Capítulo 10
Do diário de Sarah Jones Al-Rashid
30 de novembro de 1950
Hoje meu filho completou um mês de nascido, e só então foi oficialmente apresentado ao povo. Até poderíamos ter feito isso antes, mas preferimos esperar até que ele ficasse mais forte.
Minha gravidez foi cercada de cuidados, quase não saí e toda a minha comida foi monitorada. Quando eu já estava no oitavo mês, papai, John e Lucy, que já têm uma filhinha, vieram para cá para acompanhar meu parto, a pedido de Hussein, que me cercou de mimos e também me explicou todas as tradições que envolviam o nascimento de um bebê na sua cultura, de forma que eu não me chocasse com nada.
A parteira já estava de prontidão aqui no palácio, e foi chamada quando comecei a sentir as contrações. Fui posicionada na minha cama e ela começou a preparar tudo junto com duas assistentes, enquanto as dores ficavam cada vez mais intensas, mas Judy estava ao meu lado e segurou minha mão, ao mesmo tempo em que meu marido rezava por mim do lado de fora e Lucy comandou o rosário com meus familiares em outro quarto. Era muito difícil, durou bastante tempo e às vezes achei que não aguentaria, mas Judy dizia: "A senhora é forte, majestade. A senhora vai aguentar, vai aguentar!", quase como se me ordenasse fazê-lo. Não sei se foi por isso ou pelas orações dos meus entes queridos, mas as contrações se aceleraram e logo senti o corpinho dele saindo, começando pela cabeça. Nessa hora, a parteira se aproximou para ajudá-lo a deslizar e depois deu um tapa no seu quadril, momento em que seu choro se fez ouvir pela primeira vez.
Alertado pela assistente, Hussein entrou no quarto, pegou o bebê em seus braços e, depois de constatar que era um menino, aproximou seus lábios do seu ouvido direito, sussurrando o adhan, título dado ao chamado para a oração prescrito nas leis islâmicas, segundo ele para que a palavra de Alá faça morada em sua alma, mesmo motivo porque também abriu um pequeno frasco e derramou uma gota de mel em sua boca. Só então ele se aproximou de mim e me mostrou nosso filho, um bebê moreno e lindo que é a sua cópia. Depois de me beijar e me agradecer, deixou-me repousar aos cuidados da parteira, enquanto transmitiu a notícia para todo o palácio, enquanto eu fiquei com meu filho nos braços, desfrutando maravilhada da sua presença enquanto constatava a grandiosidade do milagre da vida. Aquele menino lindo era um pedacinho meu e do pai dele, e é um livro em branco onde, espero, muitas coisas lindas serão escritas.
Recebi muitas visitas nos dias seguintes, fossem dos meus parentes mais próximos, da família de Hussein (até de Hassan, que pela primeira vez sorriu para mim e me saudou dizendo que Alá me abençoasse sempre) e de diversos membros do conselho, além de mensagens de saudações de diversos líderes do mundo e um telegrama de felicitações do rei George, o que impressionou muito papai.
- Com tudo o que já vivi, e mesmo sendo um marquês, nunca imaginei que um dos meus netos se sentaria num trono. – Confidenciou-me enquanto o embalava.
- Você sabe que isso não é o que mais importa para mim, papai. Só quero que ele tenha saúde e seja um homem bom. – Respondi. Porém, tenho de reconhecer que o fato dele nascer homem facilitou muito as coisas para mim, com certeza se houvesse nascido uma menina isso seria mais motivo para me criticarem.
- Sim, Sarah, mas isso é parte de quem ele é, um dia ele comandará este território e o que ele decidir repercutirá não só na vida dos seus habitantes, mas, quem sabe, até em outros países. Você nunca deve se esquecer disso.
- Não me esquecerei, papai, pode ter certeza que ele aprenderá que um cargo tem responsabilidades. Mas não quero que isso seja um peso para ele, ele também tem direito a ser feliz, e tanto eu quanto Hussein lutaremos por isso. – Isso era inegociável, jamais permitiria que ele sofresse com preceptores severos e internatos como era comum na elite inglesa, especialmente entre os descendentes da realeza.
- E estão certos em pensar assim. Mas não se iludam, a educação deste bebê não passará só por suas vontades. – Sentenciou quando mo devolveu.
Mas os ritos mais solenes foram realizados no seu sétimo dia de vida. Nesta data, realizaram tanto a sua circuncisão, remetendo a uma tradição milenar, quanto Hussein anunciou o seu nome, Harum, em homenagem a um antepassado seu que, séculos atrás, foi um dos primeiros a sonhar em segredo com a autonomia de Shankar (mas teve o cuidado de me comunicar disso antes, e fiquei feliz de meu filho ter um nome com uma história). Em seguida, sua cabeça foi raspada com todo o cuidado (só sosseguei porque Hussein me apresentou o barbeiro e ele me assegurou que fazia isso com frequência e nenhum dos meninos que passaram por suas mãos em vários anos de prática se machucou, mas senti um certo incômodo quando o vi passando a navalha primeiro pela parte direita de seu couro cabelo e depois pela parte esquerda), e os fios foram pesados para distribuir o equivalente ao peso deles aos pobres, em moedas de prata. Por último, dois dos melhores carneiros do rebanho real foram separados e abatidos por Hassan como uma oferta votiva pelo nascimento de um herdeiro varão. Depois de preparados, os cordeiros e as moedas foram entregues por Hussein ao imã, com a recomendação de que os entregasse à família mais pobre de Johara.
Nas semanas seguintes, fiz questão de que o berço de Harum ficasse em nosso quarto, para que ele criasse um vínculo conosco, mesmo que isso algumas vezes tenha prejudicado um pouco nosso sono. De qualquer forma, ele logo se adaptou e revelou-se um bebê bastante calmo, o que não deixa de ser um alívio, pois pude me sentir mais à vontade com ele. Principalmente porque não abrirei mão de amamentá-lo, ao menos nos primeiros meses.
Na manhã de hoje contemplei-o com bastante atenção antes de me arrumar e percebi que ele tem crescido com vigor, e seu cabelo já recuperou o volume. Depois, uma criada me ajudou a colocar as vestes reais e ele foi vestido por sua babá, que o segurou e encaminhou-se comigo para as portas que dão acesso ao balcão do palácio, onde Hussein, vestido com seus trajes típicos de sultão, já nos esperava. Quando elas se abriram, vimo-nos diante de uma multidão e, com um sorriso, meu marido nos conduziu até a sacada. Tomando o bebê, ergueu-o e disse em turco:
- Povo de Shankar, este é Harum, o príncipe herdeiro. Agradeço-lhe pelo apoio e pelas preces que sempre têm nos dirigido, com certeza sempre nos empenharemos em retribuir este amor fazendo tudo o que estiver ao nosso alcance para o seu bem comum, e o educaremos para pensar dessa mesma forma. Mas também quero agradecer à minha esposa Sarah, a sultana desta nação, que mais do que a mãe do meu filho tem sido uma grande companheira. E em agradecimento a tudo que tem feito por mim e pelo meu povo, querida, quero lhe dar um presente. – E depois que fez um sinal, um servo se aproximou segurando uma tiara de brilhantes com uma esmeralda e dois diamantes encrustados no centro, pousada sobre uma tiara, e depois de pegá-la colocou-a sobre minha cabeça, fazendo par com o colar que ganhei no meu casamento.
O povo nos saudou com aplausos, vivas e rojões, e ele sussurrou no meu ouvido:
- Muito obrigado, querida, por tudo que tem me dado.
- Eu é que fico feliz por poder dar alguma coisa a você – respondi.
Sei que é apenas o começo da batalha, mas estou muito feliz e disposta, principalmente porque o homem que eu amo está ao meu lado e agora temos um filho.
Algum tempo depois, os dois carros chegaram à casa de campo, e quando seus ocupantes desceram os seguranças se posicionaram diante deles para guarnecê-los. Quando desceram, carregando suas respectivas malas, encontraram a casa já arrumada, numa ação que tinha sido coordenada pela criada de Lâmia junto às criadas fixas da casa. Em seguida, escolheram os quartos, Omar e Miguel ficando com os principais, que como originalmente eram destinados ao sultão e à sultana eram ligados por um banheiro em comum, o que era conveniente para ambos se comunicarem durante a noite sem chamar a atenção de outras pessoas. O de Hakim ficava próximo ao do príncipe, e os da turismóloga e sua criada um pouco distantes, numa ala próxima. Quanto à segurança, ela era feita por agentes de confiança recrutados por Hakim, nas paredes externas e nas entradas para as alas, garantindo a proteção dos hóspedes, mas também a sua privacidade. À parte a casa principal, também havia um jardim, um pomar e uma cocheira com alguns cavalos.
Aos poucos todos se adaptaram às suas novas rotinas, com os dois amantes desfrutando intensamente da companhia um do outro durante a noite, geralmente no quarto de Omar, e dedicando-se com afinco às suas atividades de manhã e de tarde (Miguel, então, praticamente só saía dos seus aposentos para comer, dedicando-se ao máximo a verter para o turco as páginas escritas pela avó do homem que amava, e este revisava os escritos durante os intervalos de suas atividades ou quando estava no próprio quarto, ainda que não fosse necessário fazer muita coisa pois o historiador foi aprimorando seu domínio do idioma aos poucos, com base nas correções anteriores). O príncipe também era atualizado de suas atribuições por e-mail, sempre contando com a assessoria de Hakim, mas num determinado momento também começou a pedir a opinião da jovem.
Praticamente desde o primeiro dia os quatro se tornaram um grupo muito unido, partilhando todas as refeições e fazendo questão de trocarem experiências e opiniões nesses momentos, ainda que tomando cuidado para não se denunciarem por gestos ou palavras aos criados presentes. Livre do receio de que ela pudesse usurpar seu príncipe, Miguel conseguiu ver Lâmia como uma amiga inteligente e leal, que buscava seu lugar ao sol e tinha todo direito a ser feliz. Começou a conversar mais com ela, e, tanto com base no que ela dizia quanto em suas próprias observações, chegou a uma conclusão.
- Omar, acho que Lâmia está apaixonada por Hakim. E mais, acho que ele sente a mesma coisa por ela. – Comentou com o amante umas três semanas após a chegada deles, num momento em que os dois tomavam banho de banheira.
Surpreso, o príncipe desencostou a cabeça do jovem do seu peito, onde ele repousava enquanto o esfregava com uma esponja, e o encarou:
- Você tem certeza, Miguel? Logo Lâmia, tão focada na própria carreira, e Hakim, que vive como um monge desde que perdeu a esposa?
- Não tenho dúvidas, meu amor. – Disse o jovem com serenidade. – É só você reparar na maneira como os dois se olham quando imaginam que não são observados, em como sorriem o tempo todo quando conversam e nas pequenas gentilezas que fazem um para o outro. Os dois estão totalmente caídos um pelo outro, tanto que nem percebem isso.
- Bem, não vou duvidar do seu julgamento, prestarei bastante atenção nos dois. Mas e aí?
- E aí, o quê? Óbvio que, se eles se gostam, temos de ajudá-los a ficar juntos.
- O quê? Miguel, entendo que você goste deles e queira ajudá-los, mas será que isso não é se imiscuir demais em assuntos que não são nossos? Eles são adultos e independentes, sabem perfeitamente se virar. Além disso, será que isso seria benéfico para os dois? Não se esqueça que ela é a filha do primeiro-ministro, de uma família tradicional de Shankar, enquanto ele, por mais qualificado e culto que seja, é o filho da governanta do palácio e o pai dele foi general, sim, mas teve origem humilde e só alcançou esse status pelos próprios méritos. Se eles ficarem juntos, terão de enfrentar muita gente, por mais que nosso país tenha evoluído ele ainda é muito arcaico em termos de casamentos entre classes sociais distintas. – Respondeu Omar com uma certa tristeza, pois acompanhara bem de perto o sofrimento do amigo e sempre desejou que ele desse uma nova chance ao amor. Mas tinha de ser realista, conhecia o suficiente a família do primeiro-ministro para saber que eles desaprovariam um romance entre eles e isso poderia prejudicá-lo seriamente. Contudo, o historiador não se perturbou com seus argumentos.
- Mais um motivo para nós os ajudarmos. O nosso amor é muito mais complicado que o deles, e nem por isso eles se recusaram a vir para cá para nos dar cobertura. Eles merecem ser felizes, Omar, assim como nós também merecemos. Não dou a mínima para o que a família dela pensa ou o que o conselho vai pensar, trata-se de ajudar dois amigos a serem felizes. Nós vamos ajudar os dois a admitirem o que sentem, e depois encontraremos uma maneira deles ficarem juntos. – Respondeu olhando-o com firmeza. Sabendo que era voto vencido naquela questão, o príncipe suspirou.
- Está bem, você me pegou. Dependendo do que eu notar em relação aos dois, vou elaborar com você uma estratégia para aproximá-los. Mas você também terá um pouco de cuidado, e, principalmente, vai pensar duas vezes antes de bancar o cupido, certo? – Sentenciou com um olhar agudo.
- Sem problemas, não farei nada sem chegar a um consenso com você. Mas eles não estão aqui agora, o que significa que podemos nos dedicar a outro tipo de deliberação. – Disse com malícia enquanto enfiou a mão na espuma para acariciar seu pênis e inclinou-se para mordiscar o mamilo molhado.
- Será o tipo de deliberação que estou pensando? – Indagou o príncipe com voz rouca, antecipando mais uma ousadia de seu querido rapaz.
- Provavelmente. – E, sem interromper as carícias, beijou-o.
Omar começou a observar o amigo e a colaboradora durante as refeições ou no horário de trabalho e percebeu que Miguel estava certo, eles realmente olhavam um para o outro com interesse sempre que podiam, e escutavam as respectivas opiniões com atenção redobrada. Contudo, também eram cerimoniosos demais para se cortejarem, e, depois de muito deliberar se não seria arriscado estimular outro amor proibido, concluiu que se, tivera a dádiva de consumar seu amor pelo jovem, seria hipócrita negar isso a alguém que lhe era tão caro, e conversou com o amante algumas vezes para traçar uma estratégia para aproximá-los.
O primeiro passo foi, sob o pretexto de que estava muito ocupado para sair da casa, pedir a eles que fossem juntos a Johara de vez em quando para trazer alguma coisa. Sozinhos num mesmo carro, eles se viam obrigados a conversar para passar o tempo, e começaram a descobrir muitas coisas em comum, como o amor à poesia e música tradicionais, bem como por romances de suspense e filmes clássicos. Cada semelhança fazia com que reparassem mais um no outro, tornando mais atraentes o que já os interessava, e foi com alegria que seus amigos perceberam que o interesse entre eles parecia aumentar.
Certo dia, lá pelas 3 da tarde, Miguel entrou no escritório que dividiam de modo abrupto.
- Boa tarde, Miguel. – Saudou-o Hakim.
- Boa tarde a todos. Meus caros, é o seguinte: acho que estou trancado demais nessa casa, preciso espairecer um pouco. Omar, presumo que não será tão demorado prepararmos alguns cavalos para uma boa cavalgada, não é? – Perguntou o historiador com ar entusiasmado.
- Miguel, creio que não, os cavalos estão sempre bem-tratados, creio que o cavalariço pode prepará-los em pouquíssimo tempo. Acho que realmente seria uma maneira de nós quatro relaxarmos, ficarmos só trabalhando não é bom. – Concluiu o príncipe.
- Nós quatro não, não sei montar. – Esclareceu Lâmia. Na verdade, Miguel já sabia isso, pois a escutara comentando a respeito por acaso, dizendo que tentou, mas não conseguiu aprender. Mas não se importou, pois tinha uma solução que vinha a calhar.
- Entendo, Lâmia, mas como alguém que monta desde criança acho que tenho a solução ideal para você. Eu e Omar montaremos sozinhos, mas você pode montar no mesmo cavalo que Hakim e ele vai garantir sua segurança. Um achado e tanto, não acha? Disse olhando para eles com entusiasmo, torcendo para que não se recusassem, e mudou a ênfase para o amigo. – Vamos, Hakim, não negue esse prazer a moça, essa cavalgada não será a mesma sem vocês.
- Acho que se eu estivesse acompanhada na sela eu conseguiria me sentir mais segura. – Admitiu ela com timidez, e perguntou: – Mas seria um incômodo para você, Hakim?
- Não, senhorita, terei prazer em ajudá-la. – Respondeu o assessor, exatamente como o cavalheiro que Miguel pressentiu que ele seria.
- Nesse caso, procurarei o cavalariço para ele preparar tudo, me encontrem no estábulo. – E saiu rapidamente, para não dar aos dois um pretexto para mudarem de ideia. Quando saíram da sala, Hakim estava um pouco ressabiado e cochichou ao amigo se o rapaz estava planejando algo, mas o Omar limitou-se a dizer, com uma cara um tanto inocente, que não tinha ideia.
Pouco tempo depois, os três se dirigiram ao estábulo, onde Miguel já se encontrava junto dos cavalos separados pelos funcionários, montado num dos cavalos. Omar foi para o que costumava montar, e para Hakim e Lâmia foi designada um cavalo mais manso, para acomodar os dois e também porque, embora a moça naquele dia estivesse de calça, mais adequada para montar que um vestido, a falta de prática poderia machucá-la caso o galope fosse muito forte.
Tomando todo o cuidado, o assessor montou primeiro e, estendendo-lhe a mão, ajudou-a se acomodar na sela junto com um cavalariço. Quando já estavam todos acomodados, Miguel e Omar, mais experientes, assumiram a dianteira e galoparam com velocidade, logo assumindo uma considerável distância. Eles, ao contrário, se viram forçados a assumir um ritmo mais lento, pois, embora Hakim, que jogara pólo na juventude, fosse um cavaleiro habilidoso, preferiu diminuir a velocidade até que Lâmia se acostumasse.
- Está se sentindo bem, senhorita? – Perguntou.
- Estou, Hakim, é só nervosismo. Confesso que sempre tenho receio de que o cavalo fique inseguro e me derrube. – Admitiu.
- Não se preocupe, senhorita, já senti que esse cavalo é manso. O que a senhorita precisa é relaxar e integrar-se ao cavalo, unindo-se a ele e um passando confiança para o outro. Quando vocês sentirem que são um só, o medo desaparecerá. Mas se ainda assim sente receio, confie em mim, eu não a deixarei cair.
- Você promete? – Suplicou.
- Prometo. – Respondeu com voz solene, e para tranquilizá-la passou as rédeas para ela e segurou seu quadril.
Atendendo ao pedido do companheiro, a jovem tentou relaxar, e entregou-se aos seus cuidados e às sensações da montaria. Com a confiança, veio a tranquilidade, e esta permitiu que desfrutasse do trotar e da agilidade do animal, animando seu espírito e permitindo que ele incrementasse um pouco a velocidade, a fim de sentir o vento em seu rosto de forma mais marcante e, principalmente, uma sensação de liberdade e de poder realizar coisas inusitadas que raramente experimentou, numa alegria que tomou conta de seu ser e chamou a atenção de Hakim.
Tirando um pouco o foco da montaria, ele contemplou-a por um instante e ficou encantado: sim, ela era uma jovem atraente e capacitada, mas aquela vivacidade repentina a tornava linda e, sobretudo, arrebatadora. Fazia muito tempo que não tinha em seus braços uma mulher tão cativante, e seus sentidos pareciam multiplicar o efeito de tudo que a integrava, fosse o seu sorriso, o frescor de sua pele e a fragrância suave emanada do seu cabelo, o que só o estimulou a estreitar o contato de suas mãos sobre a cintura dela. Ela parecia estimular sua virilidade, e isso começou a repercutir em Lâmia, que num determinado momento sentiu um arrepio ao se dar conta do quanto as mãos que a seguravam eram firmes e seguras, bem como da proximidade daquele físico rijo do seu corpo e do cheiro picante do seu perfume. Até aquela discreta barba por fazer lhe parecia sexy, será que estava apaixonada?
Seguindo a mesma trilha com que os amigos cavalgavam, retornaram ao estábulo depois de algum tempo e, quando desceram, agradeceram um ao outro. Em seguida, foram tomar um banho antes do jantar, onde mal conseguiam disfarçar o fascínio um com o outro, algo que agradou muito o anfitrião e o rapaz que amava. Animado, este disse a Omar que não fizesse nada por enquanto mas, quatro dias depois, aproveitando que a lua estava cheia, organizasse um luau no terraço.
No dia marcado, os quatro chegaram ao terraço, que era bastante amplo e já se encontrava arrumado, com almofadas, numa das quais estava encostado um violão, várias lamparinas acesas, além de toalhas estendidas sobre ele com petiscos e sucos, tudo isso sem ninguém para perturbar a privacidade deles. Pedindo para se acomodarem, o príncipe explicou que não poucas vezes participou de piqueniques e encontros semelhantes com amigos, inclusive Miguel e a família, na Inglaterra e em outros países em que transitava, e achou que naquela noite a lua estava tão bonita que merecia uma reunião menos formal. Todos o apoiaram, pois aquele ambiente bonito e caloroso era extremamente convidativo, e começaram a comer e conversar, exceto em que alguns momentos onde Miguel pegava o violão e, sob o pretexto de que luau sem música não era luau, cantava alguma música associada a lua, geralmente em inglês, para que todos entendessem. Entre algumas que escolheu, estavam "Blue Moon", "Moonlight serenade" e "Moon river".
Até que, dizendo que estava na hora de encerrar, pediu licença para cantar uma música brasileira que gostava muito, chamada "Lua Branca". Explicou-lhes que essa melodia havia sido composta há um século por uma grande compositora chamada Chiquinha Gonzaga, que tivera de batalhar muito para poder trabalhar e ser reconhecida como profissional e artista, e depois de receber uma letra de autor desconhecido tornou-se um clássico, sendo cantada até hoje por boêmios e namorados. Em seguida, traduziu a letra para o turco e começou a cantá-la:
Oh lua branca, de fulgores e de encanto
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo,
Vem tirar dos olhos meus o pranto
Ah vem matar essa paixão que anda comigo.
Ai por quem és, desce do céu oh lua branca,
Essa amargura do meu peito oh vem, arranca!
Dá-me o luar de tua compaixão,
Oh vem por Deus iluminar meu coração.
E quantas vezes lá no céu me aparecias
A brilhar em noite calma e constelada.
A tua luz então me surpreendia
Ajoelhado junto aos pés de minha amada.
E ela a chorar, a soluçar cheia de pejo
Vinha em seus lábios me ofertar um doce beijo.
Ela partiu, me abandonou assim
Oh Lua Branca por quem és tem dó de mim.
Aquela melodia bela e melancólica e a voz afinada do intérprete penetraram fundo nos presentes, e Miguel foi bastante aplaudido quando a concluiu. Inspirado, proferiu algumas palavras:
- Meus amigos, estejam certos que eu e Omar estamos extremamente gratos por vocês terem se disposto a nos ajudar, e independentemente de como essa história terminar estejam certos de que faremos tudo por vocês. E lembrem-se, o amor sempre vale a pena. – Depois disso, levantou-se e foi em direção à escada, sendo seguido pelo príncipe.
- Já vão se recolher? – Perguntou Hakim.
- Sim, estamos um pouco cansados. Mas se vocês quiserem ficar estejam à vontade, vocês sabem que aqui é seguro. – Disse Omar.
- Nesse caso, ficarei mais um pouco. – Disse a turismóloga, e Hakim não se opôs.
Assim que ficaram sozinhos, ele lhe disse com seriedade:
- Você é muito inteligente, senhorita Lâmia, creio que já deve ter percebido que nossos amigos estão bancando os cupidos conosco. Espero que você saiba que não tenho nada a ver com isso e, por favor, não se constranja comigo.
- Não se preocupe, Hakim, percebi sim, mas não fico constrangida. Até porque não me desagrada em absoluto a ideia. – Talvez porque o que sentia era muito forte, talvez pela mensagem da música, o fato é que estava cansada de fingir. Se Omar e Miguel estavam incentivando algo entre eles, é porque haviam percebido o interesse dela e certamente achavam que era recíproco, e não perderia essa oportunidade.
- Não lhe desagrada a ideia de acharem que um velho desinteressante estaria interessado na senhorita? – Perguntou com ar desconfiado.
- Velho? Eu não vejo nenhum velho aqui. Eu vejo um homem maduro, sim, mas inteligente, leal, de mente aberta e sensível às necessidades alheias. E que está na sua plenitude, como profissional e como pessoa. – E aproximou-se um pouco mais enquanto falava. – Mas e você, o que pensa de mim?
- Eu a admiro, acho que você é uma jovem muito bonita, preparada e sensível ao mesmo tempo. Encantadora, mas ficar ao seu lado talvez seja o que chamam de "dar um passo maior que minha perna". – Respondeu com uma expressão ligeiramente fechada.
- Por quê? – Ele não disse que não sentia nada por ela, e achou isso animador.
- Porque a senhorita é de uma família tradicional, destinada a um grande casamento, e eu sou o assessor do príncipe, filho de um oficial de carreira que chegou a general e uma governanta, fora o fato de que meus avós maternos eram o chefe da segurança do palácio e sua esposa inglesa. Nossos antepassados são de envergaduras diferentes, sem mencionar nossas diferenças de idade. Com certeza seu pai torceria o nariz para a ideia de ficarmos juntos.
- Acontece que eu não sou o meu pai, Hakim, sou uma mulher adulta que é dona da própria vida. Quanto à idade, quem sabe sobre o futuro, algumas pessoas envelhecem melhor que as outras, e você é uma delas. Não quero me casar por um arranjo político, quero me casar com um homem que me valorize, que me incentive a vencer os obstáculos em vez de evitá-los, como você fez quando cavalgávamos. Quero um homem cujo toque provoque uma faísca em mim, vai dizer que você não sente isso? – E nesse momento tocou levemente no rosto dele, fazendo-o soltar um pequeno gemido.
- Sim, eu sinto, como nunca pensei que sentiria depois de tantos anos sozinho. Mas eu já sofri muito ao perder alguém que amava, Lâmia, você garante que não vai me fazer sofrer? Sei que pareço forte, mas só eu sei o quanto um amor intenso pode ser doloroso quando acaba. – O olhar dele nunca demonstrou tanta intensidade, e aquilo tanto a atraiu quanto a comoveu.
- Não posso comandar os acontecimentos, Hakim, mas posso dizer que meus sentimentos são tão fortes quanto os seus. E que vou lutar por nós dois, assim como Miguel e Omar estão lutando por eles mesmos. Não se menospreze dizendo que você é só um assessor, sei que todos o respeitam e você é essencial tanto para o trabalho de Harum quanto de Omar, até acreditam que você será o primeiro-ministro quando ele for o sultão. – Disse enquanto percorria sua face com os dedos.
- Então que Alá me ajude, eu não consigo mais resistir a você. Sim, eu a amo, e me dou a você. – E estreitando-a em seus braços, beijou-a com intensidade. Longe de intimidada, ela adorou e retribuiu-lhe com o mesmo ardor.
Escondidos atrás de uma abertura que permitia visualizar a cena, Omar e Miguel sorriam cúmplices.
Mais um casal se formando, espero que tenham gostado.
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