31 - Confronto final

O envelope recebido por Halle dava instruções para que ele e Ilya fossem a um endereço em Kassev. Depois de escapar do Sr. Wolchkin Ilya retornou à residência de Xir, onde encontrou Halle o esperando. Dormiram lá e no dia seguinte tomaram condução para Kassev. Dois dias depois, chegavam à estação central da metrópole. Ilya estava impressionado. Sabia que Kassev era a maior cidade de Durkheim, mas ver seu tamanho com os próprios olhos fez a capital Voln parecer tão pequena quanto um bairro daquela metrópole. A cidade ficava sobre uma extensa região plana dividida pelo rio Czerny. Um terço de toda a população do país estava concentrada ali. A cidade também era a mola mestra da pujante economia do país. Centenas de indústrias empregavam a maior parte da população, mas, apesar de seu tamanho e importância econômica, Kassev carregava a chaga da violência e criminalidade. Seus muitos subúrbios eram terras sem lei, dominados pelo poder de facções criminosas que disputavam território e influência. A mais poderosa e temida organização criminosa era conhecida como Bahamute.

Halle e Ilya sentiam-se envolvidos em garras invisíveis que os conduziam para uma armadilha da qual parecia não haver escapatória. Seguiam direto para o ninho do inimigo.

Saindo da estação, foram para o ponto de táxi. Em Kassev havia muitos táxis de motor manótico. Eram veículos pintados de vermelho com tarja branca na lateral. Havia mais de vinte deles enfileirados ao lado da estação. Isso impressionava o jovem Ilya, que nunca havia visto tantos carros juntos daquela forma. Ele comentou – Acho melhor tomarmos o soro.

– Soro?

– Sim, para o caso do Vorn-Nasca nos pegar e se alimentar de nós. – Ilya falava do soro dado a eles por Xir e que funcionaria como um veneno.

– Tem razão.

Assim que se sentaram no banco de trás do táxi pegaram os frascos e se olharam como se dissessem: é o fim da linha; tudo ou nada. Beberam o soro de gosto amargo, diferente de todos os outros que já haviam experimentado.

O táxi seguiu pelas movimentadas ruas da metrópole para chegar ao endereço indicado. Atravessaram uma extensa ponte sobre o rio Czerny e visualizaram, lá do alto, a região portuária, talvez, dez vezes maior que o porto de Voln. Havia centenas e centenas de navios. Milhares de trabalhadores, gruas e pequenos trens de carga trazendo e levando mercadorias.

Chegaram ao destino: um grande armazém na zona portuária. Halle pagou o taxista com má vontade, pois o valor da corrida foi altíssimo.

Não havia o que conversar. O sabor amargo do soro finalmente havia passado. Halle viu que outro táxi passava a dois quarteirões de distância.

– Acho que fomos seguidos, Frangote.

– Seguidos? Por quem?

– Não olhe! Mas acho que o sujeito no outro taxi é o agente Oleksei.

– O que faremos?

– Nada, vamos entrar. Talvez, se o caldo entornar mesmo, alguém como ele por perto poderia ser nossa salvação.

Ilya não sabia se ficava mais nervoso com a perspectiva de encarar novamente o Vorn-Nasca ou de ser preso pelo agente. Entraram.

O armazém era enorme. A construção tomava todo um quarteirão. Os portões de metal estavam fechados, mas uma portinha na lateral estava aberta.

O interior estava frio e mal iluminado. Não havia muita carga no local, apenas alguns caixotes empilhados aqui e ali. No alto, uma estrutura metálica com passarelas interligadas e duas salas de escritório suspensas em lados opostos. Ambos sentiram-se encolhidos como insetos devido às proporções do armazém e sua pouca utilização.

O local estava muito quieto e Ilya quase explodia de tensão. Não sabia o que esperar. Uma luz se acendeu no interior do escritório localizado à esquerda. Viu-se a silhueta de um homem usando um chapéu. Ilya o reconheceu – É ele... É ele...

Ouviu-se um estalo seguido de ruídos, como de ecos vazios, provenientes de um sistema de amplificação de som.

– Sejam bem-vindos! – anunciou a voz do Vorn-Nasca, amplificada de forma limpa. Sua respiração podia ser ouvida, assim como pequenos estalos de saliva em sua boca – Estou contente.

Um forte rangido seguido de batida brusca soou. A porta de entrada havia sido trancada.

– O que quer de nós? – gritou Ilya, nervoso.

– Não precisa gritar nem ficar exaltado, meu caro Ilya Gregorvich. Eu escuto muitíssimo bem.

– Por que nos trouxe aqui? – indagou Halle, tão friamente quanto sua experiência lhe permitia.

– Para me entreter, é claro. Devo admitir, subestimei vocês dois. O que alcançaram foi extraordinário! Sabem, me tornei um fã de ambos.

– Onde está Marya? O que fez com ela? Se a machucou eu juro que...

– Shh! Quieto! Não pedi para não gritar?

– Não estou nem aí para seus pedidos, seu monstro desgraçado! – Ilya estava vermelho e a ponto de perder o controle.

Halle pôs a mão sobre seu ombro e pediu – Calma, vamos ouvi-lo e ver para onde isto vai.

– Vocês formam uma bela dupla, sabiam? Talvez devessem desistir destas garotas e trabalhar para mim.

– É isso que quer? Negócio fechado! Liberte Marya e Masha e nós seguiremos suas instruções. – sugeriu Halle.

– Ah, mas isso não seria nada divertido. E, depois, sem elas para pressioná-los... O que garantiria que vão trabalhar mesmo para mim? Nada!

– Então o que quer? Diga logo! – Ilya estava impaciente.

– Como disse, me divertir. Olhem!

O som de um botão pressionado saiu pelos alto-falantes e uma luz acendeu-se no outro escritório. Puderam ver as silhuetas de Marya e Masha. Estavam amarradas. Atrás delas, dois homens as guardavam, rijos como estátuas.

– Lá estão suas garotas. E, agora, chega de tanto suspense. Vamos ao nosso espetáculo.

– Marya! – gritou Ilya – Nós vamos tirá-la daí!

– Ah sim, jovem Gregorvich, esta não é uma vã esperança, pois, em meu jogo, ambos terão chances de salvar suas garotas.

– Jogo? – indagou Halle, lembrando-se de tudo que lera sobre os Vorn-Nasca.

– Sim. O jogo se chama: salve sua garota, mate seu amigo! Que tal? Vocês vão lutar até a morte. Aquele que vencer, salva sua garota. Se Gregorvich vencer, Marya vive e Masha morre. Se Bremmen vencer, Marya morre e Masha vive. Divertido, não?

– Ora, seu monstro!

– Obrigado, sou mesmo um monstro, não sou? Há há há! É tão divertido!

– Olha, seu bosta... – começou Halle – Não vamos jogar esta merda de jogo e sabe por quê?

– Vocês não gostam mais de mulheres? Resolveram ficar um com o outro?

– Não, seu ridículo. Porque nós temos outra cópia do filme... Temos provas contra sua organização e o governo. Portanto, você vai fazer o que nós mandarmos.

– Ah, mas não é ótimo estar sempre um passo à frente? É a diferença entre nós! Sabíamos da cópia adicional. Acha que seríamos tão burros de deixar o Sr. Semiónytch vivo e com uma cópia do filme se isto não servisse aos nossos interesses?

– Como assim? – Halle empalideceu, surpreso.

– Ora, nós sabemos de tudo que se passa. Não seja ingênuo, Sr. Bremmen. Não seja ingênuo.

– Mas por quê?

– Por que estávamos atrás de vocês? Acha que era por causa das gravações de Orgeila Bertonk? Nada disso. Queríamos apenas o SOGEP. O Chefe tem planos para o artefato, grandes planos. Quanto ao filme, sabemos o que fez com ele. Para quem o mandou e com quais instruções. O chefe quer mesmo é que isto saia na mídia exterior. Fez-nos um grande favor, Sr. Bremmen, isto sim. Algo maior do que a imaginação de vocês pode supor está por vir... há há há.

– A guerra! – sugeriu Ilya ao lembrar-se do seu sonho na estufa de Xir.

– Oh, sempre com uma surpresa na manga! Devo confessar, Sr. Gregorvich, que estou torcendo por você! No final, sua raiva, imaturidade, desespero e surpreendente intuição trabalharão a nosso favor.

– Plano B, Ilya. – indicou Halle.

Ilya retirou o frasco com supersoro do bolso do casaco, mas, antes que este chegasse à sua boca, uma criatura alada fez um rápido vôo rasante batendo na mão de Ilya e atirando o vidro no chão. O frasco quebrou-se derramando o precioso líquido.

– Nada de Plano B, meus caros... Rapazes!

Marya e Masha tiveram as mordaças removidas pelos capangas e gritaram.

– Halle!

– Ilya!

– Rapazes, se eles não começarem a lutar até eu contar até três, estourem os miolos das donzelas.

Ilya e Halle se olharam, paralisados. Ao mesmo tempo, as moças gritavam desesperadas com os canos das armas colocados contra suas cabeças.

– Um... – contou o monstro, calmamente.

– Dois... – deliciou-se.

Halle tomou coragem e deu um sopapo em Ilya.

– Há há há! Muito bom! – aprovou o Vorn-Nasca.

Ilya ficou sem ação. Estava confuso. Pensava em Marya, mas, ao mesmo tempo, a ideia de que tinha poucos meses de vida o afligia. O que fazer?

Halle deu outro soco, mas o menor esquivou-se.

– É melhor revidar, Frangote! Esse maluco não está de brincadeira.

Gregorvich revidou, três socos seguidos. Um atingiu Halle, mas ele não se abalou. Bremmen revidou com um direto que atingiu a maçã esquerda do rosto de Ilya.

– Desculpe, garoto, mas a morte vai visitar você mais cedo.

Seguiu espancando: um chute que pegou a lateral do corpo e um soco de esquerda que fez a cabeça de Ilya girar. Ilya sentiu o gosto de sangue na boca. Halle detestava a situação, mas parecia determinado a levar até o fim.

– Desculpe, frango, gosto de você, mas gosto mais de mim mesmo e da Masha.

Mais um chute e um soco levaram Ilya para o chão.

– Reaja, Gregorvich! – pediu o Vorn-Nasca – Reaja seu fracote!

O rapaz estava tonto e caído. Halle hesitou por um momento, mas, por fim, sacou sua arma. Colocou-o na mira. Era o fim de Gregorvich.

– Sinto muito, garoto... – Halle tremeu. Seria realmente capaz de matar seu amigo? Tentava justificar sua ação usando como desculpa o fato de que Ilya só tinha poucos meses de vida.

Ilya colocou seu cérebro para funcionar. Um plano veio à sua mente.

– Pode atirar Halle, acabe logo com isso.

– Ilya, eu...

– É sério, acabe comigo. Apenas confie em mim e atire.

O estômago de Halle se embrulhou ao imaginar Ilya estourado pela rajada de mana ígnea. Mas então, olhou nos olhos de Ilya que apenas comunicava: confie em mim, atire!

– Você que pediu por isso, frangote...

Ilya obersevou atentamente e calculou por probabilidades o momento em que Halle puxaria o gatilho. Nunca fizera algo assim e não sabia que daria certo. No momento correto, atirou-se de lado. Fosse por coincidência ou precisão nos cálculos, escapou do disparo. A voz de Marya soou desesperada – ILYA!

Halle mal pôde acreditar que errara o alvo. O oponente levantou-se saltando sobre Halle. Sabia que a arma demoraria um instante redistribuindo a carga manótica antes de estar pronta para disparar novamente. Como um pequeno animal acuado, mas feroz, Ilya atacou com uma mordida o pulso de Halle, fazendo-o soltar a arma e gritar de dor. Halle revidou com uma joelhada no estômago que fez o menor recuar levando na boca um naco de carne e sangue.

– Porra Ilya, você arrancou um pedaço do meu braço!

Halle revidou furioso e sem pensar. Ilya recorreu ao cérebro novamente. No desespero da situação, começou a crer que conseguia observar o oponente e prever seus movimentos após cálculos velozes. Com isso, como que por milagre, desviou-se de um, dois, três, quatro golpes de Halle e ganhou um pouco de confiança. Ilya conseguiu encaixar um chute rasteiro fazendo Halle tropeçar e cair. Halle revidou, mas Ilya, com a vantagem agora encontrou força e determinação para dar um chute no rosto do amigo. Isso o deixou atordoado e Ilya saltou por cima dele e colocou as mãos na pistola.

Levantou-se já mirando a arma para Halle. Os olhares dos amigos se cruzaram e Halle pensou ver uma lágrima escorrer dos olhos de Ilya. Teria ele coragem para matá-lo?

Ilya tinha um olhar diferente de tudo que já Halle vira antes. Parecia calmo, compenetrado, seguro de si.

– Atire logo frangote! Seu traidor maldito e miserável! – instigou Halle irado.

Ao perceber que Ilya hesitou, mantendo a cabeça parada, mas correndo os olhos pelo armazém, Halle levantou-se gritando para uma última investida, mas tropeçou.

Ao invés de atirar em Halle, para grande alívio dele, Ilya elevou a mira e atirou contra o capanga que ameaçava Marya com uma arma. Um tiro que parecia impossível, mas certeiro. Atravessou a janela de vidro deixando um rombo fumegante e arrancou metade da cabeça do bandido. O outro capanga hesitou entre atirar em Masha e mirar em Ilya. Masha jogou a cabeça para trás atingindo o bandido no nariz. Este disparou, acertando-a de raspão.

A arma de Ilya zumbia enquanto a energia fluía do cristal para a câmara de projeção e, no tempo certo, disparou contra o ombro direito do capanga que foi arremessado para trás. A arma só tinha mais um tiro. Virou-se para alvejar o Vorn-Nasca, mas ele não estava mais à vista.

– Cuidado, Ilya! – avisou Halle.

Ilya viu a criatura alada com os cantos dos olhos e disparou com precisão explodindo-a em pleno ar, um momento antes que ela o alcançasse. Halle apanhou um cristal de munição sobressalente que tinha no casaco.

– Ilya, pega aí!

O cristal girou pelo ar, mas não chegou ao destino. O Vorn-Nasca caiu entre eles e pegou o cristal com as garras. Seu chapéu caiu com o movimento e seus olhos expressavam irritação. Já não escondia sua forma verdadeira e sua pele carcomida provocou arrepios em Halle.

– Ótimo, Gregorvich! Você é melhor que eu imaginava, de fato, excelente!

Ilya ficou enojado ao ver a língua escura e comprida do monstro balançando de dentro para fora da boca cheia de dentes tortos e apodrecidos.

– Você será uma cria notável! De fato, excelente.

– O quê? Por acaso está falando de me transformar em algo como você?

– Sim, isto mesmo.

– Isto me salvaria do meu tumor?

– Claro, mas não importa...

– E Halle, Masha e Marya?

– São dispensáveis...

– Eu me entrego então, sem resistência, se deixá-los ir.

– E por que eu deveria aceitar tal condição? Sendo que posso matar e comer todos vocês?

– Pode mesmo? – desafiou Ilya – Não está me subestimando? E se eu for mais esperto e ágil que você? E se eu dissesse que posso prever todos seus movimentos. Se dissesse que calculei a chance de mais de setenta e cinco por cento de tirar este cristal de suas mãos e depois estourar seus miolos? O que acha disso?

– Está blefando, Gregorvich.

– Estou?

– Além do mais, essa arma não pode me matar.

– Mas esta aqui pode. – disse Halle tirando do casaco e já disparando projéteis de agulhas.

O Vorn-Nasca pulou para escapar, mas três agulhas de chumbo penetraram sua carne causando muita dor. O monstro revidou com uma rápida corrida e chute que fez estalarem as costelas de Halle e atirou-o voando para longe até atingir uma pilha de caixotes e quebrá-los com o impacto.

– Agora que está ferido e que logo ali está uma arma que pode matá-lo, minhas chances aumentaram em dez por cento.

O monstro ofegou e parou para considerar pela primeira vez a proposta do rapaz.

– O que está me dizendo é que irá se entregar se eu deixar seus amigos irem, é isto?

– Sim, eles valem para mim, principalmente Marya, os quinze por cento de chance que tenho de falhar.

O oponente ponderou por uns instantes. Sabia que o rapaz era um gênio da matemática. E sua atuação contra Halle e contra seus capangas fora de fato sobre-humana. Poderia ser um blefe, mas os séculos já vividos e os séculos que ainda poderia viver não valiam o risco.

– Muito bem. – o Vorn-Nasca atirou o cristal para Ilya e ordenou – Destrua a arma de agulhas.

Ilya obedeceu com um tiro certeiro.

– Agora, largue a arma.

A pistola caiu no chão. O Vorn-Nasca se aproximou e parabenizou-o – Muito bem jogado! É digno de tornar-se meu novo pupilo.

O monstro picou a garganta de Ilya com o ferrão que ficava oculto debaixo da unha de seu dedo indicador.

Ilya sentiu uma dor aguda, seguida de dormência gelada e paralisia de seus músculos. A energia vital e o sangue começaram a ser sugados.

Do alto Marya gritou – Não, Ilya, não!

Nada havia a fazer. A vida escapava do corpo do rapaz.

– Mas... Mas o que é isto? – o monstro indagou ao se contorcer subitamente. Cambaleou deixando Ilya cair no chão.

Ilya murmurou após recobrar um pouco do controle muscular – Te peguei, estúpido. Sempre um passo à frente, não é?

– O quê? O que fez comigo? – comprimia o peito com as mãos. A dor era intensa e estava a ponto de explodir.

– Bebi um soro especial: veneno para Vorn-Nasca.

– Veneno? Mas não é possível!

– Com os cumprimentos do Sr. Firnamul'Uxir. Se chegássemos a este ponto, ele me pediu para dizer-lhe que isto é uma retribuição pelo que você fez com o Mestre Exull.

– Maldito elkin. Maldito! – contorceu-se e caiu no chão.

– Eu posso morrer... – disse num último suspiro – Mas todos... vão sofrer. O chefe vai... O chefe vai...

Finalmente calou-se e morreu.


***

Pouco depois, a porta trancada pelos poderes do monstro voltou a se abrir. O Agente Oleksei entrou com uma pistola em mãos. Ilya estava fraco e Halle desmaiado. O Vorn-Nasca morto e Marya e Masha ainda amarradas na sala suspensa.

Oleksei observou aquele cenário intrigado. Algemou Ilya e chamou por reforços.

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