Capítulo 4 - A Santa dos Peixes, Cabelos Mágicos e um Lanche Contraditório
Tobias não sabia o que dizer, ou melhor, tinha se esquecido como se falava.
— É a primeira vez que você anda em uma jangada puxada por peixes? - Perguntou a moça gentilmente com um sorriso se projetando no canto dos seus lábios, enquanto Tobias olhava abobado e de boca aberta para ela. — Menino?
Nem em seus sonhos mais malucos Tobias conseguiria sonhar com aquilo.
Desde quando chegou à Mata havia sido caçado por caiporas vermelhas, ficado no meio de uma batalha entre javalis sanguinários e onças azuis, foi quase comido por uma ovelha com cauda de jacaré e havia sido mordido por uma Cabeça Sem Corpo, coisa que lhe daria pesadelos pelo resto da vida. Isso tudo estando sem saber para onde ir e com um gato quimérico amarelo dormindo em sua mochila.
Mas nenhuma dessas criaturas deu tanto medo quanto estar na frente de Cica.
— Finalmente você chegou, demorou mais do que o esperado. - Disse a moça de pele avermelhada. Ela trançava os seus cabelos brancos - fino, liso e que batia em seus calcanhares - distraidamente, sua voz era doce e jovial. — Estou feliz em conhecer o garoto que contou minha história nessa nova era.
A pele avermelhada da divindade emanava poder e beleza ao ponto de Tobias sentir toda a própria pele pinicar.
Quando menino viu a moça pela primeira vez, Cica media mais de dois metros e meio, estava sem roupa com os cabelos brancos cobrindo as partes íntimas e dançava sobre a água alegremente. Os seus olhos não tinham órbitas, mas brilhavam entre os tons azuis ao marrom, como a água do rio sobre seus pés.
Mas no outro piscar de olhos de Tobias, sua aparência era de uma menina do terceiro ano do Colégio Hélio-Guaraci, usando uma camiseta cinza com detalhes em laranja e um macacão-shorts jeans, os cabelos brancos em tranças jogados no ombro e com belos olhos castanhos.
— Voc... – Começou o menino, as palavras se perdiam em sua língua. — Vo....
Quando conseguiu escapar da Cabeça mordedora e achou água para beber, levou um baita susto quando o cardume de peixes de várias espécies surgiu puxando uma jangada feita de cana-de-açúcar. Com muito medo e sem opção, subiu na jangada incentivado pelo empurrão/voadora do Ajubá-Aburé, ficando sentado no centro da embarcação e gemendo a cada espirro de água ou sacolejo mais forte.
— Sente-se, você não me parece bem. - Pediu Cica.
— Vo... Você é ela. - Gaguejou Tobias largando a mochila abruptamente no chão. — A santa dos peixes, aquela que habita o Véu da Noiva e que faz os Noivos se encontrarem nas épocas de seca.
— Não é bem assim. - Respondeu Cica acariciando a barriga de Ajubá, que havia saído da mochila e estava mau-humorado. — Eu só faço os peixes pararem, mas não controlo o rio, isso é coisa da natureza, tá muito acima de mim.
O menino olhava para a santa deslumbrado.
— Você tá me deixando envergonhada, me encarando com esses olhos de jabuticaba. - Comentou Cica virando o rosto para o rio levemente ruborizada.
— Me desculpe. - Pediu Tobias ficando vermelho olhando para o chão. — É que não tem descrição sua em lugar nenhum, mas nem sei se teria como te descrever de uma forma digna. - Cochichou a última sentença.
— Pare de ser babão moleque. - Repreendeu Ajubá-Aburé mordendo a mão do menino, de leve, para descontar de ter sido jogado no chão de qualquer jeito. - Parece que nunca viu uma divindade.
Tobias azedou o rosto e quis chutar a quimera, mas este foi mais rápido e entrou dentro da mochila novamente abanando a cauda em provocação.
— Eu irei explicar o que está acontecendo, ou pelo menos a parte que me cabe, mas primeiro sente-se. - A voz de Cica era tão melodiosa e poderosa que o menino sentou rapidamente sem ter vontade de fato. — Você terá que devolver esse capuz para o dono, se não...
— O mundo será destruído. - Completou o menino triste.
— Não, não, nada disso. — Riu alto a divindade, fazendo os peixes saltarem no rio. O garoto achou que era forma deles debocharem dele também. — Se você não fizer isso, irá ficar pra sempre aqui e com toda certeza irá morrer, pois está chegando o dia da Caçada.
Tobias começou a questionar o que era engraçado para Cica. Se a graça era ele morrer ou a audácia de que ele seria capaz de salvar o mundo.
Ele balançou a cabeça afastando as respostas.
— Não tem como outra pessoa fazer isso? - Perguntou, as pernas amoleceram, o que o fez agradecer por estar sentado. — Eu não sou o mais adequado para essa tarefa.
— Mas é claro que você é o mais adequado! - Respondeu Cica com veemência.
— Sou? - Estranhou o garoto. Sua voz saiu falhada, não acreditava e nem conseguia ver como podia ser adequado para qualquer coisa. — Por quê?
— É simples. - Disse a santa apontando para o garoto. — Você está aqui e está segurando o capuz, é isso que te faz o melhor pra tal situação.
— Ah. - Tobias fez o muxoxo desacreditado e encolheu os ombros derrotado. — É assim, - Começou. — Tem como eu não morrer e voltar para Piracicaba?
— A cidade tem esse nome por causa dos meus dons, mas já fazem eras que os homens se esqueceram de mim. - Começou a divindade mexendo em seus cabelos, alguns fios se soltaram da cabeça e quando tocaram o chão viraram cana e café. Ela olhou para os lados como se tivesse esquecido algo. — Óh, você está aqui, quer ouvir minha história?
O garoto sentia medo, na verdade, desde que acordou cercado por caiporas, ele só sentia medo. Mas diferente da outra vez, não ignorou o conselho do avô. O menino fechou os olhos e lembrou-se do jeito que ele dizia quando fingia estar ouvindo.
— Essa juventude tem pressa, não orve mai os véios, nói sabe de cousas que não se aprende com a tecnologia dos homes. - Falava o velho com as sobrancelhas curvadas quase virando uma, quando bravo puxava ainda mais o caipirês. — Nói capiais sabe quando vai chover só de oiá pras prantas, nói sabe quando arguém vai morre pelos pios dos pássaros, nói sabe curar tudo com as ervas do mato e o mai importante, nói sabe que não dá pra prantar cana e querer coie mio. A vaca não dá leite não meo neto, cê tem que tirar. — Ralhava coçando o cavanhaque de bode. — Totô, orve as estórias dos matutos caipira e de quem quiser te contar uma estória, orve moleque. Abra bem os zuvidos e o coração tem coisa que só se aprende quando se orve.
Tobias encheu a bochecha de ar e o soltou fazendo o barulho de um motor de carro afogando.
— Me conte a sua história e em honra ao meu avô, vou abrir bem os meus zuvidos e o meu coração. - Brincou, fazendo Cica rir e o seu estômago protestar. — Não teria alguma pra eu comer, teria? Fugir de criaturas abre o apetite.
A moça riu mais uma vez e fez que sim com a cabeça derrubando mais alguns fios de cabelo que ao tocarem o chão se tornaram pés de cana. Tobias nem se surpreendeu com o canavial instantâneo, ele ficou parado olhando a moça que em pouco tempo fez uma fogueira e preparou os peixes que saltaram do rio para o monte de pedra onde estavam sentados.
Cica pegou uma pedra afiada, abriu os peixes e jogou os miúdos de volta ao rio onde outros peixes maiores se aproximaram para comer.
— Você é a deusa dos peixes, e vai me dar peixes assado?! — Coçou a cabeça bolado. — Isso não é errado?
Cica o ignorou por um momento, pois estava concentrada colocando em uma folha de bananeira uma tilápia assada com alguns cogumelos. Olhou para o prato e entregou-o para Tobias com um sorriso nos lábios de satisfeita. Já fazia muitas eras que não compartilhava com ninguém uma refeição, e o menino tinha olhos curiosos e a fazia rir, sendo assim caprichou da melhor forma que podia.
— Um dos propósitos da vida do peixe é servir de alimento para os seres divinos e para os homens. - Ela mordeu delicadamente um pedaço de peixe. — Coma, enquanto te conto minha história.
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