Victor Não Abandona Sua Criatura, Diferente de Frankenstein - XIV

DÉCIMO QUARTO CAPÍTULO

"Por Adão e Eva, pela ciência à religião, de raízes não se consiste a minha criação. Sou um cadáver, moribundo, ambulante, perturbo ao existir. Minha paz não encontro, sozinho, sem conforto, no que devo insistir?".

— O Criador e a Criatura
By: magic_read_

A razão perturbou os meus pensamentos, despertou-me da inércia e ativou os meus instintos emocionais. Meu nariz escorria, uma forte coriza acompanhava a tosse, eu espirrava como quem não tivesse mais ar, e uma baixa febre defendia meu organismo: o resfriado detectado doía menos que os duelos internos, chamados de joviais sentimentos incoerentes. A perda de alguém não tão distante, o falecimento de Ágatha Lacerda, o mundo sem ela era estranho, no mínimo inconcebível.

Ontem retornei para meu lar antes da lua descer, num horário razoável, chuva mórbida, quase aniquilada, ela caía sob os seis pés, na agradável companhia de Rachel e Jungkook, Jungkook e Rachel, cujos únicos confiáveis. Após me entregarem em casa, eles prosseguiram, feito cão e gato, traçaram seus rumos, numa disputa plausível, fiéis às identidades, competindo a vaga de melhor pretendente.

Devido à infecção, hoje eu não compareci à aula, por coincidência, pagando a penitência pelo dia no qual entorpeci Jeon; a suspensão era a longo prazo, cumprida em dez dias não consecutivos, não sairia tão prejudicada pelas faltas anteriores.

Nesse tempo livre me entretinha com a TV, apurava os fatos sobre o escritor das cartas, deitada no sofá de casa, matutava até sobre o beijo consentido; eram turbilhões a serem processados. Por entre ondas passei tormentas, amar era equivalente a um fluxo inconstante, como nuvens passageiras, berrantes e tempestuosas, nutrir sentimento semelhante era perigoso.

Na beira daquele mar eu alimentei algo por Jeon, cuja praia na qual fui contra a nossa relação, numa diligência de disjunção, por outro lado, também último lugar na qual vi Ághata, ao menos, antes da lápide, há sete palmos abaixo da terra. Os tiros saíram pela culatra, incalculável demais para a nova Ayla.

Insuportável seria a vinda de mais missivas durante o meu recesso, eu não amamentaria desculpa alguma do Heitor ser o réu, resquícios de argumentos sobrariam caso eu fosse pega. Perna-Mole, Clarisse, Cassandra e Aguiar... respectivos escritores suspeitos segundo as atuais expectativas, a paralisação dos envios após o término é premonição de um forte indício, seja do meu chifre finalmente retribuído ou dos avisos incomuns duma certa ruiva.

Os meus castigos eram tão matinais quanto beber água, mesmo que sucessores do meu aniversário, os meus tutores não iriam abdicar da obrigação de me educar; e entrar lamacenta ao lar me garantiu graves punições, ainda que amenizadas por piedade parental.

Por conta disso, o papai faltou ao serviço hoje, ato pouco ocorrente no cotidiano, ele afirmou que teríamos uma decorosa conversa, a primeira depois da minha volta tardia de casa.

Victor me cobria de incertezas, Rachel ou Jonathan eram possíveis alvos, fiquei com ambos após o enterro da falecida mulher, e estes eram os suspeitos na visão do meu bom pai. Na noite passada, a feição carrancuda dele tomou posse na face velha, pois pegar a filha no flagra após depositar-lhe confiança não era lá adorável, todavia, uma mera decepção era tida nessa, algum ocorrido o incomodava.

Ferraz faltou hoje ao emprego o qual é encarregado, deixou de ser o caixa do mercado para cumprir sua função de pai, blindando-se com o autoritarismo e rebeldia, ditando as previsões como se fossem leis, por mais que ato insincero da verdadeira preocupação. Seus mandamentos feriam qualquer soldado, e o escrúpulo paterno era arma de fogo, atuava na defensiva, por vezes, ofendendo a própria base. Malditas orações, terrível gosto azedo das diretas mensagens.

Mais do que paredes de cômodos nos separavam, éramos duas feras furiosas que calavam o sentimentalismo e explodiam silenciosamente, quando ninguém nos avistava. Eram princípios furtivos, que funcionavam como fuga de uma briga familiar.

Era a porta trancada do meu quarto por um fio de ser estraçalhada, a tintura branca a qual perturbava minha mente conforme Victor gritava, pôsteres vigiavam a situação vergonhosa que aquilo se tornava. Deus, meninas também dão trabalho.

— Ayla, abra a porta deste quarto imediatamente.

— O que ganho cumprindo? Pelo que me lembre, você tem arrependimentos de me ter enquanto filha.

— Você terá mais castigos caso não obedeça à ordem.

— Eu não ligo, adicione as punições as quais deseja, apenas não te quero por perto.

— Tenha respeito com o seu pai.

— Respeito tenho, só não guardo amor.

— Tenha uma filha e depois resmungue! Caso ela passasse o dia fora e chegasse tarde da noite, sem te avisar, como você ficaria?

— Normal, pois sequer ela existiria se eu odiasse-a como você me odeia. Contente?

Eram só paredes, paredes...

Estou extremamente feliz, faltei ao trabalho para discutirmos temas severos, mas minha filha é uma covarde que não assume os próprios desacertos.

— Me perdoe, senhor perfeito, não compartilho da coragem da qual você teve ao assumir um filho — rebati, fazendo escárnio com o seu dever.

— Me desculpe, filha querida, não tenho tudo em mãos por conta de um parceiro sexual.

— Sinto dizer, terminei com ele antes da bronca. Irônico, não acha? — Apregoei, expressando emoções que normalmente ocultaria.

Um silêncio incômodo foi apresentado entre nós dois, a casa estava silenciosa, solitária, e para piorar, minha mãe não se fazia presente no instante, pagava as contas e resolvia as complicações financeiras. Victor parecia arrependido, queria poder voltar às palavras. Desde quando um pai tão rígido ficava tão quieto?

— Posso entrar no seu quarto? — Interpelou, mais suave.

— Não, você tentará dar conselhos — suspirei fundo, recaindo o corpo sobre a porta. — Transei com Heitor antes de saber da traição, e fiquei com Jungkook dias após o término de Aguiar. Não sou santa, não mereço piedade.

— Não te ofereço consolo, apenas ouvidos.

Apenas ouvidos... tem quem disponha disso atualmente? Mas aquele tom, aquela desgraçada sonoridade da voz dele...

— Beijei Jeon no meu aniversário, quando ele surgiu às escondidas no telhado, e descumpri uma promessa.

— Com quem? — Aludiu ao juramento.

— Prometi a Rachel que não teria proximidade com Jungkook, mas é difícil, parece que a cada minuto eu almejo... — fui interrompida.

— Beijá-lo mais? — Meu pai sugeriu. — É uma verdadeira merda sentir isso. Quando gostava da sua mãe, transei com uma garota perfeita da minha sala, sabe, para causar ciúmes na Sabrina. Durante o processo, descobri o quão espetacular esta era.

— E por que não ficou com aquela moça?

— A garota tornava-se interessante à medida que sua mãe reagia. É maluco, não? Mas o que me causava excitação era ter noção do quão ilícito aquilo era. Minha animação não partia dessa ficante, mas sim, da sua mãe irritada.

— Espero que não esteja inventando.

— Sujaria eu minha reputação à toa?

Destranquei a porta do quarto, fitando o homem cujo pai meu era. Sorri fraco, observando Victor arrumando a postura amolecida, o homem tentava parecer autoritário, no mínimo, apresentável para a filha.

— Não me surpreende que me conheça tão bem — cruzei os braços, admitindo que o conselho contado poderia me servir.

— Conheço a minha criatura tão bem quanto ela mesma.

— E você faltou ao trabalho por isso? Uma discussão de uma hora?

— Eu deveria trabalhar menos — deu de ombros.

— Você está estranho...

— Fiquei sabendo de certos contratempos familiares, você deveria confiar mais em mim nessas horas.

Ele deve ter sido noticiado sobre senhora Lacerda, pouco me atentei ao ocultar sobre a morte dela para tal.

Minhas bochechas foram puxadas ao alto, por mim mesma, num ato imperceptível, esconder o fato não me armazenaria felicidade alguma. Victor acenou com a nuca, orgulhoso das conquistas, descendo as escadas para ir a sala:

— Acompanhe-me, animalzinho, não quero me arrepender desta falta.

— Estou indo, papai.

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