Capítulo 2
Jordão, pai de Miguel
Cíntia, mãe de Miguel
Harum, pai de Omar.
Depois de uma boa noite de sono, Miguel foi acordado por um telefonema da equipe do palácio, dizendo que o café da manhã seria servido num dos salões do palácio para sua família. Assim, arrumou-se e foi se encontrar com os pais na sala indicada, onde os esperava uma senhora morena de olhos cativantes e ar simpático, que se identificou em inglês como Salua, a governanta do Palácio, que conforme Omar contara era a mãe de Hakim.
- O Omar não vai comer conosco, Salua? – perguntou mal contendo uma esperança.
- Miguel, não seja impertinente, a vida do Omar não se resume a nós. – Advertiu-o Cíntia.
- Não se constranjam, sei que ele não fez por mal. – respondeu a governanta com um sorriso. – Infelizmente não, jovem, ele tinha alguns compromissos, fora que, quando está no palácio, ele costuma fazer as refeições com o sultão. É uma forma dos dois discutirem os assuntos do país. Mas estamos organizando tudo para que o encontro entre vocês e o sultão ocorra da melhor maneira possível.
Resignado, Miguel serviu-se de pão, queijo de cabra, café e algumas frutas, e, após ser informado por Salua que uma excursão a itens selecionados do tesouro nacional, dentro do palácio, ocorreria no meio da manhã, específica para eles e outros hóspedes, organizou-se e, na hora marcada, encontrava-se na entrada dos salões onde ela estava instalada. Ele e os demais participantes foram recebidos por ninguém menos que o reitor da Academia de Belas Artes de Shankar, que abriu os portões e iniciou com uma explanação geral sobre os itens incluídos na coleção e do apoio que a família Al-Rashid sempre dera às artes no Sultanato, até mesmo protegendo os resquícios da arte cristã, como o antiquíssimo ícone da Virgem da Ternura, cujo original se encontrava ali e só era liberado pelo governo, num acordo com o chefe dos católicos do país, nos dias de festa. A coleção também contava com estátuas da era romana, diversas joias, espadas e armaduras, mas uma das coisas que mais chamou sua atenção foi uma pintura posicionada no meio da sala, onde um jovem alto, bonito e moreno, vestido com roupas tradicionais árabes, segurava junto de si uma linda moça loura de olhos verdes e sorriso radiante, com um vestido azul de gala num estilo semelhante ao dos anos 40, que pousava a cabeça em seu peito com toda a segurança, enquanto segurava um bebê em seus braços, bebê esse que concentrava os olhares dos dois. Longe da solenidade de um retrato posado, parecia que o pintor os surpreendera num momento de afeto, o que só tornava aquele momento mais tocante.
Aproximando-se do quadro para observá-lo com mais atenção, o jovem viu as seguintes informações numa legenda abaixo:
"Retrato de suas majestades Sultão Hussein Al-Rashid, soberano de Shankar, e sua esposa Sarah Jones Al-Rashid com o príncipe herdeiro Harum, 1951."
Os avós de Omar, pensou, lembrando-se de que o amigo já fizera alguns comentários sobre eles. O pouco que sabia é que os dois se conheceram em circunstâncias adversas, se apaixonaram e viveram uma bela história de amor, que teve um fim trágico, durante alguns anos. Pelo visto o sentimento deles era muito forte, se contagiava até aquela tela, e fez uma anotação mental para pesquisar mais sobre eles. Percorreu com interesse apenas médio os demais itens da coleção, e depois voltou para seu quarto, onde pediu uma refeição simples para o almoço, consultou seus e-mails e preparou-se para o grande encontro com o sultão.
No horário marcado, estava vestido a rigor, com smoking e gravata borboleta branca, e encontrou-se com seus pais na sala de jantar, reparando que Jordão usava uma roupa idêntica à sua e Cíntia um vestido de gala prateado com cauda e mangas longas. Elogiou a elegância dos dois e ficaram esperando os anfitriões, que não tardaram a chegar, conduzidos por Hakim. Ambos vestiam uniformes da guarda nacional do país, forrados de medalhas, e Miguel estudou o sultão, que já vira em fotos e vídeos, por alguns instantes, não tendo certeza se ficara satisfeito com o que via. Embora a semelhança dele com o jovem do retrato fosse muito grande, quase não reconhecia nele a beleza do pai, nem tanto pela idade avançada, mas porque em sua fisionomia e seu porte rígido transpareciam reserva, frieza e autoritarismo. Aquele não era um homem fácil de conviver, e um calafrio percorreu sua espinha enquanto rezava para que Omar não tenha sofrido muito nas mãos dele quando mais novo. De qualquer forma, decidiu não demonstrar seu desconforto e, assim como os pais, inclinou-se diante do velho Harum.
- Majestade, agradecemos-lhe termos sido dignos do seu convite. – disse Jordão.
- Que Alá esteja com vocês, senhor Jordão, assim como com a senhora Cíntia e o jovem Miguel. – disse em um inglês com ligeiro sotaque apertando a mão de um a um. No caso do rapaz, ele pareceu se deter por mais tempo, mas este retribuiu a firmeza, além de sustentar o olhar, deixando claro que, mesmo que o outro fosse o soberano daquele sultanato, não era um mocinho receoso. – Meu filho fala bastante a seu respeito, e sou-lhes grato pelo apoio que dão a ele na Inglaterra.
- Fico feliz com isso, majestade, mas não o faço por interesse, desde que nos conhecemos Omar se converteu num amigo muito importante, praticamente uma pessoa da família, como dizemos em meu país. Esteja seguro que sempre farei tudo ao meu alcance por ele.
- E isso me alegra. Sendo assim, vamos ao jantar, está tudo preparado para vocês.
Com efeito, a mesa em que se sentaram apresentava diversas iguarias, como carneiro assado com ervas, verduras ao vapor, ceviche em estilo mediterrâneo, tâmaras secas e um suco de romã, que eram servidos pelos criados conforme as solicitações. Ao mesmo tempo, num pequeno palco situado defronte à sala, uma cantora e um tocador de cítara deram um concerto de músicas folclóricas shankarenses, sendo que algumas delas dançarinas em trajes orientais executaram um delicado número de dança.
Desfrutando de tudo, Miguel manteve a educação mas comeu uma porção significativa de cada prato, pois tinha consciência de que na cultura de seus anfitriões era uma ofensa comer pouco. Ainda bem que já me certifiquei de que há uma academia aqui no palácio, observou para si, pois pelo visto vou precisar de muita malhação para não ganhar quilos extras. De qualquer forma, como uma das coisas que fazia questão de provar quando viajava era a comida local, deu de ombros.
- Gostaram da visita guiada ao tesouro nacional? – perguntou Omar.
- Sim, o acervo é realmente lindo. – respondeu Miguel. E nesse ponto, lembrando-se do retrato, venceu seus receios e perguntou ao sultão. – Um item em especial me chamou a atenção, um retrato feito a óleo. São os seus pais, não é mesmo, majestade?
- Sim, aquele retrato foi pintado como um presente dele para ela, depois que nasci. Eu o incluí na exposição por um pedido de Omar. – respondeu de forma impassível.
- Omar me falou a história deles por alto. Eles formavam um casal muito bonito, espero que os historiadores daqui tenham dado a eles a atenção merecida. – respondeu o jovem.
- Isso ainda não ocorreu. Nos últimos anos, eles têm dado ênfase ao resgate do passado histórico do país, temos de provar ao mundo que somos mais do que um território separado da Turquia, nós temos nossa própria identidade. – disse o soberano.
- Sim, majestade, mas as histórias de amor fazem parte dessa identidade, que o digam Chariar e Sherazade, ou Laila e Majnun – afirmou Miguel relembrando histórias clássicas da literatura árabe. – Um encontro entre Ocidente e Oriente que possibilitou o seu nascimento, não se esqueça que o senhor é a terceira pessoa naquele retrato. Seria uma excelente oportunidade até mesmo para estudarmos a vida do seu país e do país dela naquela época em relação a hoje, desde que tenhamos os documentos certos para pesquisar a história deles.
Como se a conversa o interessasse, Omar resolveu intervir:
- Na verdade, até temos os documentos certos, Miguel. Quando minha avó morreu, além daquele quadro, ela doou todos os seus objetos de valor ao tesouro nacional, e entre eles estavam as joias que ganhou do meu avô e os diários que escreveu ao longo da vida. Uma parte deles corresponde ao período em que os dois conviveram, e creio que poderiam ser o ponto de partida para contarmos essa história. Há tempos que procuro um historiador para me ajudar, mas, como ela os escreveu em inglês, isso reduz consideravelmente a quantidade de profissionais que poderiam fazer isso, já que além de tudo teriam de ser traduzidos para o turco.
- E se esse profissional estiver aqui na sua frente? - por ser uma pessoa de natureza entusiasmada, não poucas vezes Miguel falava antes de pensar nas consequências, mas ele não queria exatamente descobrir uma maneira de conhecer aquela história com alguma profundidade? Bem, a oportunidade acabara de surgir, e não a desperdiçaria. Sem contar que seria um ótimo começo para sua carreira.
- Você, meu jovem? Mas essa não é uma tarefa tão simples, como meu filho frisou os diários dela necessitam ser traduzidos para serem acessíveis aos historiadores daqui. – disse o sultão com descrença, e as expressões dos demais ocupantes da mesa não divergiam muito das dele.
- Eu entendo, majestade, mas acontece que, além de ser formado em História e Literatura inglesa, domino o idioma turco com fluência. Ou você acha que as obras com que você me presenteava eram só para enfeite? – perguntou a Omar, que o contemplava com interesse. – Elas sempre aguçaram minha curiosidade, e quando comecei em Oxford encontrei um estudante turco que ensinava o idioma em troca de ajuda com a redação de seus trabalhos em inglês, e aprendi o idioma com ele, além de ter feito um exame de proficiência na embaixada desse país. Eu sou a pessoa certa para isso, e contribuir com a história de vocês seria algo gratificante para mim.
- Fico feliz com seu entusiasmo, jovem, mas o turco falado na Turquia tem diversas variantes do falado aqui, será que não correria o risco de você cometer erros na tradução? – continuou Harum com ar desconfiado.
- Não creio, majestade, pois estou bem habituado à literatura de vocês graças aos livros com que seu filho me presenteou. Mas reconheço a relevância do seu questionamento, eu poderia submeter meu trabalho a um revisor nascido em Shankar. – reconhecia que esse era um ponto a ser considerado, mas não perderia uma chance como aquela.
- Sim, e quem seria esse revisor?
- Bem, poderia ser eu. – a voz de Omar ressou no local, surpreendendo a todos.
- Mas filho, isso não comprometeria seu trabalho nas festividades?
- Creio que não, meu pai, nessa etapa tudo está planejado e é só executar. E é um projeto que me interessa, meus avós merecem que a história deles seja conhecida pelo mundo. Miguel, – nesse ponto dirigiu-se ao rapaz – conheço você desde criança, sei de seu amor pela cultura, sua lealdade ao que acredita e seu amor às pessoas que importam em sua vida, com certeza minha avó teria gostado de você e o consideraria a pessoa certa para entendê-la. Infelizmente, devido à importância que eles têm, não posso emprestar a você os diários originais, mas falarei com o guardião do tesouro e ele fará cópias xerox dos diários correspondentes à história deles para você, que fará a tradução a partir deles. Depois que você concluir cada etapa, me enviará os textos e, depois de lê-los, mostrarei a você quais os pontos que precisarão ser corrigidos. Fica bem assim?
- Por mim está ótimo, Omar, espero que sua majestade concorde. – respondeu.
- Não me oponho, desde que seus compromissos durante as festividades sejam cumpridos. – respondeu o sultão.
- Serão cumpridos. – disse o príncipe, encerrando o assunto.
Horas depois, Jordão perguntou ao filho se ele tinha consciência do que se propusera, pois traduzir um documento que contava uma grande história era uma responsabilidade de peso, principalmente quando estava começando sua vida profissional. Contudo, o jovem respondeu que os desafios ajudavam as pessoas a crescer, e o fato de que seria ajudado por Omar reforçava sua confiança. Sendo assim, o pai desejou-lhe boa sorte e disse que qualquer coisa contasse com ele.
Durante dois dias não voltaram a comentar o assunto, e desfrutaram dos primeiros dias da programação, que incluíam concertos públicos e desfiles, um deles do Exército, comandado por Omar vestindo uma farda de gala. Até que, voltando ao seu quarto, encontrou um embrulho com três volumosas cópias xerox encadernadas e um bilhete com a inconfundível letra de Omar, onde aparecia simplesmente:
İyi şanslar – Boa sorte.
A história vai avançando, junto com as expectativas de Miguel. Quais as consequências desse trabalho nas vidas dele e de Omar? Desculpem pela demora em atualizar, tentarei melhorar isso daqui em diante. Mas acompanhem e, sobretudo, comentem!
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