Capítulo 3

Hussein Al-Rashid, pai de Harum e avô de Omar

Sarah Jones Al-Rashid, mãe de Harum e avó de Omar.

Do diário de Sarah Jones

17 de maio de 1942

Os esforços de guerra tornam a vida aqui em Londres muito mais difícil, mas estamos tentando viver como podemos. Hoje à noite, por exemplo, papai levou a mim e ao meu irmão a uma recepção na residência do ministro da produção de guerra, ele disse que precisamos relaxar um pouco. Esses treinamentos de blecaute e ameaças de bombardeio são desgastantes, mas felizmente o dia foi normal e pude me sentir segura quando chegamos ao local da festa.

Papai entrou de braços dados comigo, enquanto John seguiu um pouco atrás. Fomos apresentadas aos convidados, a maioria deles nobres ou integrantes do governo que eu já conhecia, e confesso que não parecia nada diferente de outras recepções em que estive, até que o anfitrião, senhor Lyttelton, surgiu ao lado de um homem que fui incapaz de parar de olhar.

A primeira coisa que percebi foi que, embora ele vestisse um smoking como todos, seguramente não era inglês, seja pelo seu tom de pele um pouco mais moreno, seja por algumas características de seu rosto. Mas, também era muito atraente. Ele era alto, forte e suas feições eram viris de uma maneira estranhamente harmoniosa, seu cabelo um tanto ondulado estava cortado curto e ele usava um bigode que destacava seu rosto. Fiquei imaginando quem ele seria, até ser anunciado em voz alta como Hussein Al-Rashid, o sultão de Shankar.

Mal me recuperei da surpresa de ver um soberano estrangeiro aqui, anunciaram que a cantora Vera Lynn faria uma apresentação como um incentivo pelos esforços do ministério para acabar com o nazismo. Assim, fomos para um pequeno palco num dos salões, onde ficamos de pé enquanto ela começou a cantar "I'll be seeing you", uma das minhas canções favoritas.

Logo comecei a ficar enlevada, não sei se por causa da música ou por um perfume marcante de homem que logo chegou ao meu nariz, e percebi que o senhor Hussein também assistia a apresentação, perto o suficiente de mim mas, aparentemente, sem me notar. Aproveitei-me disso para estudá-lo com atenção, e logo percebi uma irregularidade no seu casaco.

- Vossa alteza, o casaco está com um botão caindo. - Cochichei para ele sem saber onde encontrei coragem para abordá-lo, não é meu estilo falar com desconhecidos, nem creio que papai e John gostariam de saber que fiz isso.

- O que disse, senhorita? - Perguntou ele em voz baixa com um inglês perfeito, embora com sotaque.

- Um dos botões de seu casaco está prestes a cair, majestade. Desculpe-me se sou impertinente, mas não pude deixar de perceber.

- Obrigado por me avisar, senhorita, mas infelizmente terei de deixá-lo assim. Dentro em pouco vou expor meu projeto de ajuda ao governo inglês, e não creio que haja uma costureira aqui. - Ele tentou parecer resignado, mas não conseguia disfarçar sua contrariedade por sua roupa não estar tão impecável quanto gostaria.

- Bem, e se eu o costurasse para o senhor? - Não sei o que houve comigo, parece que hoje era o meu dia de falar coisas sem pensar.

- A senhorita pode fazer isso? - indagou com alguma surpresa. - Sei que não nos conhecemos e alguns desaprovariam que eu conversasse com a senhorita, mas não estou em posição de recusar uma ajuda, sei o quanto minha aparência aqui pode pesar na atenção ao que falo.

- Posso sim, sempre carrego linha e agulha em minha bolsa. Falarei com um dos criados e pedirei para ele selecionar uma sala onde possamos ficar a sós. - Em seguida, procurei uma jovem que já conhecera de reuniões anteriores lá, e depois que ela me conduziu a uma sala saiu para buscá-lo, voltando com ele e, depois da porta ser fechada, ficou de guarda do lado de dentro. Assim, ela garantiria que minha reputação não foi comprometida.

Para garantir que eu faria o conserto corretamente, o sultão se viu obrigado a despir a casaca, ficando apenas com a camisa e gravata. Vendo-o assim, ficou evidente que o seu físico realmente era privilegiado, não um truque de alfaiate como percebi em outros participantes desses eventos. Seu peito era firme e destacado, com braços musculosos, uma barriga sem gordura e ombros largos. Durante alguns minutos, parecia que eu não conseguia fazer outra coisa senão olhá-lo, até que ele me contemplou como que esperando pelo meu próximo passo, e, recobrando o senso, peguei o casaco, tirei a agulha da bolsa e comecei o trabalho, aproveitando para reforçar os outros botões.

Quando terminei, devolvi-lhe o traje e ele apertou minha mão com certo entusiasmo.

- Muito grato, senhorita, creio que me salvou de uma dificuldade.

- Não há o que agradecer, majestade, mas me permita uma observação, o senhor fala inglês fluentemente.

- Na verdade, senhorita... perdoe-me, mas não sei o seu nome.

- Sarah, majestade. - Respondi.

- Na verdade, senhorita Sarah, eu fiz quase todos os meus estudos aqui na Inglaterra. Em retribuição ao apoio que seu país nos deu na guerra de independência da Turquia, meu pai me enviou para estudar aqui, com o apoio de pessoas de sua confiança, quando eu tinha 10 anos. Vamos dizer que meus mestres souberam como me fazer dominar o inglês com perícia, embora eu seja grato a eles por isso, tanto que concluí meus estudos em Ciências políticas e sociais em Oxford. - Embora sem arrogância, ele falava como que para assegurar que não era qualquer pessoa, e me perguntei se eu ferira seus brios.

- Peço-lhe que me perdoe, majestade, não quis ofendê-lo. - Tentei me justificar.

- Não se preocupe, senhorita, sei que aqui a ideia de que nós do Oriente somos bárbaros é muito forte, convivo com ela desde jovem. No entanto, nosso povo sabe valorizar a bondade, e a senhorita foi muito bondosa comigo ao se dispor a consertar minha roupa sem pedir nada em troca. Se não estiver sendo inconveniente, gostaria de lhe perguntar quem é e o que faz no momento. - Pediu com um sorriso que o tornou ainda mais bonito.

Começamos a conversar e expliquei-lhe que sou filha de um marquês viúvo, amigo do primeiro-ministro desde a infância, e que tenho um irmão mais velho que herdará o título. Disse ainda que gosto muito de literatura e quero ser professora, mas que minha intenção é me dedicar a pessoas com dificuldades, como cegos e amputados, depois que vi os efeitos dos bombardeios aqui. Ele, por sua vez, me disse que estava lá porque acabaram de descobrir cobre no seu país e sabia que, nesses tempos de guerra, esse minério seria vital para nossas fábricas, e queria fornecê-lo, desde que chegasse a um acordo benéfico para Shankar, pois mesmo que fossem um país pequeno isso não queria dizer que deveria aceitar com gratidão qualquer oferta que lhe dessem. Seu pai morrera havia pouco tempo e, na qualidade de novo sultão, tinha o dever de zelar pelos interesses de seu povo.

Fiquei impressionada com a história dele e acabei prometendo expor seu caso ao papai para que reforçasse sua campanha. Nesse momento, ele me perguntou:

- Senhorita Sarah, poderia me dar seu endereço? Gostaria de escrever-lhe quando retornar a meu país.

Peguei um papel na minha bolsa, escrevi com um lápis de sobrancelha e entreguei-lhe. Quando voltamos, o concerto já terminara e meu pai queria saber onde fui, e contei-lhe a história, fazendo questão de dizer que a criada esteve conosco todo o tempo. Ele se comprometeu a ter uma conversa em particular com o sultão, e depois de nos servirmos voltamos para casa.

Miguel dedicou dois dias inteiros a ler o diário, e depois traduziu dez páginas dele para apresentá-las a Omar no escritório dele. O amigo leu-as com calma e depois disse:

- Parabéns, Miguel. Tem uma ou outra palavra que precisa ser substituída, mas na maior parte ela transmitiu exatamente a natureza da minha avó. Fui muito próximo a ela nos últimos anos de sua vida, e às vezes quase sinto como se voltasse a ouvi-la enquanto leio. Isso só mostra que minha intuição estava certa em apoiar sua ideia.

- Omar, eu é que agradeço. De alguma forma é como se eu tivesse nascido para realizar esse trabalho, como sua avó era fantástica. Se nos dias de hoje é difícil alguém desafiar duas culturas fortes para viver uma história de amor, naquela época com certeza era pior. Fico pensando o que não passou pela cabeça deles quando ela tomou a iniciativa de costurar o botão do casaco de seu avô, ela parecia ser uma pessoa que ia atrás do que queria.

- De fato ela era assim, ela me contou que sua mãe morreu quando ainda era muito nova, mas sempre defendeu que as mulheres pudessem fazer tudo aquilo que queriam, podia ser que falhassem mas também podia ser que tivessem êxito e fizessem a diferença. Felizmente para ela, meu bisavô pensava de forma parecida e não se opôs a que ela estudasse. Ele sempre respeitou o que ela pensava do mesmo jeito que respeitava seu irmão, e isso foi fundamental para que ele convencesse o primeiro-ministro a apoiar meu avô e importar nossa produção de cobre em termos vantajosos para nós.

- E no fim todos saíram beneficiados, inclusive seus avós, que se conheceram por causa disso. - Refletiu o jovem sem se desviar da história de amor dos dois, que o comovera mais que qualquer outra. - E então, animado para a festa que ocorrerá mais tarde?

- Uma recepção para representantes diplomáticos do mundo todo e as famílias mais importantes de Shankar, que terá comida típica e música, mas sem bebidas e sem danças para não ofender as sensibilidades dos membros mais conservadores? Não sei bem se esse é o tipo de festa que eu prefiro. O pior é que vou ter de cumprimentar algumas das jovens casadouras daqui, não tenho dúvidas de que meu pai inventou isso só para me arrumar uma noiva. - O príncipe tentava manter sua expressão neutra, mas era óbvio que aquilo o desagradava. Embora a notícia provocasse um aperto em seu coração, o fato de que ele não estava feliz com aquilo (por motivos que ele sabia bem) não deixou de lhe dar algum alívio.

- Bem, uma festa é uma festa, como dizem em meu país, se tiver um limão faça uma limonada. - Tentou consolá-lo. - Até mais tarde. - Preferiu encerrar a conversa antes que falasse alguma besteira.

- Até mais tarde, e continue se empenhando na tradução. - Respondeu Omar com uma expressão misteriosa enquanto o via sair do escritório e fechar a porta.

Miguel deu algumas voltas pelo palácio, e depois retornou ao seu quarto para continuar a tradução, até chegar a hora da solenidade. Novamente, vestiu seu smoking e encontrou-se com seus pais no salão de festas, agora repleto de pessoas e animado por um conjunto tocando música folclórica. Estudou o ambiente de forma discreta e percebeu que, de fato, havia no local pessoas das mais diversas nacionalidades, e não deixou de sentir-se feliz por sua família ter sido distinguida com um convite para as festividades. Mas essa reflexão foi interrompida pouco depois, quando o sultão e Omar, ambos vestidos com roupas tradicionais, incluindo-se turbantes de cores douradas adornados com safiras, entraram no recinto, e o rapaz refletiu mais uma vez o quanto aquelas vestes tradicionais pareciam ressaltar a beleza e a virilidade de seu amor secreto.

Os dois começaram a circular pelo salão, cumprimentando as autoridades presentes, e Omar deteve-se por algum tempo para saudá-los e certificar-se de que estava tudo bem. Contudo, logo seu pai o chamou, e, para seu desagrado, Miguel percebeu que ele fora para outra parte do salão, onde pareciam estar concentradas mesas com diversas famílias típicas de Shankar, pelo que suas vestes indicavam, todas com algo em comum: a presença de jovens vestindo roupas em tons claros, algo que, pela tradição do país, indicava que eram virgens. Percebia-se o entusiasmo com que o velho Harum apresentava cada uma daquelas moças ao filho, dando a entender que ele conhecia essas famílias e certamente avaliava a viabilidade de cada uma delas como nora. Também havia umas poucas estrangeiras, mas sempre usando vestes que indicavam sua condição de jovens muçulmanas devotas.

Por mais que certos fatos sejam óbvios, eles nunca se revelam com tanta força como quando são apresentados aos olhos e ouvidos de alguém, e foi naquele momento que percebeu que estava a um triz de perder a coisa que mais queria, sem sequer ter tido a chance de desfrutar dela. Incapaz de continuar vendo aquele teatro que parecia privilegiar as convenções e a intolerância em detrimento dos verdadeiros sentimentos, disse ao pai que não se sentia bem, e pediu licença para sair um pouco.

Atravessou o salão tentando não ser notado, até chegar a um terraço não muito distante. Lá, contemplou o céu estrelado, que o fazia pensar nas várias histórias que lera sobre o Oriente Médio, e suspirou profundamente, pensando como uma cultura que sempre achara fascinante e lhe dera o homem mais marcante de sua vida também poderia proporcionar sofrimentos tanto para si quanto para ele. Seria ela tão necessária a ponto de exigir tantos sacrifícios pessoais para mantê-la, será que a felicidade individual não contava?

Estava tão absorto em seus pensamentos que nem percebeu que tinha companhia.

- Fiquei preocupado quando você saiu daquele jeito, Miguel. Alguma coisa lhe aborreceu? - A voz do príncipe surgiu ao seu lado, despertando-o do torpor como uma espécie de choque.

- Não se preocupe, Omar, só estava com um pouco de calor e vim tomar um pouco de ar. Fique tranquilo que daqui a pouco volto ao salão, já devem estar lhe procurando. - Disfarçou.

- Na verdade, vim aqui pelo mesmo motivo que você, lá está cheio de gente e precisava de um descanso depois de ter cumprido com minhas obrigações de anfitrião. Juro que se eu tiver que beijar a mão de mais alguma jovem e ouvir discursos sobre as prendas domésticas e conexões delas, sou capaz de fazer uma careta! - E de fato, a expressão dele transmitia notória relutância.

- Mas isso não é o usual daqui, garantir que as filhas façam bons casamentos? E você sabe que um dia precisará ter herdeiros. - Não sabia porque estava bancando o advogado do diabo, quando tudo o que não queria era vê-lo definitivamente separado de si por causa de alguma mulher, talvez estivesse sondando-o para tentar entender o que realmente pensava.

- Sim, eu sei, e tenho tentado aceitar isso. Meu pai vive repetindo que passei da idade, ele mesmo era mais jovem do que eu quando se casou com minha mãe. Mas o casamento deles esteve longe de ser o ideal, ele passava mais tempo administrando o reino do que com ela, e mesmo não demonstrando sei que ela era infeliz com isso. Por muitas vezes eu a vi desabafando com minha avó, reclamando que sabia dos deveres dela como esposa mas não conseguia aceitar que o marido a via mais como uma parceira de governo do que como uma mulher. - Em todos aqueles anos, aquela era a primeira vez que via o amigo falando com tanta ênfase sobre seu passado e seus sentimentos.

- Lamento por isso, Omar, na nossa cultura somos livres para casar com quem queremos. Ou ao menos podemos desejar com quem queremos casar. Parece que ser príncipe tem o seu lado bom e o seu lado mau.

- De fato, temos regalias mas também temos deveres e responsabilidades. De qualquer forma, não fique me olhando com essa expressão compassiva, enquanto durarem as festividades o foco de meu pai estará nelas e creio que ele não me pressionará tanto. A propósito, amanhã os convidados serão levados a nossa principal casa de banho turco, e quero que você vá conosco. - Infelizmente era seu destino e teria de se conformar com ele, mas desfrutaria da presença do jovem enquanto desse, ele cativara seu coração desde o primeiro dia e faria de tudo para que sua presença em sua terra natal fosse inesquecível.

- Não sei se ficarei à vontade diante de tantas autoridades, ainda mais num ambiente onde nunca entrei, mas, se você faz tanto gosto, aceito o convite. - Respondeu o rapaz com um sorriso, animado com a atenção e a possibilidade de partilhar um momento íntimo com ele.

- Fico feliz com isso. Agora, vamos voltar para o salão antes que comecem a nos procurar. - E, colocando uma mão em seu ombro, retirou-o dali. Voltaram para a festa separados e, alheios a um ou outro olhar que indagava por que saíram e para onde foram, desfrutaram do resto da noite com tranquilidade.

A partir de agora, os capítulos serão intercalados com trechos do diário da avó de Omar, essenciais para entenderem a história, e acho que a química entre Sarah e Hussein ficou palpável nesse trecho. Espero que gostem, bem como que continuem acompanhando.

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