8 - Caminho para Kassev

O breu noturno das áreas rurais de Durkheim era cortado pelas luzes do trem de passageiros que seguia em seu ritmo, lento e constante, rumo a Kassev.

– Terminei. – anunciou Ilya fechando seu caderno.

Halle retrucou com um som gutural enquanto dividia sua atenção entre o livro sobre a mesa e uma caneca de cerveja. O interior do vagão restaurante era bem iluminado e havia várias fileiras de assentos separados pelo corredor central acarpetado. Os assentos eram agrupados de quatro em quatro, com uma pequena mesa entre eles.

Ilya olhou ao seu redor e, mais uma vez, cruzou olhares com um rapaz estranho, sentado umas cinco fileiras adiante. Como nas vezes anteriores, o rapaz baixou os olhos novamente para seu jornal.

Os olhos esbugalhados e olhar penetrante do estranho deixavam Ilya incomodado, mas não pareciam transmitir uma ameaça. Vestia-se com um grosso casaco de couro marrom e um quepe de aba curta do mesmo material. Pela lateral da cabeça e nuca, não se via cabelos, apenas aquela tonalidade alterada que indicava que os cabelos foram raspados.

– Cara esquisito. – resmungou Ilya.

Halle não deu atenção aos comentários do rapaz. Estava concentrado na leitura do livro que recebeu de Exull.

– Afinal, o que já aprendeu aí? – perguntou Gregorvich.

Após um gole de cerveja o outro respondeu – Pouca coisa nova. Algumas passagens são difíceis de traduzir. Essa língua dos Elkins é complexa demais.

– O que descobriu de novidade, então?

– Além do que sabemos pelo senso comum... Ah, mas me esquecia, você não conta, né? Alienado como só você nem mesmo sabia o que é um Vorn-Nasca.

– Para de enrolar e conta logo!

– Tá bom, moleque... O senso comum diz que monstros foram apenas lacaios dos antigos Wlegdars, mas aqui se fala de uma sociedade formada por eles e de sua ligação com o crime organizado. Além disso, muda um pouco a visão que eu tinha sobre como caçam suas presas.

– Caçar presas? Do que está falando?

Halle fez uma careta e implorou – Dai-me paciência... Eles caçam a nós ou outros seres vivos, de preferência inteligentes, pois se alimentam da energia vital e psíquica.

– Como assim?

– Eles sugam a vida das pessoas, entende? Assim eles mantêm e sustentam suas vidas de forma sobrenatural, tornando-se imortais.

– Sério isso? – Ilya deu um risinho cético.

– Bem, sabe-se que não morrem facilmente. As formas tradicionais de eliminá-los são por decapitação ou cremação. Outra coisa que funciona é atravessar o coração com uma lâmina de chumbo ou prata.

– Aço não resolve?

– Eu acho que qualquer coisa no coração resolve, mas, por via das dúvidas, é bom ficar com chumbo ou prata mesmo.

– O que mais?

– Aqui fala que se alimentam pouco, uma presa por mês é suficiente, e que eles fazem jogos com suas presas antes de matá-las.

– Jogos? Que tipo de jogos?

– Não sei, isso não está claro aqui. Algo relacionado à perseguição ou tormento psicológico.

– Halle, – sussurrou Ilya olhando para baixo – aquele cara esquisito estava olhando para nós novamente. Mas, desta vez, tinha um sorriso esquisito nos lábios.

– Você está delirando, moleque. Se está tão cismado assim, por que não vai falar com ele?

Ilya ponderou por alguns instantes e concluiu que frente a tudo o que estava passando não teria nada a perder. Levantou-se e foi direto ao rapaz, sentando-se à sua frente.

– Com licença. – pediu – Eu não te conheço de algum lugar?

O estranho encarou-o surpreso – Não acredito, mas – estendeu a mão para um cumprimento – sou Argos Vseldoff.

– Ilya Gregorvich.

Argos olhou-o profundamente, deixando Ilya perturbado, em seguida, indagou – Indo para Kassev?

– Sim.

– Você e seu colega são da universidade de Voln, certo?

– Sim, como sabia?

– Apenas um palpite. Sou bom nisto. Sabe, garoto, Kassev não é uma cidade tão pacífica e segura como Voln.

– Ouvi dizer. Desculpe perguntar assim, mas por acaso você estava nos observando?

– Você é bem direto, garoto. Com efeito, de forma bem direta também: a resposta é sim. – Argos encarava Ilya com seus olhos fixos e esbugalhados, tinha uma expressão um tanto doentia.

– Por qual razão, posso saber?

– Um palpite.

Ilya esperou em silêncio por algo mais. Aquele sujeito era muito estranho, o jeito como suas mãos ficavam paradas sobre a mesinha, como se estivessem congeladas.

– Não se alarme, mas acho que você e seu amigo estão encrencados.

– É mesmo? Por quê?

– Observei na estação, em Dusseloris, o comportamento de vocês. Resolvi segui-los.

– Por acaso você é policial? Ou agente da AID?

– Não, nada assim, estou mais para uma espécie de agente independente.

– Investigador particular?

– Não. Sou mais como um caçador.

Ilya gelou. Seria ele também um Vorn-Nasca? Ou um aliado daquele que os perseguia?

– Relaxa, garoto, se estivesse caçando vocês, você nem teria me visto.

– O que caça então?

– Muitas coisas. Neste momento, estou no encalço de um Vorn-Nasca.

– Por acaso conseguia ouvir minha conversa com Halle?

Argos piscou o olho e mostrou um percevejo cravejado com um cristal no interior de sua orelha direita. Era um equipamento taumatônico.

– Bem, já é tarde. Se algo incomum acontecer, me procurem na minha cabine, número quarenta e sete.

– Certo, obrigado.

– Não me agradeça. E torça para não precisar de minha ajuda.


***

Após terminar a refeição, Ilya e Halle saíram do vagão restaurante para retornar à cabine. Ainda faltavam muitas horas para chegar a Kassev e um descanso cairia bem. Halle não deu muita atenção às preocupações de Ilya em relação a Argos, pois parecia ter muito em mente. Ilya imaginava se era porque ele tentava assimilar informações do livro. Ao mesmo tempo, achou estranho o fato de Halle ter ignorado o que ele havia dito sobre Argos.

Nos corredores estreitos, a iluminação estava diminuta àquela hora resumindo-se a três lamparinas por vagão, as quais coloriam o ambiente de tonalidade alaranjada.

Ao entrarem no penúltimo vagão, as luzes piscaram, diminuíram de intensidade, mas sem apagar-se. Quando estavam a meio caminho, piscaram novamente e apagaram-se produzindo um breu, pois era um corredor sem janelas.

– Caramba! – Ilya reclamou, mas procurando manter o tom de voz baixo. Ao mesmo tempo, Halle tateou os bolsos na busca de seu isqueiro. Afligido de um mau pressentimento, Ilya resolveu colocar os óculos para ver se enxergaria algo sobrenatural. Seu sangue gelou quando viu surgir adiante os contornos de uma figura sinistra. Ilya agarrou o braço do amigo com força e sussurrou apavorado – É ele! Está ali!

Halle retirou o isqueiro e produziu uma chama. Lá estava o Vorn-Nasca, no final do corredor.

– Corre, moleque! – empurrou Ilya para direção contrária.

O Vorn-Nasca sorriu e apontou os dedos indicador e médio na direção do isqueiro que se apagou, fazendo retornar a escuridão. Ilya sentiu um arrepio em todo o corpo e correu para a saída do vagão enquanto Halle caminhava de costas com cautela.

Ilya voltou-se para trás e viu alternadas a imagem do Vorn-Nasca avançando, ora através dos óculos, ora nos momentos que Halle religava o isqueiro cuja chama não durava mais de um segundo acesa.

Um odor ácido e rançoso invadiu as narinas de Halle ao mesmo tempo em que o monstro chegou bem perto. Dotada de força sobre-humana, a criatura tomou Halle pelos ombros e atirou-o para trás de si, como se removesse um pequeno obstáculo em seu caminho. Halle, que sequer conseguiu reagir ao assalto, caiu, rolou e perdeu os sentidos.

Ilya era o alvo e estava encurralado contra a porta.

– Você devia ter aceitado minha primeira proposta. – disse o homem.

O rapaz encarava-o de perto através das lentes. Os olhos começavam a adaptar-se ao escuro, revelando os contornos do Vorn-Nasca pela sua visão normal. Já através dos óculos, via finas linhas de energia esverdeada sobre a pele da criatura. Os olhos eram fundos e circundados por uma fraca aura vermelha. Ilya estava paralisado de medo e sua respiração saía curta e veloz. A morte se aproximava bem mais cedo do que imaginava. Mil coisas passavam por sua mente, seus trabalhos ficariam inacabados, que não veria mais seu tio e nem mesmo Marya.

– Por favor, não me mate... – implorou num gemido murmurado.

O antagonista sorriu e gargalhou suavemente – Eu matá-lo? Nada disto, muito pelo contrário. Nós somos a solução do seu problema. Nós possuímos meios para curar seu tumor... Você virá a mim e irá implorar, isto sim.

– Como sabe disto? Nunca contei a ninguém, nunca!

– Nós podemos ver além da percepção humana, assim como você pode agora, usando o SOGEP. Vamos, os entregue para mim. – estendeu a mão esquelética e carcomida. Ilya ficou paralisado e o Vorn-Nasca resolveu tomar os óculos. Ilya olhou além do Vorn-Nasca e viu que Halle estava se levantando. Correu pelo canto passando rápido pelo opositor.

– Não pode escapar de mim, rapaz. – o monstro deu uma risada sinistra.

Ilya agachou-se ao lado de Halle, ele estava muito ferido. Tinha um frasco nas mãos. Ilya sentiu os pelos do corpo se eriçarem.

– Bebe isso, Ilya, rápido.

Ilya removeu a tampa vendo o líquido brilhar e em seguida tomou-o num só gole. Era uma dose de supersoro. O Vorn-Nasca segurou Ilya forte no ombro e ele reagiu com um soco instintivo contra o rosto. A criatura caiu surpreendida pelo fato de haver um humano tão forte ao ponto de conseguir machucá-lo. Ilya viu uma forte aura energética ao redor de seu braço. Sentiu-se forte, capaz e corajoso. Agarrou o Vorn-Nasca e ergueu-o acima do solo, como se estivesse carregando uma criança. As luzes do corredor piscaram e voltaram a funcionar. Recuperado da surpresa, o Vorn-Nasca revidou, agora, furioso. Chutou Ilya forte no peito arremessando-o por toda a extensão do corredor até bater-se contra a porta que conectava os vagões, arrebentando-a num estrondo. Aquilo deveria ter lhe quebrados vários ossos, mas o supersoro o protegeu, de alguma forma.

Maldjito! – cuspiu o Vorn-Nasca.

Sangue escuro escorria de sua face e mandíbula que estava deslocada.

Ahora zerei obligado a matar zeu aumigo! – disse a Ilya irritado.

O monstro avançou rumo a Halle a passos rápidos, mas, antes de alcançá-lo, confrontou-se com o caçador, Argos Vseldoff.

Este carregava uma pistola de cano longo que disparou três dardos contra o coração da criatura. O tiro foi certeiro, mas, no lugar do coração, os dardos penetraram o antebraço do Vorn-Nasca. A criatura urrou de dor e viu-se vulnerável naquela situação. Arrombou a porta de uma cabine e atirou-se contra a janela rompendo a vidraça com facilidade. Argos seguiu-o até a janela, mas já não podia vê-lo.

Na cama, um senhor levantou-se com o rosto muito vermelho bradando – Mas o que é isto?!

Argos retirou-se correndo para abandonar o vagão. Antes de sair avisou Ilya – Se cuida, garoto, as coisas poderão ficar complicadas.

Ilya segurava os óculos nas mãos com ódio. Era tudo culpa deles! Sentiu impulso para atirá-los no chão e pisoteá-los, mas antes disso ouviu Halle gemendo e pedindo socorro. Guardou-os no bolso e correu para acudi-lo.

Halle tinha um filete de sangue saindo do nariz e o rosto muito inchado e com várias escoriações.

– Você está bem?

– Pareço bem, idiota? – disse com dificuldade – Au! Acho que quebrei alguma coisa. Me ajuda a levantar.

Ilya nem fez força para colocá-lo assentado.

– Cacete! Dói muito! – reclamou fazendo careta. Fez força e, finalmente, conseguiu ficar de pé. – Vamos, Ilya, não podemos ficar aqui.

– Para onde?

– Para a cabine, vamos pegar nossas coisas – Halle mancava.

– Mas ainda vai levar horas até Kassev.

– É melhor descermos em Krarnov. Preciso de um lugar para me recuperar.

Ilya olhou-o compreendendo o que havia ocorrido– Você me deu supersoro...

–Ei, moleque, cala essa boca! – Halle silenciou o rapaz – Vamos, entra logo!

Entraram na cabine e Halle se atirou na cama. A cabine era pequena havendo duas camas empilhadas de um lado e um banco para quatro lugares do outro. A lâmpada no teto tingia o interior com tonalidades alaranjadas.

– Mas isso é ilegal, Bremmen. E perigoso!

– Me conta uma novidade.

– E isso pode viciar.

Halle deu uma gargalhada, mas se arrependeu por causa da dor aguda que sentiu no peito – Ai! Filho de uma meretriz!

Halle pegou sua garrafinha e bebeu da aguardente com avidez. – Quando o trem parar, me acorde, certo?

Ilya fez que sim. Sentou-se no banco, muito abalado por causa de tudo aquilo. Abraçou os joelhos e começou a chorar baixinho.

– Halle, acorda! Acorda! – Ilya sacudia, mas sem sucesso em acordá-lo.

– Acorda, cara! O trem parou.

Halle despertou com uma careta – Sonhei que tomei um pau de um Vorn-Nasca.

– Não foi sonho, acorda logo! O trem já parou.

Halle despertou apertando a mão contra as costelas feridas. Foi até a janela para observar. Do lado de fora, um grupo de policiais aguardava a abertura das entradas.

– Vamos!

Ilya seguiu Halle que mancava o mais rápido que conseguia. Ele espiou dentro da cabine cuja porta havia sido arrombada e disse – Que sorte a nossa! – logo, puxou Ilya para dentro.

– Sorte?

– É. A janela quebrada está do lado contrário da saída. Desce aí.

Ilya estava com medo da altura – Descer? Você está louco!

– Vai, moleque, não discute!

Halle pegou o lençol da cama e estendeu sobre a base da janela quebrada para diminuir o risco de cortes.

Ilya pendurou-se e soltou, caindo no cascalho da lateral da pista férrea. Halle veio em seguida e, ao cair, xingou baixo – Cacete! Cacete! Cacete! Dói pra cacete!

Ilya ajudou-o a levantar-se.

– Vamos, moleque, vamos sair daqui e achar um hotel.


***

Krarnov era uma cidade pequena cuja existência girava ao redor de duas grandes usinas de energia que empregavam metade da população, enquanto outra metade trabalhava na siderúrgica. Uma cidade de operários que mal notou a chegada de Halle e Ilya no auge da madrugada. Hospedaram-se num hotel de acomodações simples, próximo à estação. Antes do horário de almoço, Ilya despertou e, como se entrasse num pesadelo, constatou que não estava no seu alojamento, mas sim num pequeno quarto de hotel de uma cidade desconhecida e envolvido em problemas.

Halle dormia profundamente e roncava. Ilya estava faminto e resolveu sair para arranjar comida. Ao lado do hotel, havia um bar que servia refeições prontas. Era um lugar movimentado. Ilya pediu um prato e sentou-se para comer. Notou um homem sentado ao seu lado que lia um jornal aberto. Com a capa em sua direção, engasgou-se ao perceber que sua foto e de Halle estavam estampadas na primeira página. Lia-se: CRIME CHOCA A NAÇÃO. Procurados por assassinato.

Ilya colocou os óculos e saiu de fininho, deixando sua refeição para trás. No outro lado da rua, avistou uma pequena banca de jornais. Ilya pegou um exemplar de a "Hora de Voln" e deixou os centavos para a senhora da barraca evitando encará-la. Apressado e apavorado, retornou ao quarto para finalmente ler a manchete.

"Estudantes universitários, Halle Bremmen e Ilya Gregorvich, são procurados como principais suspeitos do assassinato do Grão Mestre Exull, professor emérito aposentado da universidade de Voln. Após visita da dupla, ocorrida na clínica Dr. Alexei Podco, em Dusseloris, no dia 30 de Brizárnio, o venerado Elkin foi encontrado morto em sua cama com um punhal cravado no coração. A Sra. Paulena Kechko, administradora da clínica, em entrevista, disse que – Pareciam bons rapazes. Fiquei horrorizada! Chocada, na verdade. Para onde caminha nossa nação com esse tipo de jovens? – Outras testemunhas e o próprio livro de registros confirmam que os estudantes supracitados foram os únicos visitantes. A análise da equipe médica indica o horário da morte condizente com o momento da saída dos dois rapazes da clínica.

O cocheiro Piotr Pekro testemunhou. Disse que os rapazes tomaram sua carruagem como condução e que corriam tanto, vindos da direção da clínica, que não tinham mais fôlego. O mesmo cocheiro, coincidentemente, os levou até a clínica horas antes.

O motivo do crime ainda é incerto, mas o fato das anotações do Grão Mestre terem sido levadas pelos jovens pode ser uma indicação. A polícia local e a AID já estão investigando o caso. A pista mais certa é de que os suspeitos tenham tomado o trem de Dusseloris para Kassev, via Krarnov.

Veja também, na página 6, a reportagem especial sobre o Grão Mestre Exull e a contribuição para os avanços técnicos que suas pesquisas proporcionaram, ajudando a construir nossa nação nos últimos duzentos anos".

Ao terminar de ler a reportagem, Ilya ficou enjoado, foi até o banheiro e vomitou o pouco almoço que havia ingerido.

– Estamos acabados! É o fim!

Então veio a forte dor de cabeça. Ilya sentou-se no chão frio do banheiro e depois se deitou de lado. A dor era muito forte e ele gemeu. Agonizou até perder os sentidos.


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