2 - Espelhos, trens e memórias.

Marya ajustou o espelho lateral de sua penteadeira. Sobre esta, algumas dúzias de frascos contendo colônias, óleos e outros cosméticos que ganhara de sua mãe, Anna Wolchkin, mas que não tinha o costume de usar. Pegou uma escova de cerdas brancas e trama bem fina e iniciou o labor em seus cabelos de um tom louro escuro, tendendo ao alaranjado. Seus cabelos insistiam em ficar ondulados, mas cediam após muita escovação, ficando quase lisos.

Apesar de todas as preocupações de uma jovem colegial da capital e cidade mais rica do estado, não conseguia deter as memórias que retornavam. Lembranças de Ilya Gregorvich. O encontro, mais cedo, ao fim da parada, desencadeara todo o processo. Conhecia Ilya desde muito cedo. Sempre um menino diferente e que não se encaixava no esquema geral. A princípio, não estiveram ligados por questão de empatia, mas sim por uma tragédia compartilhada que os atingiu na segunda infância. Era de onde vinha a primeira memória que a moça guardava do rapaz. Era um dia cinzento. Ele, um menino triste e cabisbaixo, sentado sozinho em um banco grande, balançando as pernas que não alcançavam o chão. Aguardava, como ela, discursos e cerimônias funerárias compartilhadas por muitas famílias.

Estudavam na mesma escola, mas, antes do episódio, não tinha nenhuma memória de Ilya. Marya, na ocasião, já havia chorado tanto que parecia não haver mais lágrimas para sair. Seu rosto estava inchado. Havia perdido seu pai. Sua mãe estava ferida, internada no hospital. Entre o ambiente pesado do hospital e as homenagens funerárias, um tio de Marya achou melhor a opção do funeral.

Marya sentia-se desamparada e viu nos olhos de Ilya uma tristeza tão grande quanto a sua.

– Meu pai se foi. – revelou Marya para assuntar com o menino.

Ilya olhou de volta e respondeu – Minha mãe também... E meu pai, uma tia e dois primos.

– E agora, quem vai cuidar de você?

– Meu tio, eu acho. – Ilya deu com os ombros – Ele não estava no navio.

– E você estava?

– Eu sim.

– Como sobreviveu?

– Não sei, acho que tive sorte.

"Um menino sem os pais...", pensava Marya retornando ao presente, "... pode sofrer maus bocados".

E logo se recordou de uma série de maus tratos sofridos pelo menino no colégio. Aquele tipo de coisa que passa despercebida para o mundo dos adultos. "Muitas vezes somos muito cruéis", refletiu a moça escovando os cabelos e observando sua imagem no espelho. E, agora, depois de rever suas memórias a respeito do rapaz, vieram-lhe memórias do breve encontro daquela tarde.

Ele surgiu ofegante, com o rosto vermelho e cabelos desgrenhados. O fato de ter puxado assunto com ela foi algo surpreendente. Ela pensou "Ele estava uma bagunça, mas até engraçadinho". Ainda não tinha aparência de um homem feito. Sem barba e bigode. O mesmo rosto que tinha quando garoto. Isto agradava Marya que tinha repugnância por homens barbudos, bigodudos, carecas e gordos, como seu padrasto. Marya acionou o delicado porta-joias de sua mãe e a caixa de música tocou a famosa melodia de Pletrev, "Os Amantes Sobre o Lago Congelado". Ao lado do porta-joias, o pingente que recebera de Anton capturou sua atenção. Ela sorriu pela primeira vez. Isto indicava onde estava o coração da jovem.

***

Era cedo, final da madrugada, o despertador de Ilya soou no alojamento. Um pequeno espetáculo de sons e luzes emergiu de seu aparelho taumatônico. Ilya saltou da cama e viu seu companheiro de quarto, Halle, revirar-se e resmungar com a voz arrastada – Zete horas! Pooa...

– Desculpe, Halle. São cinco, mas hoje preciso sair mais cedo.

Zeu estrume! Quand'eu acordar mezz, vou-gedá uma zurr... – e voltou a dormir. Com sorte Halle não se lembraria, especialmente, pois havia chegado bêbado, mais uma vez.

Ilya lavou o rosto na tigela de louça que estava sobre a mesa e enxugou com uma toalhinha. Trocou seus pijamas de flanela cinzentos por roupas completas. Ou seja, um outro conjunto de pijamas para usar por baixo, uma calça grossa, camisa branca, suéter e, finalmente, o sobretudo. Por último, a gravata azul.

Por sorte, a universidade era bem localizada, na região central de Voln. Em cinco minutos, estava fora do campus e com mais quinze, chegou ao HCV, Hospital Central de Voln. Neste momento, o dia começava a raiar. Ilya escutou o som distante do apito do primeiro trem que chegava à estação, longe dali.

Ilya procurava pelo necrotério. O prédio tinha seis andares, mas era muito largo, com muitas alas. Era como um tijolo enorme, cuja cor era um bege desbotado e com manchas escuras nas paredes, Teve de tomar informações por duas vezes até chegar à portaria anexa do HCV. Mesmo no interior, continuava perdido. Era incrível como na universidade e demais instalações públicas as placas e sinalizações fossem tão confusas.

– Bom dia. – disse à balconista – Gostaria de saber a respeito do, hum, senhor Bertonk.

– Bom dia. – respondeu a funcionária vestida de branco, um tanto gorducha e com cara de sono. – Bertonk? Você é da família?

– Não. Tenho uma coisa...

– Não interessa! – a mulher rugiu – O que quer?

– Quero devolver um objeto para a família do falecido.

– Chegou tarde, rapaz. O corpo já foi despachado para o enterro. – ela tinha uma cara amassada em mau humorada.

– Enterro?

Ela rosnou uma assertiva.

– Desculpe, mas tem informações sobre o enterro?

A funcionária virou os olhos, mas verificou informações em seu grosso caderno de registros – Aqui está! Orgeila Bertonk. Serviço funerário no anexo dois do Cemitério do Bom Descanso. Enterro agendado para onze horas, hoje.

– Obrigado! – e refletiu preocupado "Hoje às onze? Mas que droga! O mesmo horário da minha consulta. Suponho que não haverá melhor oportunidade..."

Ilya caminhou pelas ruas, agora movimentadas, de Voln rumo à estação central. O cemitério era fora da cidade, no subúrbio ao norte. Precisava tomar o manotrilho(1) urbano para lá. Seria infernal, pois detestava aglomerações de pessoas. Diversos trens chegavam à estação central naquela hora. Milhares de trabalhadores que chegavam à estação, vindos dos subúrbios, dificultavam o caminhar do rapaz. Um mar cinzento de gente encapotada. Ofegante, ele suspirou aliviado no momento em que se sentou em um lugar no vagão, quase vazio. Logo, o trem partiu deixando para trás toda aquela confusão.

– Mas que droga! – resmungou baixinho ao lembrar-se de que não havia tomado seu remédio naquela manhã.

Conforme o trem avançava, Ilya observava as belas construções da região central da cidade ficando para trás. Pensou "Há seis meses, eu nunca me imaginaria numa situação destas!" Lá fora, avistou as torres do Colégio Duque de Dusseloris, o que imediatamente o remeteu a Marya.

Ver o colégio e estar em um trem trouxe de volta memórias de cerca de três anos atrás. Pouco antes de deixar o colégio, ele e Marya desciam na estação do bairro do Bom Gênio. Eram adolescentes, Ilya com quatorze e Marya com treze anos. A moça tinha em mãos um lápis e caderninho. Neste, uma lista de nomes e endereços de livrarias de livros usados de Voln e arredores.

– Vamos lá, Gregorvich, quem sabe hoje não é o grande dia? – ela falou alto por causa da barulheira na estação.

– Seria ótimo!

– Que o Bom Gênio abençoe nossa busca. – disse a menina e riu.

– Qual a graça? – Ilya não havia entendido.

– Era para ser engraçado... Afinal, hoje vamos numa livraria no bairro do Bom Gênio.

– Ah, claro, como sou lerdo. – sorriu o rapaz enquanto caminhava para fora da estação.

Seguiram por algumas ruas de pavimento antigo e desgastado. Havia lojas e movimento aqui e ali misturado a algumas residências nos sobrados. O Bom Gênio era cheio de ruas estreitas e ladeiras. Era um dos bairros mais antigos da capital. A livraria ficava no alto de uma ladeira, um lugar que recebia pouca iluminação. Era um corredor estreito cheio de livros e bastante bagunçada, assim como várias outras que haviam visitado.

– Acertei de novo. – gabou-se Marya.

– Hem?

– Sobre a aparência da livraria.

– Ah, sim. – Ilya olhou uma pilha de livros que parecia estar de pé apenas devido a atuação taumatônica.

Um senhor velho, magro e barbudo aproximou-se. Marya ficou logo com medo dele.

– Posso ajudar? – disse, com uma sinistra voz rouca.

– Sim. – respondeu Ilya – O senhor tem cópias do livro "Caminho de Mahld-bek"?

O velho sorriu – Tenho sim... Caminho de Mahld-bek... – procurava pelas prateleiras. – Aqui está! Tenho duas cópias.

Ilya pôs as mãos em ambos, estava ansioso. Marya pressionava uma mão contra a outra e torcia pelo amigo. O rapaz examinou o primeiro. Fechou, abriu o segundo, suspirou e balançou a cabeça negativamente.

– Tome, obrigado. – devolveu as cópias ao livreiro.

– Mas, não vai ficar com o livro? O que há? – o velho examinou-os procurando por defeitos. – Mas estão em boas condições... Vamos, se é o preço, eu lhe faço um desconto. Que tal por 10 firas?

– Obrigado senhor, não é isso. Na realidade, estou procurando por uma edição em especial. Um livro que foi meu e perdi. Por razões afetivas, entende?

O velho sorriu espalhando rugas pela face – Ah sim, filho, entendo perfeitamente. Bem, boa sorte em sua procura então.

– Obrigado, mas antes, vou comprar algo para minha amiga. Pode ajudá-la a escolher?

Ouvindo isto, a menina sorriu. Sorrisos como aqueles ficavam impressos nas memórias de Ilya Gregorvich. 

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(1) Manotrilho: veículo que anda sobre trilhos movido à energia manótica.


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