravidão de uma vez por todas, e foi isso que escolhi...
— E fez o certo...
— Será mesmo?! — retorquiu altivo e percebeu seu tom quando viu o semblante a sua frente lhe mostrar espanto.
Deve estar escondendo alguma coisa — teorizou a poderosa. — Todos nós temos um passado para esconder...
— Como servo, eu possuía algumas amizades, que compartilhavam comigo o peso da corrente e a dor do chicote, Olímpio era uma dessas afeições, meu melhor amigo, na verdade. — Deduziu que se explicar seria melhor que se redimir pela exceção anterior. — Minhas opções eram bem simples: absorver toda a explosão, o que causaria um estrago mínimo a fábrica; ou permitir que o fogo engolisse tudo antes de intervir, dando fim também a todos os operários que lá eram escravizados... Meus amigos... Foi essa minha verdadeira escolha.
— E-eu não sei o que...
— Não precisa dizer nada. Além da família Magnus, que permanecia bem protegida em sua câmara reforçada, eu e Olímpio fomos os únicos sobreviventes da catástrofe que ficou conhecida como Retaliação do Fogo. — A voz começava embargar, mas controlava-se pela respiração. — Como eu poderia receber honrarias, se minhas mãos estavam manchadas de sangue? Renunciei a todos que desejavam me vangloriar como herói e fugi para onde nada lembraria meu pecado, mas coisa nenhuma adiantava, pois me tornei escravo de meus pensamentos.
— Fire...
— Minha ganância pela liberdade me tornou tão mau quanto aqueles que me açoitavam... — A verdade era que ele não poderia ter detido a destruição como bem quisesse, não tinha poder para isso. Precisou de tempo para que absorvesse todas as chamas e esse tempo foi o que lhe custou à culpa nos ombros das dezenas de mortos. A culpa que tomou só para si e que ninguém mais enxergava ou julgava.
Negando sua incapacidade de reagir imediatamente, ele se martirizou por anos, e isso refletia perfeitamente nas lágrimas ferventes que queimavam seu rosto naquele momento. Yara tomou um choque vendo a luz refletir o choro mínimo do grandioso deus do fogo, o qual mostrava um lado seu nunca visto por ninguém antes.
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