O Futuro Chegou
Guilherme observou mais uma vez a rua vazia através das persianas do andar de cima da farmácia. Olhou depois para o empoeirado relógio de parede e viu que já passava das três da madrugada.
Apesar de não existir um pé de pessoa lá fora, preferiu ficar assim, de tocaia por intermináveis minutos antes de iniciar a ação.
Sentindo-se seguro finalmente, fechou as cortinas rapidamente se dirigindo ao quartinho dos fundos do estoque. Sem trato, retirou as correntes do homem que ele havia acabado de dopar, carregando-o em seguida pelos os ombros até a picape estacionada em frente a farmácia.
Após colocar Jonas no assento do passageiro, deu meia volta e trancou as portas do estabelecimento, deixando um aviso grudado na madeira onde informava que aquele lugar não mais funcionaria.
Muitas perguntas surgiriam em torno do real motivo de uma das farmácias mais antigas de Peregrino ter fechado as suas portas assim, da noite para o dia. Mas Guilherme não parecia nem um pouco preocupado com isso. Deixaria que eles mesmos concluissem sobre uma possível decisão do farmacêutico em morar de vez com a família lá em outro estado. E era só isso que eles teriam, suas próprias respostas, pois Guilherme não pretendia dar-lhes satisfação de absolutamente nada por um bom tempo.
Guilherme não retornaria tão cedo àquela parte da cidade depois daquela noite.
Serão meses de total reclusão na colina.
Esse era o plano do casal Aurom.
Nívad não fez menção inicial alguma quando viu Jonas ser jogado numa cama ao lado. De certa forma já tinha imaginado, ao observar toda a preparação metódica do porão para maís um hóspede, há uns dois dias atrás. Nívad havia apostado com ele mesmo, que o próximo a viver nas profundezas da Mansão Aurom, seria o coitado do mutilado que o cunhado mantinha sob seu domínio. Por esta razão, não foi nenhuma surpresa ter visto Jonas ser trazido como um mulambo velho para fazer parte daquele suplício.
Enquanto Jonas aínda era amarrado as grades da cabeceira, Nívad olhou para o pai para se certificar de que estava acordado e vendo tudo também. No entanto, só atestou que Magno estava cada vez menos entre eles. Com o olhar preso no teto, baba descia pelo o canto da boca, ensopando o pijama do homem no peito, e a única coisa que Nívad podia pensar era como um corpo conseguia resistir a isso sem entrar em um colapso fatal por todos esses anos...
Quanto tempo mais aquela criatura aguentaria tantos sedativos?
Será que ninguém aqui percebe que viver desse jeito é pior do que qualquer morte?
Nem um trem passando por cima de alguém se compara a isso!
_ Tá vendo isso, Magno Aurom?..._ Sussurrou Nívad_ Não foi o senhor mesmo quem sempre mimou mais sua filha Alegna? Não era ela a mais quietinha e eu sempre o mais danado e travesso?... Agora veja só o que a sua preferida aprontou com a gente... Sua própria família..._ Nívad quase riu e pensou um pouco Antes de continuar_ Eu não era fácil de verdade, confesso... Mas jamais teria extraído sua alma desse jeito.
Magno parecia ouvi-lo e virou a cabeça devagar na direção dele.
O que talvez Nívad não compreendesse, era que toda a atenção excessiva dada a Alegna quando criança tinha um motivo. Magno apenas estava se precavendo e sendo cauteloso com o futuro da filha.
Afinal, o que poderia se esperar de uma menina que presenciou o suicídio da própria mãe?
Precisava mantê-la dentro de uma visão absoluta e incansável de que era amada o tempo inteiro, para que não se transformasse em algo que Magno não soubesse enfrentar. Mas quando ele percebeu que nada disso havia adiantado, que seu amor não era o suficiente para Alegna suprir o que houve com a mãe, e que há tempos ela já havia se tornado uma pessoa doente, ele pensou em deixar finalmente todos os esforços para trás e partir.
Realmente foi uma pena que a filha tenha descoberto seus planos e lhe impedido de se livrar daquele lugar que só lhe trazia más lembranças e tentar viver de outro modo.
Magno havia criado uma atmosfera completamente obscura na vida dos filhos quando decidiu se isolar. E quis concertar isso quando percebeu o grande erro cometido. Mas já era tarde demais. As consequências lhe tomaram as rédeas.
"Por favor Deus, mande uma doença qualquer... Algo que seja rápido e fatal... Não, melhor! Faça com que me matem! Também tô aceitando isso!"_ Continuou Nivad no pensamento_ " Porque eu juro que vou acabar ficando doido de pedra se tiver que ficar mais um dia aqui nesse buraco junto desses outros dois... É sério!... Dá uma mãozinha aí, vai? Manda pelo menos uns daqueles vendavais que a gente vê nos noticiários... Um bem cruel mesmo! Que não só arraste telhados e quebre janelas mas que seja capaz de tombar esse maldito lugar de uma vez por todas!"
Os pedidos de Nívad foram interrompidos pela a escuridão. Depois que Guilherme acomodou Jonas, apagou as luminárias e saiu sem dá nenhuma explicação sequer.
Nívad então apenas respirou fundo e voltou a dormir.
Não tinha mesmo outra coisa a fazer alí.
Dormir e esperar que Deus o tenha escutado.
Na verdade, nunca foi uma pessoa muito religiosa. Mas ultimamente, vem conversado bastante com olhos voltados para cima.
______
A partir daquele dia, nos meses que se sucederam, Nívad notou uma diminuição nas visitas de Alegna ao porão. Aos poucos, Guilherme foi tomando conta das funções sozinho até ela desaparecer por completo. É claro que diante disso não poderia permanecer quieto, e sempre perguntava pela a irmã.
Guilherme apenas se limitava a dizer que ela já tinha feito muito lá em cima e que estava descansando, e logo depois completava que não era justo a esposa ter que descer para cuidar deles. Pois era um trabalho duro e árduo para ela, e que ele mesmo poderia cuidar do porão como forma de ajuda-la. Mas Nívad não acreditava nessas histórias, e acabou confessando o que pensava sobre elas ...
_Não precisa esconder, Guilherme ... Você a matou, não matou?..._ Um segundo_ Realmente não entendo porque não pode falar... Pensei que já tivesse se acostumado com isso.
Guilherme não expressava reações que demonstrasse uma resposta afirmativa quando era questionado daquela maneira, e seguia normalmente fazendo as tarefas do dia dentro do porão.
_ O senhor tem dúvidas de que seremos os próximos?
Magno sempre ficava agitado quando o filho vinha com essas conversas, e batia seu copo de alumínio contra o tubo de ar, clamando desesperadamente por Alegna.
Jonas, coitado, nunca conseguia pronunciar uma única sílaba, e tentava pedir socorro enquanto olhava para Guilherme como se implorasse por um pouco de compaixão.
_ Pelo visto, morrer com dignidade, não é pra qualquer um._ Concluía Nívad ironicamente, quando se deparava com a cena dramática que os dois protagonizava.
Guilherme simplesmente os ignorava.
Na verdade, parecia mais focado em manter o porão limpo e impecável para o conforto dos seus enclausurados.
𒀱
Pouco mais de um ano do desaparecimento de Alegna, numa tarde quente de verão e ventos extremamente violentos, Nívad finalmente abstraiu o calor e se deixou guiar pela a sonolência que sempre lhe atingia logo após o almoço. O cochilo da tarde era quase inevitável diante do estado monótono em que vivia. No entanto, não se entregou totalmente ao sono de uma vez naquele dia pois passos arrastados acabaram o despertando.
Guilherme costumava recolher os pratos e os talheres deles após as refeições. Sendo assim, já hábituado a isto, Nívad apenas abriu as pálpebras um pouco e as fechou novamente.
Segundos depois, sentiu o leve e suave toque em um de seus pés. Ao reabrir os olhos devagar, ficou meio confuso, pensando que talvez já estivesse sonhando. As vezes ele se perdia nisso. E sua noção falha sobre fantasia e realidade lhe causava confusão mental. Nunca sabia se estava apenas tendo um simples pesadelo, ou se de fato vivenciava um de verdade.
Ainda na incerteza, direcionou o olhar para Magno e Jonas, e a expressão de espanto deles confirmou que não se tratava de uma ilusão.
_ Pensei que estivesse morta._ Disse Nívad, ao retornar o olhar para a mesma direção de antes.
_ Estou bem viva, meu irmão, como você pode ver._ Alegna respondeu com um sorriso meigo e acolhedor.
_ Então porque teve que sumir por tanto tempo?... Porque abandonou a nós? Sua família há quem tanto insiste em dizer que é importante pra você?... Não parecia tão disposta a cuidar de todos há um ano atrás?
Alegna não rebateu. Apenas se virou, pedindo que Guilherme aparecesse.
Enquanto o marido se aproximava ao fundo, Alegna foi se explicando.
_ Não morri como pensou e tão pouco estava doente... Não, nada parecido... Muito pelo o contrário. Estava transbordando em saúde, e realizando finalmente os sonhos do patriarca desta família... O nosso querido e inigualável avô Pedro Charles Aurom.
Os três prisioneiros pareciam hipnotizados com a chegada de Guilherme...
Eles jamais imaginaram algo como aquilo quando pensaram no fim que Alegna poderia ter tomado.
_ Quero lhes apresentar a nossa pequena flor, Heidi Maríah Aurom... E nosso pequeno e astuto menino, Pedro Charles Aurom Neto.
Alegna tirou a linda menina de laço de fita dos braços do marido, ficando assim os dois com cada um das crianças. O menino estava com olhos fixos nos três acamados a frente enquanto no colo do pai. As crianças tinham aspecto saudável e aparentavam não mais do que seis meses de vida.
Nívad mal conseguia manter a boca fechada de tão pasmo, e só pensava nos sons que ouviu nesses últimos meses vindo lá de cima. Ele jurava que era apenas miados de gatos mas na verdade era choro de criança.
Magno, por sua vez, pareceu se encantar com a situação e tentou sorrir, mas por conta de uma paralisia facial que ganhara nos últimos dias, quase não foi possível.
Jonas ficou imóvel e se contentou em ficar assistindo sem lançar um ruído sequer pela a primeira vez. Esse, já tinha largado de lutar por sua liberdade há muito tempo. Um Aurom a mais, ou um Aurom a menos na vida dele, não iria fazer a menor diferença.
_ Somos uma bela e grande família agora... _ Alegna_ E quando vocês estiverem prontos e decididos a amar tudo isso também, ficarão livres, para que convivam com a gente harmoniosamente lá em cima... Basta apenas que... Basta apenas que eu me sinta convencida disso... Preciso sentir que posso confiar em vocês antes de permitir que fiquem perto das crianças..._ Olhando para as crianças com carinho_ Carrego em mim bastante fé, e sei que esse dia não irá demorar... Eu sei... Eu sei que sim _ Suspirou_ Então, enquanto isso não for possível, prometo que sempre irei trazer os gêmeos aqui, para que fiquem um pouco juntos, e assim, se conectarem melhor... Acho de extrema importância que criem um laço afetivo e saudável... Eu quero muito isso! De verdade... Porque não irei permitir jamais que os mesmos erros se repitam nesta casa... Não com os meus filhos!... Nada mais de mentiras ou segredos! Pretendo fazer deste lugar, o que foi feito para ser desde a primeira coluna de sustentação: Um lar_ Um segundo para segurar a emoção. Continuou_ Essas crianças, são o futuro dos Aurom's. E elas irão crescer, sabendo que este nome é o maior entre todos. Se orgulharão disso. Podem apostar! Elas jamais sentirão, que devem fugir de suas raízes, ou mesmo, renega-la... Meus filhos... Os seus netos, papai... E seus sobrinhos, meu irmão... Nos honrará de maneira correta e digna que só um verdadeiro Aurom merece. Meu avô tinha razão. Nossa história será perpetuada, e jamais esquecida, enquanto formos agraciados com crianças como essas. Elas demonstram, que não existirá fim para nós. Que não existirá fim para o nome Aurom. E tão pouco, que existirá, um fim para este lugar. A Colina, é nossa casa. E sempre cuidaremos dela, em todas as gerações que nos vier.
Guilherme colocou os braços em volta da esposa como forma de apoio, olhando-a com admiração. Ela retribuiu com um sorriso quase maquiavélico, dependendo do ângulo de algum dos prisioneiros mas especificamente pelo o ângulo de Nívad.
As crianças, pareciam as únicas inocentes entre o casal, mas uma coisa todos concordavam: Isso, só até aprenderem a dizer as primeiras palavras.
Afinal, os Aurom tinham um certo costume de confundir desumanidade com amparo e amor facilmente. Com essas crianças não seria diferente. Principalmente com pais loucos lhes implantando na mente essas alienações do tipo...
" Matei para te proteger"
Ou
" Lhe prendi num porão porque quero nossa família unida"
A questão era que uma nova geração estava dando o pé inicial rumo ao que Charles sempre esperou.
E a nobreza de seu nome seguiria adiante.
Alegna iria garantir que seu nome não ficaria mais grudado na sujeira dos caminhos tortuoso em que foi deixado.
Há de ter sucesso e glória outra vez!
E quem sabe, um dia, enquanto estiverem andando por aí distraídos, ouvirão qualquer coisa sobre Os Novos Gêmeos de Falcão Peregrino e sua lendária Mansão Na Colina.
Mas de uma forma bem mais agradável.
"Inteligentes como o bisavô Charles e inocentes mas espertos como a mãe Alegna"
"Ah é, Porque se for pra puxar, é bom que só puxe aos destemidos da família!"
Fim
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