Aborrecível
⌑⌑⌑
Já era bem tarde da noite quando Alegna resolveu finalmente cuidar de Menezes.
Ele havia ficado desacordado o dia inteiro. E ela até duvidou se o homem acordaria um dia.
Começou retirando os óculos de grau totalmente torto e estilhaçado limpando cuidadosamente o sangue ressequido grudado na bochecha e testa.
De repente, os olhos dele se arregalaram como quem alcança a visão depois de anos de cegueira, assustando Alegna completamente.
Ela não esperava que despertasse justamente naquele momento em que ficariam a sós. E se afastou bem ligeiro, ficando longe da cama.
Observando-o, deduziu que talvez tenha sido o cheiro do álcool que o tenha feito voltar do desmaio. Permaneceu assim então, no cantinho do quarto. E nem mesmo quando Menezes iniciou uma crise intensa de tosse, ela se propôs a voltar para perto afim de ajudar.
Nívad entrou no quarto naquele momento e pareceu não se compadecer também. Mas vasculhou os bolsos do homem até encontrar a bombinha para a asma, com toda calma do mundo. Ele já tinha presenciado várias vezes como Menezes usava aquilo, então enfiou sem o mínimo trato o aparelho na boca do infeliz, e bombeou repetidamente até ver melhora.
Quando se restabeleceu, aconteceu uma espécie de click na cabeça dele, como se só naquele momento tivesse tendo consciência do que estava acontecendo. Irritado, remexeu os pulsos presos as grades e ordenou que lhe dessem uma explicação. Nívad nada respondeu, e apenas continuou a olha-lo.
Alegna, ainda bastante tensa, continuou como uma estátua. Até parecia que estava diante de uma pessoa que tinha acabado de voltar dos mortos.
Diante das insistências do prisioneiro em busca de respostas, Nívad pediu que ele se acalmasse pois acabaria ficando sem ar novamente. Mas não porque estava preocupado. Ele só não queria ter que ficar fazendo serviço de enfermeiro pro miserável o resto da noite.
_Nivad, seu desgraçado!_ esbravejou o homem_ O que pensa que está fazendo?... Não pode fazer isso! Alguém vai sentir a minha falta há qualquer momento!... E você... Você irá apodrecer na cadeia, seu infeliz!
Nívad deu um risinho debochado.
_ Não pretendemos te manter preso, velhote... E mesmo que a gente fizesse isso, ninguém perderia tempo procurando por uma alma tão sebosa... Vamos ser sinceros, Menezes: Quem nesse mundo sentiria falta de uma criatura como o senhor?
_ Porque está fazendo isso? ... _ Continuou se retorcendo todo_ Com que direito acha que pode me prender aqui?
_ O senhor ao menos lembra do que fez?_ Nívad tranquilamente_ Tem sorte de eu não ter chamado a polícia... Seria acusado de Invasão a domicílio e tentativa de estupro! Acabei lhe fazendo foi um grande favor, velho mal agradecido!
_ Estupro?_ Franziu a testa_ Mas do que você está falando? Respeita a minha idade! Eu Jamais cometeria um ato tão escrúpuloso!
_ Com certeza não em outro lugar_ Nívad Rebateu_Mas aqui, num ambiente isolado e longe de tudo, bastou ter a chance_ Apontou em direção a Alegna_ Veja o que você fez! Olha pra ela! Está em Pânico!
_ Isso é uma calúnia!.. E das grandes!.._ Gritou_ Não encostei um dedo nela! E ela sabe disso.
_ Não encostou porque ela foi mais esperta e rápida. Só por isso.
_ Você não vai escapar disso, Nívad... Nem você e nem a mentirosa da sua irmã!_ Olhou diretamente pra ela_ Assim que eu sair dessa cama, vou entrar na primeira delegacia que encontrar e contar tudo o que eu sei!_ Nívad Franziu a testa, intrigado_ E só vou sossegar, quando ver os dois, detrás das grades!.. Pois fiquem sabendo que isso é sequestro! Ouviram? Sequestro!
Começou a tossir novamente e Nívad saiu, acenando para que a irmã fizesse o mesmo.
Ela o acompanhou, deixando Menezes gritando sozinho.
_ Está completamente descontrolado_ Nívad para Alegna, enquanto se dirigiam rapidamente para a sala.
_ Por isso mesmo que não podemos deixa-lo sair, Nívad. Ele vai contar um monte de mentiras a polícia... E seremos presos com certeza!
_ O que ele quis dizer com "vou contar tudo o que eu sei?"
_ Para nos confundir!... O que ele quer de verdade é sair pra inventar histórias ao nosso respeito pra todo mundo.
Alegna lembrou das frases de socorro no livro mas preferiu não contar ao irmão. Ele não precisava de mais essa preocupação.
_Então me ajude a pensar rapidamente em algo melhor do que manter um homem em cárcere privado, Alegna... Não sei o que fazer aqui... Soltar agora não é possível, mas mantê-lo preso também não é uma grande ideia... Já pensou, ter que ficar alimentando, limpando e cuidando desse velho safado, Deus sabe lá por quanto tempo? Eu prefiro a prisão. Prefiro mesmo!
_ Não será por muito tempo. Só até confiarmos nele o suficiente para deixa-lo ir... Analise a situação, Nivad... É a palavra de um senhor de idade, doente e ferido, contra os gêmeos esquisitos da colina ... Em quem você acha que eles vão acreditar? Depois de tudo de nebuloso que já aconteceu dentro dessa mansão? O suicídio de nossa mãe... O desaparecimento misterioso de nosso pai... E agora do nada, um inocente e frágil velhinho aparece dizendo que foi agredido enquanto esteve nos visitando. Seremos condenados e colocados na fogueira num piscar de olhos.
"E você nunca se casará. E a porcaria dessa casa nunca será vendida!"_ pensou.
_ É, Você tem razão_ Chegando finalmente a sala principal_ Mas já adianto: você cuida dele! Já tenho muito com o que me preocupar. Essa semana mesmo por exemplo, vou passar a maior parte do tempo na cidade, por conta de alguns serviços que milagrosamente arranjei_ Suspirou com as mãos na cintura_ Não posso simplesmente ficar aqui servindo de babá, atendendo as necessidades básicas desse pervertido... Você sabe o quanto precisamos que eu faça esses bicos... Cada vez mais ficamos sem dinheiro algum... Não posso me dá o luxo de passar o dia inteiro dentro de casa, Alegna.
Ela só respirou fundo, concordando.
_Agora vou descansar um pouco... E você deveria fazer o mesmo..._ Ele disse, já se retirando, mas hesitou quando viu uma estranha pasta sobre a mesinha_ Isso é dele?_ Apontou. Nem tinha prestado atenção que aquilo estava ali.
E Alegna quase surtou quando percebeu que o livro de poesias estava quase aos pés dele, jogado por baixo da mesa.
Quando empurrou Menezes, o livro que estava nas mãos do velho, voou longe e havia parado lá.
Ela afirmou com a cabeça então Nívad pegou a pasta e a abriu.
Alegna rezou para que não houvesse mais livros iguais aqueles.
Nívad tirou alguns papéis com endereços e telefones de clientes, promissórias e boletos, e também dois vidros de um xarope. E logo descobriu uma carteira que continha uma boa quantia em dinheiro.
_ Parece que já temos o pagamento pela a estadia do safado_ Mostrou as notas a irmã, se referindo aos gastos que teriam com Menezes.
Pôs o dinheiro todo no próprio bolso, levando a pasta também consigo.
_ Vou esconder isso em algum lugar. Quando a gente soltar ele, eu devolvo...
Com ar irônico, se dirigiu para às escadas.
Alegna esperou que o irmão sumisse e foi até a mesinha, pegando o livro do chão.
Em mãos, o envolveu em seu peito com carinho, e depois seguiu para a biblioteca.
Acendeu algumas velas e trancou a porta.
Cuidadosamente, folheou todas as páginas.
E cada vez que encontrava as palavras escritas a lápis em alguma delas, as arrancava, jogando numa lixeira de metal.
Após analizar o livro inteiro, viu que não havia mais daquilo, e então, pegou uma das velas e queimou o papéis cheios de poesia e dor na lixeira.
Enquanto tudo queimava, pegou novamente o livro, fechando-o e colocando-o entre os outros na prateleira.
_ Se voltou, é porque nunca deveria ter saído..._ Enquanto passava os dedos sobre o exemplar espremido numa fileira_ Este é o seu lugar. Como tudo nessa casa, cada coisa, tem seu cantinho.
⌑⌑⌑
Alegna estava realmente cansada. Fazia uma semana que Menezes estava com eles e parecia uma década de tanto trabalho que o homem a fazia passar.
Alimenta-lo, limpa-lo, não esquecer os remédios e ainda ter que cuidar do porão e da casa inteira!
Meu Deus, era muita coisa!
Já Guilherme continuava com os bicos em peregrino. Vinha em casa pra comer qualquer coisa e só voltava a noitinha. Sendo assim, ela estava praticamente sozinha, sem ajuda alguma. Mas tinha que ser assim para que as coisas dessem certo.
As cinco da tarde, ela foi até o quarto onde Menezes se encontrava para levar um chá de capim santo como de costume. Quem sabe um chá não aliviaria aquela tosse chata dele.
Ele estava acordado quando ela entrou com a bandeja em mãos. Sentou numa cadeira ao lado e o ajudou a tomar o líquido_ Já não tinha tanto receio em chegar perto dele assim_, Mas deu um pulo quando ele desatou a tossir derramando metade do chá sobre ele. Isso ela ainda não havia se acostumado. Sempre que começava uma crise de tosse do nada, ela tomava grandes sustos. E se afastava depois por asco do que mesmo por piedade.
_ Isso não vai adiantar_Disse ele através da rouquidão_ O que eu preciso é sair daqui... Esse morfo é o que tá me matando.
_Sabe que não posso deixa-lo ir_ Rebateu.
_Não deveria permitir que apenas seu irmão decidisse as coisas_ Mais tosse.
_ Na verdade, decidimos juntos! Eu também não confio no senhor ainda.
_Não vê que posso piorar?_ pigarreou_ Vou acabar realmente precisando de um médico.
_ Infelizmente não posso fazer nada!_ Ela se ergueu_ Enquanto não mostrar que é digno de confiança, não podemos deixa-lo que vá embora..._ Suspirou depois de um segundo_ Mas pode deixar. Amanhã farei uma limpeza pesada neste quarto. Vou tirar toda a poeira e com certeza ficará melhor para o senhor respirar.
Ela ia sair quando ele começou:
_ Senhorita Alegna, por favor _ Ela parou no meio da porta, olhando-o_ Me Desculpe... De verdade. Não deveria ter feito aquela proposta a senhorita... E tão pouco, insinuar coisas sobre o desaparecimento de seu pai... Eu estava sem pensar direito... Mas acredite, realmente estava sendo sincero quando achei que poderia está ajudando...
_ Fui tão clara, quando disse que o livro havia sido adquirido bem depois... Mas mesmo assim, preferiu não acreditar em mim...
_Eu sei... E me envergonho muito de ter duvidado da senhorita e principalmente pelas as minhas atitudes... Mas a senhorita há de entender, que com caligrafias tão idênticas, se tornava difícil não achar que as palavras naquele livro, realmente não pertenciam ao senhor Aurom.
_ Era só uma coincidência. Nada além disso, senhor Menezes. Quando aquele livro de poesias chegou até a essa casa, muitos anos depois, só tive interesse de ler as duas primeiras páginas e logo o abandonei nas prateleiras... Até então, não havia encontrado nenhuma daquelas frases, porque de fato não cheguei ler a obra por inteira. Não tinha ideia que aquilo estava lá... Por isso tirei as conclusões de que o senhor tivesse armado tudo... Aquele livro, na verdade, foi comprado numa feira quando ainda tínhamos dinheiro para gastar com coisas assim. Nívad me trouxe como um presente de aniversário. Então, só Deus sabe por onde esse exemplar andou até chegar em nossas mãos. Não dá pra saber quem escreveu aquilo... E além do mais_ Depois de um segundo_ vamos ser honestos, as caligrafias nem chegam a ser tão parecidas assim... Meu pai possuía traços firmes e bem mais legíveis... Aquilo estava um verdadeiro garrancho! Nada a ver com a bela letra dele.
"Quem está pedindo socorro enquanto escreve, não irá se preocupar com caligrafia feia ou bonita, senhorita"
Menezes pensou, mas apenas balançou a cabeça concordando. Afinal, precisava concordar com qualquer coisa se quisesse sair dali um dia.
_ Tente dormir um pouco. Daqui a pouco trago uma camisa limpa e um prato de sopa.
O fato é que não tinha conseguido nada com a menina pedindo desculpas, então tentaria com o irmão outro dia.
Quem sabe, não é mesmo?
Alegna o deixou sozinho novamente, na penumbra e na solidão do barulhento quartinho.
E ele então sentiu o arrependimento amargo de ter se envolvido com os Aurom.
Tentou se soltar enquanto ouvia os ruídos que ultrapassava as paredes, sacudindo os punhos pela centésima vez só naquelas primeiras horas.
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