18 - A agenda de Wolchkin

De volta à casa de Marya, tiveram de esperar em seu quarto até os pais saírem. Durante este tempo, relembraram os tempos de colégio. Ilya falou um pouco sobre a universidade e também sobre seu colega de quarto, Halle Bremmen.

Só então Ilya se lembrou do livro que trazia no bolsão do casaco.

– Comprei para você... Você gostava de Boris Kahlo, não é?

– Obrigada, Ilyana. – ela deu uma risadinha – Não precisava...

– Já leu este?

– Não, mas agora vou, né? – ela folheou o livro de depois acomodou-o em sua estante, que estava um pouco bagunçada. – Veja esses, acho que você que comprou para mim, não é? – e derrubou alguns no chão.

Ilya fez menção de ajudar, mas ela o impediu.

– Pode deixar Ilyana – riu novamente – eu arrumo minha bagunça.

Ilya a observava o jeito um pouco estabanado dela e pela primeira vez, desde que toda aquela loucura havia começado, Ilya sentia-se bem. Estava derretido por dentro e cada vez mais apaixonado. Talvez, por estar vestido de mulher, Marya ficou um pouco mais aberta com ele, redescobrindo um amigo em Ilya. Eles riram juntos e Ilya sentiu-se um pouco mais confiante, quase o suficiente para falar de seus sentimentos, mas antes que o fizesse, a mãe de Marya entrou no quarto e anunciou – Marya, eu e seu pai vamos ao clube. Sua amiga não vai dormir aqui, certo?

– Não, senhora. – respondeu Ilya em falsete – Meu pai vem me buscar daqui a pouco.

– Muito bem. Foi um prazer conhecê-la.

– Igualmente, senhora Wolchkin.

Assim que a mãe fechou a porta, os dois caíram na gargalhada. Marya empurrou o braço de Ilya, como costumava fazer antigamente.

– Você devia fazer teatro, sabia?

Ilya corou – Você acha mesmo?

– Não seu tonto! Só estava brincando...

– Escute... Eles estão saindo agora. – era o zumbido do motor.

– Venha, Ilyana. – Marya tomou-o pela mão e desceram para o escritório. Marya localizou a agenda rapidamente sobre a escrivaninha.

– Aqui está!

Ilya leu de trás para frente. Muitos compromissos, reuniões e nomes que desconhecia. Apanhou seu caderno de exercícios na mochila e começou a tomar algumas notas.

Marya saiu dizendo – Vou preparar um suco, você quer?

– Sim, obrigado.

Ilya continuou até que um dia lhe chamou a atenção "Enterro de O. Bertonk".

"Claro, se conheciam!", pensou. Algumas memórias daquele dia retornaram à sua mente. Alguns dias antes do enterro, encontrou uma anotação "Limpar a bagunça de Bertonk". O que aquilo significava? Seria um assunto de trabalho ou poderia ele ter sido alvo do Sr. Wolchkin? Seria o padrasto de Marya o responsável pela morte de Bertonk? Algo naquela história não estava explicado. Nas notícias de jornal que Halle havia mostrado, Bertonk teria morrido na sede do Ministério da Energia, mas seus óculos estavam muito distantes de lá. Ilya sentiu um arrepio e então imaginou vividamente Orgeila sendo perseguido. Viu ele cair na rua e perder os óculos e em seguida, ser encurralado num beco e morto por uns soldados. Ficou enjoado com aqueles pensamentos. Até que respirou fundo e seguiu verificando a agenda.

– É isto! – disse animado.

"Visita à nova usina em Vetrocrav". Só poderia ser ali! Sim, em Vetrocrav é que ficava aquela monstruosidade.

Marya retornou com o suco – Encontrou algo?

– Sim, a usina... fica em Vetrocrav!

– Ah, é verdade, meu padrasto fez uma viagem uns tempos atrás. Ficou fora por mais de uma semana. – Marya aproximou-se demais do rapaz.

– Vetrocrav é longe, né? – disse corando.

– É do outro lado do país. – Marya pegou no braço dele.

– Mas o manotrem chega lá, não chega?

– Acho que sim. Mesmo assim, devem ser uns dois dias de viagem.

Aquela proximidade com a moça o deixava constrangido. Estavam com os rostos muito próximos, mais próximo do que era comum para qualquer pessoa com quem já havia conversado. Marya estava excitada com o pensamento que veio à mente: "Nunca pensei em beijar uma garota...". Mas, na verdade, estava consciente de que era um rapaz vestido de moça. Aquilo a confundia e aproximou um pouco mais.

Foi no momento que precedia um beijo que a campainha da casa soou.

Ambos se afastaram corando.

– Quem pode ser? – indagou Ilya e, logo, ficou assustado com a possibilidade de ter sido encontrado por algum agente do governo, mas Marya intuiu rapidamente quem deveria ser.

– Acho que é o Anton.

– Anton? – aquela perspectiva era melhor que agentes, mas, de alguma forma, deixou-o mais aborrecido.

– Do colégio, lembra? – e saiu para atender a porta.

Ele não resistiu e acabou seguindo a moça para ver o que aconteceria. Observando a partir do corredor, viu o rapaz quando Marya abriu a porta. Ela não o convidou para entrar, pelo contrário, saiu de casa e fechou a porta atrás de si. Ilya sentiu o rosto queimar de ciúmes. Não podia escutar o que diziam e nem ver nada. Logo, imaginou que se beijavam.

Um pensamento conformista veio para acalmá-lo: "Em um ano estarei morto, ou preso. O melhor para Marya é mesmo ficar longe de mim".

O rapaz tencionava retornar ao escritório e reunir seu material para deixar a casa quando escutou a voz da moça elevar-se. Não pôde entender o que Anton retrucava, mas, em seguida, escutou Marya alterada – Anton, estou com uma visita, hoje não posso!

– Ah, conta outra Marya. Se não quer sair comigo é só dizer que não! Mentir assim...

– Mas... – a resposta de Marya foi interrompida por Ilya que abriu a porta e indagou em falsete – Está tudo bem, Marya?

Ilya olhou para Anton e corou.

– Está sim, Ilyanna. Já volto, aguarde um minuto.

Ilya ficou escutando a conversa por trás da porta.

– Desculpe-me, Marya, eu não achei que...

– Deixa pra lá, Anton! Quando vai aprender a confiar em mim?

– Eu realmente... Bom, que tal passearmos amanhã?

– Certo, nos falamos... – a moça se despediu com um beijo na bochecha e entrou.

Gregorvich afastou-se da porta para recebê-la.

– Olha, Marya, me desculpe. Eu não queria atrapalhar seu dia.

– Não, Ilya, não tem problema. O Anton às vezes é um pouco insistente demais, já estou acostumada.

– Vocês dois estão juntos? – Ilya deixou escapulir.

– Mais ou menos... É que ele... Deixa isso pra lá. – Marya olhou para baixo com uma expressão tensa. Ilya não conseguiu ler bem o que era, mas havia algo.

Ele a tocou no cotovelo e disse com gentileza – Não, pode falar...

Marya pressionou os lábios e desabafou – É que eu acho que ele já está saindo com outra garota.

– Os homens são uns canalhas, é o que são. – Ilya brincou fazendo sua voz feminina.

Deram boas risadas disso juntos.

– É o que todas dizem – ela concordou. – Mas você tem seu lado feminino, né Ilyana? – ela deu um passo adiante e deu um beijo na bochecha de Ilya. Ele queria virar o rosto, segurá-la, beijá-la, mas ao invés disso, foi tomado por um misto de medo e vergonha. Ele nunca havia beijado ninguém. E se estragasse tudo? Então, deu um passo brusco para trás e se afastou dizendo:

– Eu adoraria ficar mais, mas já é hora de ir. Preciso retornar à pensão.

– Uma garota naquela região, não sei não...

– Não tem problema. Já é noite. Vou me trocar. Usando gorro e cachecol poderei esconder bem meu rosto. Não irão me apanhar.

– Tem certeza?

– Tenho sim.

Ilya foi até o toalete para se trocar. Lavou a maquiagem do rosto e colocou suas roupas novamente. Pegou os óculos, os embrulhou num paninho e enfiou no fundo do bolsão interno de seu casaco. Depois de vestido, olhou-se no espelho um pouco amarrotado, mas isto não chegava a ser um problema. O problema mesmo era como ele foi um bolha. Tonto! Como deixou aquela oportunidade de beijá-la passar assim.

Ao se encontrarem novamente ela o olhava de lado.

– Obrigada pelo livro Ilya...

– Não, imagina... Eu é que devo agradecer, sua ajuda foi inestimável!

Ela ficou um pouco encabulada. – Ora, é para isso que servem os amigos, não?

– Verdade.

Marya abraçou Ilya, surpreendendo-o.

– Foi um dia muito legal. Faz tempo que não me acontece algo assim, emocionante...

Ele abriu um largo sorriso e corou. – É foi um dia e tanto. Você foi ótima! – disse, mais animado do que talvez deveria.

Houve um silêncio desconfortável para ambos e Ilya foi até a porta e girou a maçaneta.

– Cuide-se, Gregorvich! E, se possível, mande notícias.

– Você também, se cuida! E mande lembranças para sua mãe.

Ilya saiu da casa de Marya para penetrar na noite fria de Voln. Seu coração, antes aquecido pelo dia junto à moça, gelou e ficou partido após a despedida. Ficar junto dela por mais tempo poderia trazer-lhe problemas, pensava. Era melhor mesmo se afastar. Tinha seus problemas para resolver e nem sabia por onde começar. Seu futuro era como aquela noite: escura e gelada. Um vento frio o atingiu como se fossem mil olhinhos malignos o observando de pertinho. Ilya sentiu um forte calafrio, olhou ao redor sem nada ver e apertou o passo ainda mais. Viu-se andando ligeiro e de coração acelerado. Um medo crescente tomando conta de si.

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