Capítulo 9
Do diário de Sarah Jones Al-Rashid
20 de março de 1950
Estou grávida.
Há aproximadamente um mês, eu acompanhava Hussein na inauguração de um hospital no interior, quando me senti tonta e quase desmaiei. Fui atendida por um dos médicos, que, quando confirmou que minha menstruação estava atrasada, desconfiou do que poderia estar ocorrendo e recomendou que eu fizesse mais exames. Retornando a Johara, conversei com o médico que atende a família real e fiz os exames que ele prescreveu, tendo recebido o resultado hoje, com Hussein ao meu lado.
- Meus parabéns pelo herdeiro em vista, majestades. – Disse o médico.
- Muito obrigado, o senhor não tem ideia de como essa notícia é gratificante para mim. – Respondeu o meu marido com um sorriso, enquanto apertava sua mão. Eu, por outro lado, estava feliz mas um tanto atordoada.
Quando ele saiu, Hussein me beijou e disse:
- Muito obrigado, meu amor. Você está me dando o melhor presente de todos.
- Eu é que tenho de agradecer, Hussein, estou recebendo o que pedíamos desde nosso casamento. Mas teremos de cuidar dele, sabemos que o início é a parte mais delicada de uma gestação. Principalmente quando é uma que demorou a chegar. – Por mais que eu estivesse feliz, tinha de ser realista.
- Nós cuidaremos, e o médico estará à sua disposição 24 horas por dia. Mas deixarei você descansando, pouparemos você o máximo possível nos próximos meses. – E depois de me conduzir até o nosso quarto, voltou ao seu escritório.
Quando fiquei sozinha, comecei a pensar no quanto esses quase três anos não foram fáceis. Como minha menstruação era um tanto irregular, sabia que isso poderia comprometer minha fertilidade, e cada vez que ela chegava era uma frustração para mim. Além disso, por mais que eu percebesse que nosso povo me ama, pois além da maneira cortês e afetuosa com que me tratam Judy me disse que já ouviu vários habitantes falando no quanto estavam satisfeitos comigo porque eu me importava com eles e fazia o sultão feliz, também sei que há membros do conselho que não gostam de mim, e pelas costas me chamam de "a siliki", expressão que quer dizer "a estrangeira", a cristã que se recusa a usar véu e só vai à mesquita nas ocasiões oficiais.
Embora fosse uma coisa que geralmente evito pensar, sempre tive medo que o conselho obrigasse Hussein a se divorciar de mim ou a se casar com uma segunda esposa, caso eu passasse mais tempo sem engravidar e fosse considerada virtualmente infértil. Houve um dia, inclusive, em que não consegui me segurar e acabei desabafando a respeito com ele, mas sua resposta foi a seguinte:
- Não se preocupe com isso, Sarah, meu irmão está bem de saúde e, se for o caso, ele providenciará um herdeiro para Shankar. Não se angustie, mais do que minha esposa, você é a soberana que eu escolhi para nosso país. – Palavras que me acalmaram um pouco, mesmo que eu saiba que muitas vezes as pessoas são levadas a fazer coisas que nem sempre correspondem ao que querem fazer.
Agora finalmente carrego o herdeiro do sultanato em meu ventre, e farei de tudo para que ele frutifique. Nossas vidas e o país dependem disso.
- Meu filho, quer dizer que, quando as festividades terminarem, você quer passar algum tempo com Lâmia, Hakim e Miguel na casa de campo real? Confesso que não entendo. – Questionou Harum a Omar, alguns dias depois, no seu escritório.
- Não é nada muito complicado, meu pai. Acontece que a atenção da mídia e da comunidade internacional ficou muito focada em mim durante esses últimos meses, e quero descansar de toda essa exposição e as pressões que ela traz. Contudo, como também estou comprometido tanto com ajudar Lâmia a explorar suas potencialidades quanto em revisar a tradução dos diários de minha avó, penso que será uma maneira de unir o útil ao agradável. Com a ajuda de Hakim, poderei exercer minhas atividades com a mesma competência que em Johara e, longe daqui, Miguel poderá se concentrar mais na tradução.
- Mas você conseguirá dar conta de tudo, longe da capital? Além disso, é necessário pensar na honra da senhorita Lâmia, não existe o risco de ela ficar comprometida, convivendo com três homens solteiros?
- Com a Internet e chats de vídeo fica muito mais fácil trabalhar em qualquer canto do mundo, e sempre poderei vir aqui se minha presença for necessária. E no que se refere à Lâmia, embora ela seja uma mulher adulta e formada, e portanto dona de sua própria vida, já pensamos a esse respeito. A criada pessoal dela, que trabalha para sua família desde que ela era pequena, a acompanhará, dormindo num quarto anexo, e garantirá a inviolabilidade de sua reputação. Além disso, o senhor e outros membros do conselho poderão nos visitar quando quiserem. – E acrescentou não sem certa malícia, era fundamental fazer com que o pai pensasse que essa circunstância seria benéfica para seus planos – Porque até o momento estou bastante animado com ela, e exatamente por esse motivo creio que devo estar mais descansado e sem tantas pressões sobre mim para auxiliá-la e instruí-la de forma mais significativa. Creio que o senhor tem razão quando diz que ela será de grande utilidade para o país.
De fato, o argumento pareceu ter sido acolhido pelo sultão, que sentenciou:
- Sendo assim, acho que não haverá problema. A propósito, como está indo a tradução?
- Bastante adiantada, Miguel está se dedicando a ela com todo o empenho. E estou impressionado com a capacidade dele transmitir o estilo de minha avó em turco, ele parece realmente entender a alma dela e do meu avô.
- Isso me satisfaz. – Disse lacônico, e a conversa foi encerrada.
Na mesma noite, Omar foi jantar com Jordão, Cíntia e Miguel, e transmitiu a notícia da temporada que passaria com o jovem e os dois companheiros, além da criada, na casa de campo. Miguel, que já combinara tudo com ele, apenas sorriu, enquanto sua mãe pareceu animada e o diplomata limitou-se a falar algumas coisas com o olhar agudo. Porém, quando terminou o jantar, sussurrou rapidamente para o amigo e o filho, mas num tom que não admitia contestações:
- Quero os dois no meu quarto. Em uma hora.
Quando os dois chegaram lá, ele já os esperava sentado numa das poltronas, com a esposa ao lado, e depois que se acomodaram perguntou-lhes:
- Vou perguntar-lhes, e espero que sejam sinceros comigo: qual a razão dessa temporada repentina num local que não é exatamente próximo de Johara? E principalmente, obrigando o Miguel a permanecer aqui mesmo quando eu e Cíntia estivermos novamente na Inglaterra?
- Papai, foi como Omar disse, é uma forma de tanto eu quanto Omar trabalharmos num ambiente mais calmo, sem as interferências dos funcionários e da imprensa daqui. Além disso, lá ele pode descansar um pouco, depois de todo o empenho dele durante as festividades. – Justificou Miguel.
- Até entendo o motivo dele querer se distanciar um pouco, mas onde você entra nessa história, filho? – Indagou encarando-os.
- Papai, ficando um pouco distante daqui, posso me concentrar mais no meu trabalho, bem como Omar ficará mais disponível para a revisão. O que significa que ele se encerrará mais cedo e demorarei menos para ir para casa. – Respondeu não sem um certo desgosto, pois isso também significava que o seu período ao lado do amante não seria tão longo quanto gostaria.
- Tem certeza que o motivo é só esse?
- Tenho. Haveria outro? – Perguntou o príncipe.
- Os dois não me enganam, por acaso vocês se esqueceram de que, como diplomata, eu tenho experiência em estudar as pessoas, sem contar que os conheço bem? Faz muito tempo que sei que vocês são mais ligados do que querem dar a entender. – Disse Jordão categórico.
- Jordão, fique calmo, tenho certeza de que eles sabem o que fazem. – Pediu Cíntia, com cautela, como se estivesse tentando digerir a insinuação do marido.
- Exatamente, papai, você está imaginando coisas. – Tentou despistar o historiador.
- Não estou não, Miguel. Você realmente pensa que eu não vi o jeito como você olha para o Omar desde a adolescência, e, principalmente, que você nunca se envolveu com ninguém, mesmo sendo um dos melhores alunos de Oxford? Ou o jeito como você, Omar, sempre procura arrumar pretextos para falar com o Miguel ou dar-lhe um presente? E principalmente, o jeito como vocês parecem não se separar um do outro desde que as festividades começaram? Não me tomem por tolo porque eu não sou, se acham que o meu melhor amigo e meu filho mais velho vão aprontar alguma e eu não saberei. A questão é, vocês têm alguma ideia da encrenca em que se meteram? – Perguntou exasperado, não tanto por raiva mas por preocupação diante do que aquilo poderia representar para duas pessoas a quem estimava muito.
- Não culpe o Omar, papai. Eu já sou adulto e não fiz nada sem ser por iniciativa própria. Quer saber a verdade? Sim, eu o amo, eu o amo desde que era um menino, como um amigo mais velho, e já há alguns anos que eu o amo como um homem. E sei que ele também me ama, esperamos que você nos entenda. Foi mais forte do que nós, não faríamos nada para magoar você. – Disse o jovem, não sem alguma irritação porque seu pai aparentemente não o entendia. Ao lado do marido, Cíntia parecia tão chocada que nem conseguia falar.
- Como eu nunca percebi? E estava na minha cara! – Disse a mãe do rapaz.
- Calma, Cíntia. Sim, Jordão, eu amo Miguel, embora tenha lutado contra isso o quanto pude. Porém, quando ele esteve aqui, na minha terra, é como se esse amor tivesse se tornado mais forte. Por favor me perdoe, meu amigo, mas uma parte do meu coração é dele, e sempre será. – Disse o príncipe com voz solene.
O diplomata ficou em silêncio durante alguns minutos, mas assumiu uma atitude mais conciliatória e dirigiu-se ao filho:
- Filho, não sou insensível. Eu já tive sua idade, e sei o quanto os sentimentos são fortes nesse momento das primeiras descobertas. E sei o quanto o amor é importante, sua mãe sacrificou-se muito para me ajudar na carreira e eu não seria metade do que sou sem o apoio dela. – E disse isso com um olhar extremamente carinhoso para a esposa. – Tampouco estou zangado com você, Omar, ainda que um tanto aborrecido por você ter se envolvido nessa história tão complicada. Contudo, conheço você e o homem honrado quem sempre foi, e sei que você nunca faria nada deliberado para nos prejudicar. Mas preciso perguntar uma coisa: vocês sabem o que farão quando o trabalho do Miguel aqui terminar?
- Não, não sabemos. – Respondeu Omar com sinceridade.
- Viu? Esse é o problema. Meu filho, não duvido da sinceridade do sentimento de vocês, mas infelizmente essa história não tem futuro. Este país nunca aceitaria ser governado por um casal de homossexuais, e infelizmente Omar ainda tem de dar um herdeiro para o sultanato. E conhecendo você como conheço, sei que nunca aceitaria ser o amante. – Respondeu Jordão com certa piedade, faria tudo o que pudesse para eles serem felizes mas não poderia poupá-los nem a si mesmo da dura realidade de que Omar era o príncipe herdeiro de um sultanato que, embora laico, ainda era majoritariamente muçulmano.
- Não, não aceitarei, papai. Mas eu quero viver essa história enquanto ela durar, e espero que vocês entendam isso. – Disse o jovem com ar decidido.
- Eu aceitarei, Miguel. Você sempre foi ajuizado e independente, nunca tive dúvidas de que você conseguiria ser dono de sua própria vida. E estarei lá para você, quando você precisar de mim, não duvide. – Nesse ponto, levantou-se e abraçou-o, segurando-o até o jovem suspirar. Depois, dirigiu-se ao príncipe. – E você, cuide bem dele na minha ausência. Você pode ser o meu amigo e o príncipe desta terra, mas se algum fio de cabelo dele estiver fora do lugar, garanto-lhe que eu acabo com você.
- Pode ter certeza que cuidarei, ele é o que tenho de mais precioso. – E depois de tranquilizá-los, os amantes deixaram o quarto.
- Eles enfrentarão uma batalha dura, meu amor, e pior, ambos vão terminar machucados no fim. Será que agimos certo? – Perguntou Cíntia.
- O que eles sentem é muito forte, querida. Além disso, os dois são adultos, capazes e não estão fazendo nada errado. Como eu posso impedi-los? Sem contar que o Miguel nunca me perdoaria se eu o mandasse terminar com ele. – Disse o diplomata.
- Nesse caso, o que podemos fazer?
- Rezar para que Deus os proteja, confiar que Omar vai garantir a segurança do Miguel e ficarmos sempre de braços abertos para ele, como bons pais que somos. Mas vamos dormir agora. – Disse, e abraçou a esposa.
Terminadas as festividades, foi oferecido mais um jantar em homenagem aos líderes mundiais que visitaram Shankar, e no dia seguinte eles começaram a viajar para seus países de origem. Jordão e Cíntia foram os últimos a embarcarem, depois de darem mil recomendações a Miguel, Omar e Hakim.
No dia seguinte, munidos de toda a bagagem que julgaram necessária, os quatro se encaminharam para a casa de campo em dois carros, com Omar e Miguel num deles, conduzido pelo príncipe, e Lâmia e Hakim no outro, conduzido por ele. Na tentativa de conhecer melhor o colega, a turismóloga resolveu começar uma conversa.
- Sabe Hakim, achei muito tocante sua aceitação do relacionamento entre o Omar e Miguel. Sei que nem todos por aqui fariam isso.
- Não é nada de mais, senhorita Lâmia, eu e o Omar nos conhecemos desde crianças. Na verdade, sou um pouco mais velho que ele, de alguma forma sempre cuidei dele desde essa época, embora ele não fosse do tipo que dava trabalho. Acabei criando um laço muito forte com ele, tanto que só estudei na Inglaterra porque ele mesmo fez questão de que eu o acompanhasse. Como eu negaria ajuda a alguém tão importante na minha vida, que provou sua lealdade em mais de uma ocasião?
- Sem dúvida, mas a maioria dos shankarenses desaprova relacionamentos homossexuais. Você nunca cogitou estar sendo cúmplice de uma prática ofensiva?
- Não, senhorita. Meu pai, que era um homem muito bom e sábio, era um oficial de alta-patente do Exército e, quando contei certa vez que alguns dos meus colegas bateram num garoto que era delicado demais, perguntou porque eu não o ajudara e, diante da minha resposta de que eu não queria me meter, disse que estava muito decepcionado e me repreendeu, dizendo que nenhum homem de verdade precisa ser violento com os mais fracos para se sobressair. Eu reclamei que era só um invertido, e ele me perguntou se, em primeiro lugar, eu tinha condições de me virar no mundo. Respondi que não, e ele me disse que era exatamente o caso daquele menino, ele era muito novo pra escolher ser alguma coisa, ele simplesmente era. E que ele não podia sofrer por ser o que ele era, esperava que eu fosse mais compreensivo de agora em diante. O fato é que aquilo me marcou, e desde então tenho procurado ajudar aqueles que estão numa situação mais difícil que a minha. Inclusive aquele menino, que acabou se tornando meu cunhado.
- Você é casado? – Estranhou um pouco isso, pois ele nunca o vira conversando com uma mulher ou mesmo usando uma aliança. Mas não deveria surpreendê-la, afinal ele era um pouco mais velho mas estava no auge da forma física. Na verdade, ele era atraente de uma forma não-convencional, com a alta estatura, as feições ligeiramente rudes mas harmoniosas, um corpo robusto e bem-definido que as roupas comuns mas impecáveis que usava naquele momento deixavam transparecer e uma atitude simples, honesta e corajosa diante da vida. Tudo nele traduzia força e integridade, e de repente ela se pegou pensando que a esposa dele era uma mulher de sorte.
- Fui casado há alguns anos, com uma jovem bela e amorosa. Contudo, antes que tivéssemos filhos ela teve uma leucemia e faleceu nos meus braços. – Disse sem esconder a tristeza.
- Sinto muito se toquei num tema delicado para você. – Respondeu a jovem, passando a juntar mais algumas camadas no retrato que fazia mentalmente daquele homem notável.
- Não se preocupe, senhorita, não havia como você saber disso. – Respondeu sorrindo pela primeira vez. – Sim, foi sofrido, e ainda sinto muita falta dela, mas estou aprendendo a superar. Ainda tenho muito o que viver e pretendo aproveitar isso.
- O que muito me agrada, você ainda é bastante jovem para renunciar à vida. E espero que não veja problema em trabalhar com uma mulher, pois deverei ter com você o mesmo grau de contato que terei com Omar.
- Não sei se ainda posso ser chamado de jovem, mas a senhorita está certa. Quanto a trabalhar com uma mulher, não me oponho, convivi com grandes mulheres ao longo da minha vida: minha avó Judy, a falecida avó do Omar, a mãe dele e minha própria mãe. Todas mulheres batalhadoras e sábias que contribuíram muito para eu ser o homem que me tornei. – Contudo, nenhuma delas tão bonita quanto a sua interlocutora. O sultão soube escolher bem, com certeza se Omar fosse heterossexual acabaria se deixando encantar e se casaria com ela, quem resistiria a um pacote que incluía beleza, inteligência, capacidade administrativa e um espírito compassivo. Mas melhor não ir muito por esse caminho, pensou. Ela não era para ele, além de ser filha do primeiro-ministro era um tanto jovem.
- Compreendo, Hakim, e o parabenizo por isso. Creio que nos daremos muito bem. – Disse Lâmia com um sorriso.
- Penso o mesmo, senhorita. – Sorriu sem conseguir evitar, e voltou sua atenção para a estrada.
Muitos acontecimentos e revelações ao mesmo tempo, espero que tenham gostado do capítulo. Espero que comentem.
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