O Porão


Nívad seguiu para os últimos corredores com as chaves firmes em mãos.

A rapidez com que andava, deixou Alegna longe de alcança-lo, e antes mesmo que ela pudesse aparecer, destrancou as fechaduras sem hesitar e desceu pelas as escadas de madeira.

Ao deixar os degraus, pôde ouvir os passos da irmã atrás de si, mas não parou, se encaminhando para todos os lados como se buscasse qualquer coisa que fizesse sentido as palavras de Guilherme.

Encontrou um abajur no canto da parede e se apressou em acendê-lo. E quando o ambiente ficou razoavelmente mais iluminado, viu Alegna surgir como um fantasma através da meia luz, tentando convence-lo  de que não havia nada ali.

Então, nesse mesmo segundo, Nívad percebeu uma certa atividade vinda da parte mais escura e profunda do mistérioso porão. Na verdade, eram sons.  Pancadas produzidas em algum tipo de metal. Alegna olhou para trás, preocupada, e depois encarou o irmão que havia se interessado pelo o inusitado. Ela engoliu instantaneamente o nó na garganta quando ironicamente Nívad afirmou que aquilo não parecia muito com ratos ou qualquer outro tipo de praga, seguindo assim o chamado metálico .

Alegna não o impediu, e deixou que ele se fosse. E Nívad passou por ela quase arrastando o seu ombro junto.

A verdade é que estava cansada e devastada demais para tentar segura-lo. Preferiu então deixar a barca fluir. Mesmo sabendo que ela afundaria.

Nívad prosseguiu, sem cautela. No entanto, ao se deparar com o que parecia improvável, sentiu as pernas perdendo a energia, e ele quase tombou para trás, se não tivesse se mantido tão equilibrado. Depois, pensou, que deveria ter chegado menos afoito, e talvez, teria se poupado do grande choque.

"Me ajude..."_ A voz, quando o avistou.

E então Nívad passeou os olhos sobre cada detalhe.

Ao lado da cama, inúmeras caixas de remédios sobre mesinhas. Mas sua atenção foi levada principalmente ao duto de ar que ficava próximo a cabeceira. E foi desse modo, que subitamente, veio a resposta do que achava que tinha ouvido no dia que estava cuidando dos papéis de parede no quarto da mãe.

A tubulação, possuía uma ligação direta entre aquele quarto e o porão. Por esta razão, era propício escutar de lá qualquer movimento que se fazia no porão.

"Menezes também podia ouvir de onde estava... E ele tentou me dizer isso uma vez mas achei que estivesse delirando... _ Pensava, ainda em estado de colisão_ "A casa nunca foi assombrada por fantasmas...  E nem sempre era só o vento... Talvez, muitas das vezes, era apenas isso!"

Alegna se aproximou devagar e percebeu uma lágrima entre os cílios do irmão, e então, comovida, posou a mão com delicadeza sobre o ombro dele, dizendo:

_Sinto muito que tenha descoberto desse jeito...

De repente, o mesmo som que foi ouvido segundos antes, é reproduzido novamente.

_ Meus remédios... _ implorou a voz, batendo o copo de agatha contra o duto de ferro_ Preciso descansar... Mas estou com dor de cabeça... Muita dor de cabeça...

Alegna rapidamente saiu do lado de Nívad e se dirigiu a mesinha repleta de medicamentos. Pegou alguns dos comprimidos e um pouco de água, entregando ao homem.

Nívad continuava estarrecido enquanto observava a cena.

_ Ele não é doente..._ Explicou, acariciando a cabeça do acamado com carinho enquanto o ajudava a engolir as pílulas_ São só as dores nos ossos...  Todo esse tempo, sem se expôr ao sol, acho que causou nele alguma deficiência de vitamina D..._ Tomou o copo das mãos do míseravel e pôs ao lado, agindo com toda naturalidade do mundo_Bem... _Hesitou_ Tem a insônia, que claro que também é um estorvo... Mas os calmantes têm ajudado bastante... Mesmo as vezes não surtindo o efeito que se espera... Têm noites, que o pobrezinho não consegue pregar o olho nem com o tranquilizante mais potente. É de cortar o coração.

Então agora, Nívad havia entendido a quantidade excessiva de analgésicos e tranquilizantes. Deveria ter notado antes que era muito para uma pessoa só tomar. Alegna nunca foi uma viciada em remédios. Mas deixou outra pessoa viciada neles.

_ Não me olhe assim..._ Ela, incomodada com o julgamento do irmão logo após ajeitar os travesseiros_ Como se eu fosse essa pessoa horrível!... Não há porque se preocupar! Não vê como ele está bem cuidado? Sempre o mantenho limpo e bem alimentado. Mesmo nas nossas piores crises, nunca deixei que lhe faltasse as frutas, os legumes e o leite... Jamais permiti que passasse fome ou ficasse sujo por muito tempo. Ele é minha responsabilidade e eu nunca faltei com ela.

_Você está se ouvindo?_ Nívad, balançando a cabeça, pasmo_ Ao menos, tem noção do que fez aqui?... Você  prendeu nosso pai todos esses anos... E está agindo como se fosse uma coisa absolutamente normal.

_ Não foi por maldade, meu irmão... Acredite! Eu não queria isso, mas tive que fazer.

_ Usando do mesmo discurso do marido, Alegna? Sério?

Ela baixou a cabeça, suspirando. Continuou:

_ Ele estava negociando a venda da mansão, para um grupo de investidores estrangeiros; famosos em transformar casas históricas e antigas como estas, em grandes hotéis temáticos... Na época, durante minhas pesquisas, descobri que possuíam vários empreendimentos nesse estilo, espalhados pelo o país inteiro!_ Se aproximou_ Credo, Nívad! Eles iriam transformar a nossa casa, que foi construída com tanta apreciação, num simples local de entretenimento pra turista... Um circo! Como você disse uma vez!  E o pior nisso tudo, é que só teríamos conhecimento do fato, quando já tivessem fechado o negócio..._Se mostrando chateada enquanto balançava a cabeça_ Um dia, a gente iria acordar, e seríamos obrigados a arrumar as malas nas pressas e partir... Isso, sem direito a uma única explicação! Sequer seríamos consultados! Achei um absurdo! Afinal, nós morávamos aqui também!...  Você há de concordar, que sem dúvida, foi uma grande falta de consideração de nosso pai agir dessa maneira com a gente! E é claro que eu não poderia deixar isso acontecer! De jeito nenhum!Ainda bem que eu descobri há tempo.

_ Meu Deus, Alegna_ Incrédulo, depois de um segundo_ Essa sua obsessão pela a casa, deixou você completamente louca!... Minha nossa! Inacreditável! Lembro como se fosse hoje, o quanto você ficou desesperada, e no quanto encheu o saco dos polícias para que não desistissem das buscas... Você até chorou! Chorou copiosamente, quando eles informaram que precisavam encerrar... Caramba, garota!..._ Nívad estava realmente impressionado com ela_  Como... Como conseguiu agir de forma tão dissimulada? Que tipo de pessoa é capaz de mentir tão bem assim?... Fora aquele outro lá na sala, é claro!... Porque agora... Agora vocês me parecem totalmente iguais.

Nívad deu um pequeno passo para trás, pisando nos livros de páginas abertas. Olhou para eles e pegou um dos exemplares.

Numa das contracapa, havia uma pequena palavra escrita a lápis

"Dor "

E rapidamente, ele concluiu o raciocínio.

_ É a letra do nosso pai.

_ Ele sempre gostou de leitura. Você sabe disso._ Alegna, parecendo desconcertada_  Todos os dias, trazia um desses pra ele... Mas chegou um ponto, que era tão cansativo procurar algo que ele já não tivesse lido, que acabei tendo a ideia de deixar todos aqui. Isso facilitou muito o trabalho.

_ É impressionante o vício da  mentira.. _ Nívad, jogando o livro sobre as pilhas ao lado_ Mesmo quando é desmascarada, continua com lorota... Você não trouxe a biblioteca inteira aqui pra baixo, só para facilitar o seu trabalho... Você trouxe por pura precaução! Eu lembro que vendi um desses livros para o desgraçado do Menezes... E se ele viu um desses pedidos de socorro, com certeza desconfiou de alguma coisa... E foi justamente por este motivo, que vocês se livraram dele, acertei? Ele chantageou você, não foi?

_ Eu não matei ele._ Prontamente disparou, impaciente.

_ Eu também não!... Então, só sobra uma pessoa nessa história... Uma pessoa, aliás,  que parece bem acostumada a tirar vidas..._ Apontou pra ela em seguida_ Eu só sei de uma coisa: Não vou continuar aqui e compartilhar o mesmo teto com um assassino e uma louca que prende o pai num porão... Eu vou pega-lo..._ Apontou para o senhor na cama_ E  leva-lo comigo.

Nívad passou por ela e se dirigiu ao homem, pedindo que ele se segurasse nele pois o ajudaria a se levantar.

_ Você não pode fazer isso!_ Alegna, sentindo a aflição de volta_ Não pôde tira-lo daqui assim!

Nívad a ignorou, tentando apenas fazer com que o coitado se prendesse em seus ombros.

_ Ele não vai aguentar, Nívad!_ Implorou_ Os ossos dele são fracos! Não faça isso! Por favor.

_ Saí da minha frente, Alegna..._ Disse, arrastando o homem consigo em direção as escadas.

_ Você nem tem pra onde ir!_ indo atrás deles_ Como vai cuidar dele? Sem dinheiro? E sem ter absolutamente Nada a oferecer?

_ A gente se vira!... _ Subindo os degraus com cuidado.

_ A gente se vira? Que bela resposta! Você não tem noção do que está dizendo! Vão se virar com o quê, Nívad? Ele vai acabar morrendo nas suas mãos! Isso sim! É isso que você quer?

Nívad parou no meio das escadas e olhou pra ela com certa dureza.

_ Se realmente... Se realmente se importasse com isso, não o teria deixado num maldito porão todos esses anos, privando o pobre coitado de viver com dignidade! Então não me venha com esse papinho emocionado agora, Alegna. Porque simplesmente não vai colar!_ Voltando a subir.

_ E porquê VOCÊ deveria se importar?_ Ela disparou, agressiva_ Ele nem é o seu PAI!

Nívad parou novamente, e como em câmera lenta, a encarou.

_ Entendo que seu desespero esteja fora de controle agora... Mas isso foi realmente baixo.

_ Não é mentira... Eu juro!... Se não acredita em mim, pergunte a ele então.. _ Acenando a cabeça para o homem enganchado nele.

.
Nívad ainda olhou para o pai.
Mas Magno Aurom estava drogado demais para responder qualquer coisa naquele momento.

Duvidou se algum dia ele poderia.

_ A tentativa dele, de se desapegar da mansão, tinha uma razão bem mais forte do que apenas tédio, falência ou o constante mal tempo da Colina... Magno queria fugir do passado, e de todos os acontecimentos ruins que a casa transportava... Afinal, meu irmão, pense um pouco, não deveria ser nada fácil, conviver com a lembrança de que o próprio pai, em algum desses cômodos, havia engravidado sua amada Heidi.

_Alegna, pelo o amor de Deus, pare..._ Apertou os olhos_ Você está começando  realmente a me assustar! Não precisa chegar a este nível porque não vai adiantar... Por favor, veja, minha irmã, não será tão ruim assim no fim das contas... Indo embora daqui, você não precisa nunca mais se preocupar comigo ou com o destino da Mansão... Sua vida não irá mudar com a nossa partida... Você continuará aqui, se consumindo nessa sua falsa felicidade, acordando e dormindo, presa no interior  destas paredes repletas de morfo e crueldade ..._ Suspirou_ Eu só quero mesmo ir embora, e ficar bem longe de você e deste maldito lugar... Eu tenho esse direito... Por isso,  o que você fizer, ou disser agora, não vai mudar em nada minha decisão... Então pare com tudo isso, por favor.

_ Você sabia que não foi consensual?_ Ela continuou, como se não tivesse escutado uma palavra do que ele disse_ Poisé... Foi um estupro!

Nívad a olhou horrizado.

_ Isso mesmo que você ouviu. Nosso avô, o grande e respeitado Charles Aurom, violentou nossa mãe... E adivinha o que aconteceu depois? Ela o matou! E Magno, o homem que você está sentindo tanta pena agora, encobriu o que a esposa fez. Deixando a assassina do próprio pai, sem pagar pelo o crime. Fazendo dele, cúmplice dela. Portanto, ninguém alcançará os céus nesta família. Ninguém! E Pra onde você for, Nívad Aurom, carregará sempre a herança desumana e malévolente deles. Nosso sangue tem um gosto pela a iniquidade, meu irmão. E nunca seremos capazes de fugir disto. Então, seria mais vantajoso pra você, que ficasse. É melhor descobrir que é um típico Aurom, dentro destas paredes, do que descobrir isso lá fora. A mansão sempre protegeu a gente de nós mesmos... Deixe que ela continue fazendo isso... Deixe que ela continue protegendo você.

Nívad com enorme espanto, sem acreditar em uma palavra de Alegna, deu as costas e carregou o pai mais rapidamente até a saída do porão.

Guilherme vê os dois homens agarrados um no outro atravessando a sala rumo a porta, e ele dá um sorrisinho de canto de boca, satisfeito que seu plano de desestruturar a cumplicidade passageira dos gêmeos tinha dado certo.

Nívad abriu a porta e uma rajada forte de poeira e vento golpeou seu rosto. Magno parece não ter sentido graças a quantidade de remédios circulando em seu corpo mas   pareceu entender que a Colina inteira estava dentro de um enorme redemoinho.

Nívad se esforçou o máximo para mexer as pernas e tentar  sair da varanda. Prendeu então o pai ao próprio corpo, fazendo com que ele caminhasse sem tremer tanto.

Os dois seguiram como duas pobres criaturas incapazes, mas cientes de que talvez pudessem enfrentar o caos que o tempo infernal lhes trazia. Nívad lembrou da última tempestade de vento há duas semanas atrás, mas aquela verdadeiramente parecia mais violenta de todas que já tinha visto.  

Alegna correu até às janelas da sala e ficou a observa-los. Por um segundo, sentiu compaixão, e ficou tentada a ajuda-los. Mas logo surgia a raiva de Nívad por expôr o pai aquilo e o sentimento se findava.

_ Eu posso trazê-lo de volta_ Disse Guilherme, atrás dela, ainda preso a cadeira.

Ela o ouviu mas nada falou, continuando a ver a luta deles lá fora.

_Os dois... Juntos... Terão uma força maior para se livrarem de tudo aqui..._ Ele continuou _ E eu sei, que é algo que você nunca quis... Lutou contra isso a sua vida inteira, Alegna, então não se entregue agora... Não permita viver sem a sua história e longe de suas memórias, por causa de pessoas que não souberam valorizar isso.

Ela finalmente pareceu escuta-lo e ele percebeu isso com alegria.

_ Me solte, querida... Para que eu possa ajuda-la.

_ Eles não irão muito longe..._ Olhou pela a janela outra vez, vendo a dificuldade dos dois ao atravessar o terreiro_ Não com nosso pai fraco desse jeito... E ainda mais com essa ventania toda...

  Mas de repente, sua expressão mudou, quando avistou o irmão chegando até a picape e pondo o pai no banco do carro e indo até o porta luvas.

Nívad vasculhou todo o interior do veículo em busca das chaves. Sem sucesso, deixou Magno, retornando para a mansão.

Alegna sabia que ele estava vindo pegar as chaves e se desesperou, tentando impedi-lo de entrar. Mas Nívad era bem mais forte e a empurrou, se dirigindo até o porão. Lá, pegou o molho de chaves de Guilherme que havia deixado pendurado na tranca e depois passou novamente por eles, indo para os andares de cima. No quarto da mãe, apanhou algumas das jóias espalhadas pelo o chão e encheu um dos bolsos, voltando em seguida para a picape.

Assim que ele bateu a porta, saindo da casa, Guilherme aproveitou e pediu mais uma vez para ser solto. E Alegna, vendo-se perdida, não teve outra alternativa a não ser confiar no marido.

Guilherme tomou de suas mãos a mesma faca que ela havia cortado as cordas que o prendia, assustando-a com o sobressalto. No entanto, ele fez questão de tranquiliza-la, afirmando que só iria imobilizar Nívad e que não precisa se preocupar.

Por desespero, ela acreditou nele, e apenas correu para as janelas para assistir quando Guilherme atravessou a porta em direção aos dois lá fora.

Alegna não gritou...

E não demostrou também nenhuma reação, sequer discreta, quando viu Guilherme entrando na picape e golpeando o irmão.

Nívad havia sido pego de surpresa. Estava com olhos baixos, girando as chaves na ignição, por isso não se atentou ao cunhado ingressando rapidamente pela a porta do passageiro, ao seu lado. De fato, só se deu pela a presença, quando já era tarde demais.

Nívad sentiu a perfuração abaixo de sua cintura, e logo após, se contorceu de grande dor.

Guilherme jogou a lâmina ensanguentada fora e tirou Nívad da Picape. Imediatamente, Alegna abandonou a janela e correu, abrindo a porta para que ele entrasse com um de cada, carregando-os pelos os braços, numa rápida sequência.

Guilherme parecia saber o que estava fazendo.  Concentrado e firme, colocava os dois em poltronas separadas enquanto  pedia que Alegna buscasse analgésicos, calmantes e a caixinha de primeiros socorros.

Enquanto ela fazia isso, Guilherme amarrou os pulsos de Nívad só para garantir. Mas nem que ele quisesse, conseguiria reagir. Ele apenas delirava, vendo o sangue que escorria de seu próprio corpo, se espalhar pelas as suas calças.

Alegna surgiu com o que foi pedido, e Guilherme sentiu a preocupação em seu rosto, a tranquilizando novamente.

_ Não se preocupe... Não vai mata-lo... Eu prometi, não prometi?... Venha, vamos limpa-lo e fazer uma suturação.

Ela obedeceu, e o ajudou a costurar o irmão.

A sangue frio.

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