Capítulo 12

Do diário de Sarah Jones Al-Rashid


30 de outubro de 1954


Às vezes as atribuições do cargo são pesadas demais.

Hoje de manhã foi o aniversário de quatro anos de Harum, e o comemoramos logo cedo numa festinha rápida com algumas pessoas próximas, como a mãe, o irmão (com a esposa e o filho de um ano) e as primas de Hussein, além de um ou outro membro importante do governo, embora Judy e o marido não pudessem participar devido à gravidez avançada dela. Cortamos o bolo e tiramos algumas fotos para serem distribuídas nos jornais, mas tudo foi cedo e muito rápido, pois Hussein tinha uma reunião do conselho para integrar, e dessa vez eu e Harum o acompanhamos.

Quando ele entrou na sala conosco, houve um certo burburinho, mas meu marido explicou que, como o príncipe acabara de fazer 4 anos, quis que ele acompanhasse uma reunião pela primeira vez para que começasse a ter ideia das responsabilidades que o esperavam quando chegasse a sua hora de comandar o sultanato. E que eu estava lá tanto na qualidade de mãe, para garantir ao nosso filho que ele não tinha motivos para ficar amedrontado, quanto na de soberana, para entender o que o seu marido fazia e como aquilo repercutia nas vidas do país. Um dos integrantes chegou a se levantar com a intenção de dizer alguma coisa, provavelmente uma crítica, mas ele apenas acrescentou:

- Na qualidade de sultão, sempre procurei ser razoável, determinando apenas as coisas que não são escandalosas nem impossíveis. E creio que ninguém aqui é contra que o futuro soberano deste país conheça o lugar onde ele se fará presente no futuro, nem que uma mãe permaneça junto de seu filho. Ou alguém pensa diferente? – E pelo seu olhar, deixava bem claro que quem o desafiasse poderia não gostar da resposta.

Parecendo ter entendido o recado, o ancião voltou ao seu assento sem falar, e a sessão começou. Eu já domino bem o turco e consegui entender os assuntos abordados, tentando prestar atenção enquanto procurava passar tranquilidade para que Harum não se aborrecesse, o que não era fácil tendo em vista que eu percebia não poucos olhares nada amistosos em minha direção, claramente revoltados por eu participar daquele ato. Mas eu me dominei razoavelmente bem, até que uma das minhas criadas me entregou um bilhete, com este recado:

- Judy acabou de entrar em trabalho de parto.

Com efeito, a meu próprio pedido minha amiga, que já não era tão jovem, ficou de me avisar quando daria à luz, a fim de que eu acompanhasse seu parto da mesma maneira como ela acompanhou o meu. Fiquei atordoada e logo ergui um pé como que para avisar ao meu marido o que acontecera e que eu teria de sair, mas observei que todos os olhares estavam em minha direção e me dei conta de uma coisa: era muito injusto e talvez insensível, mas eu não poderia sair da sala do conselho naquela hora. Isso porque meu marido correra o risco de desgastar sua posição ao permitir que eu participasse daquela sessão, junto com o nosso filho, e se eu saísse eu o colocaria numa situação vulnerável, justificando quaisquer críticas que lhe fizessem, especialmente quando ele está lutando tanto para implantar a universidade. Assim, com o coração pesado, escrevi a minha amiga que, pelo bem de Hussein, eu teria de ficar, mas que assim que a sessão acabasse eu iria até ela (com efeito eu sabia que partos em geral eram demorados, mesmo quando a pessoa tinha mais filhos, como era o caso dela). Minha criada leu a mensagem com uma expressão que parecia me consolar, e foi embora.

Só a lembrança de que eu precisava corresponder aos esforços de Hussein e de que eu tinha de estar calma porque Harum não podia perceber que sua mãe estava inquieta me deu o ânimo necessário para que eu conseguisse suportar com tranquilidade o resto da sessão. Contudo, rezava silenciosamente pelo bem-estar de Judy, e quando – depois de um tempo que pareceu interminável – a solenidade terminou, sai de lá com meu marido e meu filho, chamei a outra babá para que tomasse conta dele, momento em que meu marido se despediu de mim com um sorriso de gratidão, e fui ao quarto de minha amiga, que, como eu esperava, ainda estava em trabalho de parto. Com alguns remorsos, dediquei-me a ela o máximo, segurando sua mão, enxugando o suor de sua testa e falando com ela, até que ela tomou impulso e deu à luz uma linda menininha morena de olhos claros.

Após todos os rituais de seu nascimento serem realizados, aproximei-me dela e disse-lhe:

- Perdoe-me, Judy. Prometi que estaria com você da mesma forma como você esteve comigo, mas eu não podia sair de lá, Hussein se arriscou muito para que eu estivesse presente naquela solenidade e eu tinha de mostrar ao conselho que ele não fora leviano.

- Não se torture, majestade, eu sabia que isso poderia acontecer, e a senhora conseguiu chegar no fim do meu parto. Mas – e nesse ponto me contemplou muito mais séria do que eu já a havia visto em sete anos de amizade – foi bom que isso acontecesse para a senhora aprender uma coisa: mesmo que os senhores sejam soberanos, suas vontades nem sempre prevalecem. Eu estimo muito Vossas Majestades e sou grata pela atenção que têm por mim e por minha família, mas os deveres que ambos possuem com Shankar estão acima da minha pessoa. Eu aceito isso, creio que o sultão também aceita, e a senhora também deve aceitar. Não quer dizer que a senhora tem de fechar seu coração, mas precisa saber o momento de fazer cada coisa, senão será mais difícil ensinar a Harum como fazer isso.

- Está certo, minha amiga, já sabe qual será o nome dessa menininha?

- Sim, eu e Salim nos decidimos por Salua. – Respondeu com uma fisionomia alegre.

- Um nome bonito, se você não se incomoda trarei Harum para vê-la.

Ela respondeu que se alegrava com isso, e fui até o meu filho. Quando lhe contei tudo o que aconteceu, sua reação foi dizer, com uma cara bem zangada:

- Mamãe, não quero vê essa menina. Ela acabô meu aniversário, roubô você de mim e agora vô tê de dividir meus aniversários com ela. Tô com raiva!

Fiquei chateada, mas não exatamente surpresa, meu filho é um amor mas também tem um temperamento forte. De qualquer forma, olhei-o nos olhos e disse-lhe com firmeza:

- Harum, que coisa feia! Meu filho, você precisa aprender que o mundo não gira ao seu redor. Você não é o filho do sultão para que os outros lhe sirvam, mas para conduzir um país que confiará em você. Sua babá ama você e ela ficará muito chateada se você não a visitar e, quanto a você dividir seu aniversário com ela, muitas crianças nascem todos os anos no mesmo dia em que você nasceu, você não pode impedir o mundo de girar. Você vai comigo sim, e vamos levar um bom presente para ela. – E estendi minha mão para ele.

Um pouco sentido, sua mão apertou a minha e, depois de pegar algumas roupas que eu mandara fazer para o bebê, voltamos para o quarto de Judy, onde eu o fiz cumprimentá-la e, em seguida, pedi a uma de suas parentes que trouxesse o bebê para que o príncipe a conhecesse. Ele observava tudo com interesse médio mas, quando a viu, pareceu encantado.

- Ela é linda. Posso pegá? – perguntou a nós duas. Ficamos um tanto desconcertadas, talvez ele tenha se impressionado por não ter tanta convivência assim com bebês.

- Pode, príncipe, mas com cuidado. – Disse Judy, e fez um sinal para que eu me aproximasse. Assim, sentei-me ao seu lado na cama e acomodei o bebê em meus braços, enquanto meu filho se aproximou e fez um carinho em sua cabeça. Não deixavam de formar um quadro interessante, aquele garotinho moreno e fortinho, com um rosto encantador à maneira árabe, prestando total atenção naquele bebê de pele clara envolvido numa trouxinha branca como se ele fosse uma maravilha da natureza. Ele sorria para ela enquanto ela segurava um dos seus dedos, e aquela situação acabou por também me fazer sorrir.

Horas mais tarde, quando me preparava para dormir, comentei os fatos do dia com Hussein e disse:

- Não paro de pensar no que Judy me disse, que mesmo sendo soberanos nem sempre é a nossa vontade que prevalece. Quase lhe prejudiquei hoje, querido, porque tive o impulso de ir até a minha amiga, quando ela mesma era contra eu fazer isso. Ás vezes parece que sou muito sentimental para essa posição, será que eu conseguirei algum dia sentir que sou a soberana que este país e você precisam, ou a mãe que Harum precisa? – A verdade é que aquela conversa ficou em minha mente durante todo o dia, reforçando em mim que, longe da posição privilegiada que a maior parte das pessoas associam a nós, sermos soberanos era uma posição de extrema responsabilidade, pois até um gesto meu poderia ter repercussões junto ao povo.

- Não se preocupe, querida. Sim, o fato de que somos soberanos não quer dizer que estamos acima das regras, mas você é inteligente e compassiva, tanto que só adiou sua ida ao quarto de Judy porque sabia que ela estaria bem-assistida até você ter uma oportunidade de ir. Mas eu realmente precisava do seu apoio naquela hora, e você ter tido sensibilidade para perceber isso é algo que só reforça meu entendimento de que, sem sombra de dúvida, você é a soberana que eu e Shankar precisamos. – Respondeu-me com carinho enquanto segurava minhas mãos.

- Obrigado, querido. Você não faz ideia do quanto é bom ouvir isso, faz tudo valer a pena. – Disse-lhe enquanto o abracei. Sim, nem tudo era fácil e nem sempre é a nossa vontade que prevalece, mas a verdade é que nada que é importante se conquista sem dificuldades.


- A ideia de Lâmia é boa, filho, o que vocês têm em mente para implementá-la? – Perguntou o sultão a Omar, quando ele foi ao palácio nacional contar do plano da turismóloga sobre a série.

- Já contatei o diretor da Academia Nacional de Belas Artes e ele está formando uma equipe com diretor, roteirista, figurinistas e cenógrafos, entre outros profissionais, para escolher o elenco e elaborar roupas e cenários. Quando eles tiverem algo definido, serei contatado para dar a minha opinião.

- Muito bom. A propósito, como está o trabalho de Miguel?

- Ele está indo muito bem. Ele parou um pouco a tradução para escrever o argumento da série, com os principais pontos da história dos meus avós e indicações de alguns personagens que podem ser aproveitados em tramas paralelas, mas já a retomou e está para concluí-la.

- O rapaz fez um bom trabalho, espero que você o remunere bem por ele. – Afirmou Harum.

- Não tenha dúvidas disso, meu pai, até porque ele deverá voltar aqui eventualmente, para ser um dos principais consultores da equipe de filmagem.

A ideia do historiador tendo passe livre por seu país pareceu não entusiasmar o soberano, que deixou escapar:

- Mas ele tem mesmo necessidade de vir aqui, Omar? Imaginei que, depois de todo o trabalho feito, bastaria ele conversar com você eventualmente por e-mail ou webcam.

- Meu pai, poucos conhecem a história tão bem quanto ele, eu quero que ele transmita a paixão que ele sente pelos meus avós à equipe e aos atores. Sim, ele voltará à Inglaterra quando a tradução for concluída, mas com certeza ele terá pleno acesso a Shankar depois disso. É o mínimo que posso fazer, sem ele e seu interesse em traduzir o diário de minha avó esse projeto sequer teria existido. – E falava com convicção, embora tivesse de admitir que tinha suas próprias razões para ver o jovem de volta ao seu país.

- Bem, talvez você tenha razão, sem dúvida esse projeto trará muita atenção ao país. Mas – e nesse ponto olhou para o filho de forma séria – você já sabe o que fará de sua vida de agora em diante?

- Por que a pergunta, meu pai? – Indagou de forma desconfiada.

- Porque as solenidades de independência acabaram, meu filho, e creio que já está na hora de você ficar mais presente em Shankar. Já estou velho, e preciso ter certeza de que você cuidará esse país assim como temos feito desde que o seu bisavô decretou sua independência. E de preferência, acompanhado. – Definitivamente o sultão estava lhe cobrando uma mudança de atitude, detestava quando ele fazia isso, parecia que, mesmo com tudo o que fazia pelo país, voltava a ser uma criança que tinha de apresentar bons resultados junto aos professores.

- Mas o senhor ainda está bem, e minha atuação no exterior também se faz necessária. E quanto a minha vida particular, ela me diz respeito, quando eu sentir que estou pronto para me casar, farei isso.

- Eu espero que não demore a fazê-lo, meu filho, eu mesmo era muito mais jovem que você quando me casei, e com pouco tempo você já tinha nascido. Existem várias moças habilitadas para serem a próxima sultana, e uma delas está ao seu alcance. Não a desperdice. – A voz do sultão era calma, mas ele parecia mais implacável do que nunca, na vontade de que sua vontade fosse atendida.

- Provavelmente o senhor está certo. – Tinha de admitir que Lâmia seria uma excelente sultana, mas não a sacrificaria prendendo-a a um casamento infrutífero, especialmente quando via o quanto ela era feliz com o seu melhor amigo. – Mas eu tenho meu próprio ritmo, meu pai, e tem sido esse ritmo que permitiu que nosso país crescesse aos olhos dos demais nos últimos anos. Espero que o senhor respeite tudo o que tenho feito por Shankar, porque foi o senhor mesmo que me ensinou a não me rebaixar a nada ou a ninguém. Se o destino exigir que eu seja o soberano, serei, mas quanto ao resto, será quando eu quiser. A idade não quer dizer muita coisa, minha mãe casou jovem mas isso não impediu que ela fosse infeliz. – Na ânsia de encerrar aquela conversa, preferiu tocar num assunto nunca abordado entre eles, que era a tristeza que a bela, generosa e impecável sultana Farah escondia dos súditos por trás do seu sorriso público, tristeza essa provocada pelo fato de que tinha o amor do povo, dos criados, dos amigos e parentes que a cercavam, incluindo seu próprio filho, mas não do homem com quem se casou. Ela foi forte o suficiente para sobreviver a essa realidade e viver muitos anos, mas se tivesse sido correspondida nos seus sentimentos sua vida teria sido muito mais gratificante, como ela merecia que tivesse sido. Às vezes pensava que, quando ela, no início da velhice, descobriu um enfisema por causa dos cigarros que fumava escondido, simplesmente se deixou sucumbir porque, tendo um filho já crescido e independente, não via mais razões para continuar vivendo.

- Talvez a vida de sua mãe não tenha sido a melhor das vidas, – reconheceu o sultão com um semblante pesaroso – mas ela foi a melhor sultana que eu poderia ter ao meu lado, sábia e abnegada o suficiente para fazer o que precisava ser feito sempre que constatava isso. Espero que você tenha herdado esse senso de dever dela, Omar, sei que você está impressionado com a história dos seus avós, mas o amor nem sempre fornece todas as respostas. Na sua idade, você já deveria saber disso, o mundo é como é, não como queremos que ele seja.

- Mas o amor forneceu para eles, bem como para o país. De qualquer forma, estou cansado agora, e peço permissão para me retirar. – Talvez estivesse fazendo um recuo em vez de enfrentar o problema, mas agora que sabia o que realmente era o amor, ainda não estava preparado para renunciar a ele.

- Permissão concedida. Mas lembre-se do que eu disse, filho, você não pode fugir do seu destino para sempre. Não estou mais em idade de esperar. – E depois de fazer a inclinação protocolar, o príncipe saiu do gabinete do sultão.


A história está se encaminhando para o final, depois deste capítulo só tenho em mente mais quatro e um epílogo. Agradeço pela atenção de vocês, e peço desculpas pela demora, mas, como já mencionei antes, tenho uma vida além deste aplicativo. Continuem lendo, comentando e divulgando.

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