Capítulo 16

Do diário de Sarah Jones Al-Rashid


09 de janeiro de 1960


Hoje faz dois anos desde que Hussein foi assassinado, e muitas coisas aconteceram durante esse período.

Foi muito difícil, mas eu e Salim conseguimos abortar a ação dos revoltosos, descobrindo, prendendo e punindo seus líderes. Felizmente, a população de Shankar confiou em mim e apoiou todas as minhas iniciativas, entendendo que tudo o que eu queria era manter o legado do meu marido.

Também fui obrigada a aprender muita coisa sobre política e administração, para entender todas as leis, decretos e sentenças que passavam por mim e garantir que nenhuma injustiça fosse cometida. Felizmente, tive o melhor dos professores, Hussein, que sempre me participou todas as decisões que tomava e as estratégias que usava para se impor com pessoas de que não gostava ou não confiava, e geralmente, quando eu ficava em dúvida sobre qual o procedimento a realizar, lembrava de alguma coisa que ele me dissera ou contara e conseguia contornar a questão de maneira satisfatória. Muitos resistiram à ideia de obedecerem a uma mulher, mas o peso da vontade do sultão em seu leito de morte e o apoio incontestável da família dele me ajudaram a fazer valer a minha vontade.

Contudo, isso teve um preço muito alto. Fiquei distante de Harum por aproximidamente um ano, com o nosso contato limitado à troca de cartas semanais, em que eu contava tudo o que me acontecia durante a semana e ele fazia a mesma coisa, e eventuais telefonemas para não chamar a atenção de nossos inimigos. Porém, no decorrer desse tempo comecei a perceber que o meu filho parecia se distanciar de mim, nunca me faltando com o respeito mas sendo menos carinhoso do que antes no que me escrevia ou me dizia. Pensei que quando ele voltasse para cá tudo voltaria ao normal, mas quando o país foi pacificado e acertei com Hassan sua volta, o menino que recebi não era o mesmo: em vez de me abraçar e sorrir para mim como antes, ele estava empertigado como um adulto, e reagiu com sobressaltos quando o abracei. Na nossa primeira refeição juntos, tentei fazer com que relaxasse relembrando histórias de sua infância, mas ele continuou no mesmo modo indiferente. A única coisa que pareceu animá-lo foi quando fiz referência às suas obrigações como futuro sultão, ele quis saber quando poderia estar no pleno exercício do cargo, e eu lhe disse que, conforme a vontade do seu pai e as nossas leis, ele poderia fazer isso assim que tivesse 21 anos, mas seria recomendável que concluísse seus estudos antes disso. Sendo assim, ele disse que estudaria em dobro, se fosse preciso, mas que gostaria de já estar formado aos 20 anos. De forma que fizemos um plano de estudos com alguns dos seus mestres, para que, sem sacrificar sua vida ou a qualidade de suas aulas, ele possa adiantar um pouco seu cronograma e já estar formado quando de sua posse. E não tenho perspectiva de que as coisas melhorem, pois há meses que isso vem acontecendo e meu filho não dá sinais de querer se reaproximar de mim, mesmo que eu faça questão de sempre fazermos as refeições juntos. Ele me respeita, mas me trata da mesma forma como a qualquer adulta a que deve obediência.

Recentemente papai, John e sua família vieram nos visitar, e fiquei muito triste ao perceber que Harum não os recebeu com o mesmo interesse de antes. Papai também percebeu, e sugeriu que eu tentasse ver um psicólogo para conversar com meu filho, mas depois de uma única tentativa logo que ele voltou do esconderijo ele se limitou a dizer que estava bem e não precisava de nenhum psicólogo, e foi tão enfático que não tive como insistir.

Vendo a minha situação, papai me disse que estava à minha disposição, e sempre que quiser posso retornar à Inglaterra, mas depois de agradecer recusei, e não é só porque o túmulo de meu marido está aqui. Tenho que cuidar do sultanato até que Harum possa administrá-lo, mas sobretudo tenho de preservar tudo o que Hussein lutou e morreu para defender. Essa é a melhor forma que tenho para honrar tudo o que ele foi para mim.


Um pouco depois, Omar entrou no gabinete do pai com um embrulho e perguntou ao secretário do sultão se ele estava recebendo alguém. O jovem lhe disse que não, e que verificaria se poderia atendê-lo naquele momento, disse-lhe que era melhor que o atendesse logo, "para o próprio bem dele", com uma expressão tão séria que o rapaz preferiu transferir essa frase quando falou com Harum. Em seguida, abriu a porta para ele.

O sultão estava sentado numa antiga poltrona, diante de uma mesa igualmente antiga e bem-cuidada. Olhou para o filho com uma expressão imperiosa e perguntou-lhe:

- O que deseja, Omar? Para vir ao meu encontro com uma afirmação tão impertinente, presumo que você tem um bom motivo.

- O senhor pode ter certeza que tenho todos os bons motivos, e começarei pelo sequestro e tentativa de intimidação de um filho de diplomata que está a serviço deste país traduzindo um documento oficial. Sempre soube que o senhor gostava de ter sua vontade obedecida, mas nunca imaginei que chegaria a algo tão baixo. – De tão revoltado, Omar mal conseguia reter o fôlego.

- Você me respeite, menino, ainda falta muito para você sentar nessa cadeira! Com que direito você entra no meu escritório e me ofende dessa maneira. Eu sou seu pai e o soberano deste país, em outros tempos eu poderia te castigar seriamente por isso! – O sultão estava mesmo chocado e irritado por ser confrontado pelo próprio filho, mas o príncipe não se intimidou, pois tinha a força de quem sabia estar do lado da verdade.

- Não seja cínico, sultão, isso não combina com o senhor. Eu tenho provas de que foi o senhor que, juntamente, com o primeiro-ministro, planejou o sequestro de Miguel, com o objetivo de nos intimidar, fazer com que ele voltasse para a Inglaterra e eu me casasse com Lâmia. Só que eu também sei de outra coisa, que são os seus pecados de juventude, e todo aquele jogo sujo que o senhor fez com Salua, seduzindo-a e depois abandonando-a por uma candidata mais conveniente ao posto de sultana, e arranjando um casamento de conveniência com ela para que o seu filho mais velho tivesse outro nome. Depois de tantas sujeiras, nada que o senhor disser vai ter o peso de antes para mim, se no passado eu o respeitei e sempre fiz o que estive ao meu alcance para satisfazê-lo, isso acaba agora. Eu vou viver com o homem que eu amo e nada que o senhor fizer mudará isso! – Disse com uma expressão desafiadora.

- Omar, sempre admirei seu profissionalismo e sua dedicação ao país, mas pelo jeito você ainda é muito ingênuo. Você realmente acredita que eu deixaria que este sultanato, pelo qual eu lutei durante toda minha vida, vire motivo de piada entre os países árabes por causa do relacionamento indigno do futuro sheik? Sim, eu admito que nós planejamos aquele susto para seu amásio, sempre desconfiei da sua aversão ao casamento, e a proximidade que os dois tinham durante as festividades me pareceu anormal. Tanto que, embora tenha ficado alegre quando você começou a estreitar seu relacionamento com Lâmia, mas ainda queria ter certeza, por isso orientamos a criada dela a espiar todos os seus passos, de modo que soubemos tudo o que vocês faziam por lá, apenas esperávamos o momento certo para agir. E foi você que nos deu esse momento, quando resolveu fazer aquela paródia daquele infame filme americano para seduzir seu mocinho. Não se preocupe, jamais feriríamos o rapaz, nunca nos submeteríamos a um incidente diplomático. Mas imaginei que seria o suficiente para vocês aprenderem a lição, algo que, infelizmente, me enganei. O que é preciso que eu faça para que você entenda que é necessário que cumpra com o seu dever? – Mesmo ao confessar seu crime, Harum não parecia nada arrependido ou pesaroso.

- Como é possível que eu vim de você, fui criado por você, convivo com você há mais de quarenta anos e nunca percebi o monstro que você é? Será que você não herdou nada dos meus avós? Como é possível que aquelas duas pessoas amorosas e profundamente dedicadas tanto a você quanto a este país produziram algo como você, juro que não entendo!

- Os seus avós? Seu avô foi um fraco, que se desviou do caminho reto quando se casou com sua avó, que estimulou todas as loucuras que ele fazia e até sugeriu outras a ele. Por causa deles, passei a vida inteira tentando colocar esse país nos eixos sozinho, sempre tentando agir racionalmente em vez de ser sentimental. E a todo custo tentei passar essa lição para você, que pelo visto, não aprendeu nada. Amor, belo amor esse que você professa, por um menino que tem idade para ser seu filho! Sinto desgosto só de pensar no que você deve ter feito com ele e com outros, você parece procurar a vergonha!

- Como dizem na terra de Miguel, lave a boca mil vezes antes de falar dos meus avós! É graças a eles que você está no mundo, e tudo o que este país se tornou é por causa deles. Foi o sultão Hussein que tomou a iniciativa de procurar a Inglaterra para negociar o nosso cobre, e foi a sultana Sarah e o pai dela, seu bisavô, que o ajudaram a fazer isso. Foram os dois que articularam a construção da Academia de Belas-Artes e da Universidade, com doações e convênios de instituições estrangeiras, e ajudaram a consolidar a nossa cultura, fora os hospitais que inauguraram. Eu tenho muito orgulho de ser neto deles, e de ter sido agraciado com um amor como o que eles viveram. Eu vou viver a minha vida ao lado de quem sempre me amou, e o senhor vai reconhecer o seu filho mais velho, nomeá-lo seu sucessor e, quando ele se casar com a mulher que ama, estará ao lado dele junto com o seu cúmplice, entendeu?

- Um plano muito interessante, reconheço, mas que precisa da minha anuência, filho. – Por mais aborrecido que estivesse com a repentina rebeldia do filho já maduro, o sultão não deixava de admirar a coragem e a argúcia dele. – E por qual razão eu deveria deixar você sair do país com o rapaz sem sofrer nenhuma consequência, bem como reconhecer um filho bastardo fruto de atos inconsequentes da minha juventude, e ainda por cima coroar esse ato ilícito dando-lhe o meu trono?

- Por uma única razão, vossa majestade. Porque se o senhor não ceder, hoje mesmo eu entrarei em contato com a imprensa internacional e denunciarei todos os seus crimes, desde o sequestro de Miguel até a sedução e abandono de Salua, as ameaças que o senhor fez a ela e ao seu futuro marido para garantir a união dos dois e até sua prevaricação, ao anular as denúncias militares contra ele. E esteja certo de que tenho poder suficiente para fazer isso, os shankarenses sempre me estimaram e tenho vários contatos no exterior que podem difundir sua história sórdida. E depois que ela for difundida, eu lhe garanto que o povo lhe virará as costas e muitos dos seus parceiros comerciais também.

Pela primeira vez desde que a discussão foi iniciada, o soberano ficou abalado, e deixou-se derrubar na cadeira.

- Você seria capaz de trair o seu próprio pai por causa disso tudo, Omar? – Perguntou com voz áspera, mal contendo seu desconforto com a promessa do filho.

- Não chamaria isso de traição, e sim de justiça, a todas as pessoas que você atingiu ao longo da sua vida: minha avó, que nunca foi completamente feliz por causa de sua frieza, Salua, que amou e se confiou a você só para ser desprezada, Hakim, que cresceu como seu subalterno mesmo sendo seu herdeiro por direito, minha mãe, que tentou com todas as forças mas nunca conseguiu satisfazer suas expectativas, e por fim Miguel, que você colocou em risco mesmo ele sendo filho de um amigo que já fez muito por nosso país e depois dele ter se proposto voluntariamente a resgatar um pedaço de sua própria história. Que, a propósito, está aqui. – E abrindo o embrulho, tirou de lá dois calhamaços encadernados em espiral, contendo a tradução em turco dos diários de Sarah, e estendeu-os para o pai. – Espero que você os leia e dê a eles um destino adequado, é o mínimo que deve ser feito depois de todo o empenho que nós tivemos para fazer um trabalho digno que honrasse seus pais e este país.

- Eu os lerei, Omar, e pensarei sobre tudo o que você disse. Mas só quero lhe dizer que não sou um monstro, filho. Posso ter cometido erros, mas toda a minha vida sempre procurei fazer o melhor para o país. – E não pôde negar que, pela primeira vez, viu algo parecido com humildade no semblante do sultão.

- Como também dizem no Brasil, de boas intenções o inferno está cheio. – E deixou o gabinete com uma leveza que jamais sentira.


Algumas semanas depois, Omar e Miguel, vestidos com fraques, esperavam na capela subterrânea um sinal do padre Jonathan, irlandês de ideias liberais que chegara ao país com a ajuda do seu amigo Cemil, cunhado de Hakim de seu primeiro casamento que era uma das poucas vozes de Shankar a defender abertamente os direitos dos gays. Com efeito, aquela cerimônia de casamento fora planejada por eles e seus amigos durante aquele período, e a decoração daquele local remetia à do casamento católico de Hussein e Sarah, inclusive com a presença do ícone da Virgem da Ternura. Talvez não houvesse uma necessidade de realizar uma cerimônia oficial, mas além da seriedade que isso dava ao compromisso entre eles, Omar também quis dar ao futuro esposo um casamento romântico como ele merecia.

- Hakim, preciso lhe pedir uma coisa: você me promete que, quando assumir o trono de Shankar, vai doar esse ícone à Igreja Católica do nosso país? Acho que será mais útil lá do que guardado em nossos cofres, e já temos tantos tesouros que ele não fará falta. – Perguntou Omar ao irmão, que era seu padrinho naquela cerimônia junto com Lâmia. A cerimônia também contava com a presença de Salua e Cemil, e embora com poucas pessoas, era perfeita para eles, pois sabiam que estavam entre amigos.

- Prometo, Omar, embora ainda esteja me acostumando com essa nova realidade. Até algum tempo eu era só um assessor, e de repente viro o futuro sultão, às vezes receio não corresponder. – Era estranho alguém ver tão competente como ele demonstrar insegurança.

- Não se preocupe, você é tão ou mais capaz do que eu, cansei de ver o sangue frio com que você enfrenta crises e pressões depois de anos sendo meu braço direito. Qualquer coisa, conte comigo, eu posso estar me mudando para Londres mas não cortarei meus laços com o país. – Na verdade, ainda ficaria algumas semanas, tendo em vista a proximidade do casamento de Hakim e Lâmia, que seria celebrado com toda a pompa, depois que Hakim fora oficialmente assumido como filho pelo sultão. Contudo, o relacionamento do soberano com os dois filhos ainda era delicado, e não sabiam como ficaria no futuro.

- De fato, e eu sei que você manterá seu cargo como representante comercial do país, além de produtor da minissérie. Assim como Miguel ainda é o principal consultor da equipe. – Mesmo que, para evitar uma especulações desnecessárias e outros tipos de vulnerabilidades, ele provavelmente faria a maior parte do trabalho pela Internet.

- Esse país nunca se livrará de mim, tenha certeza, apenas quero sentir um pouco de liberdade, meu irmão.

- E assim será. Se há algo que toda essa história me trouxe de bom, foi ter um irmão como você, um cunhado como Miguel e avós como Hussein e Sarah. Isso compensa muito todo o resto. – E depois disso retomou sua posição junto do altar.

- Você está feliz? – Perguntou o príncipe ao historiador.

- Sem dúvida, Omar, vim para cá simplesmente para conhecer sua terra e fui presenteado com o desabrochar do nosso amor. E tenha certeza de que lutarei por ele com todas as minhas forças. – Respondeu o jovem com entusiasmo.

- Eu também lutarei, se há algo que você e meus avós me ensinaram é que vale a pena lutar pelo direito de ser feliz. – E retomando a posição em que estavam, disseram seus votos nupciais e assumiram a profundidade do amor que os unia.


Ufa, esse capítulo foi intenso mas creio que também foi interessante. Agora só falta o epílogo, que também promete grandes emoções.

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