O Prato Que Se Come Quente - V
QUINTO CAPÍTULO
"É tarde para ser doce, é egocêntrico para ter empatia, é doloroso para sentir amor. Rápido e passageiro, vingativo e cruel, o tempo é incontrolável ao entregar a identidade".
— Cedo.
By: magic_read_
O sol jazia na janela do meu quarto, nada diferente de quase todas as manhãs, meus pais já estavam despertados, tomando o reforçado café e verificando o que lhes foi enviado: contas, jornais, folhetos e uma carta. A última citada não tinha eles como destinatário, e sim, a mim.
Embolada nos lençóis da cama criava coragem para me levantar, refletindo o quão horrenda era a rotina escolar do estudante brasileiro.
— Alguém lhe escreveu, Ayla — minha mãe declarou, alto o suficiente para eu escutar.
Quem escreve a mão num ano desses? Para mim ainda, bastasse me chamar por outros meios...
Abandonei minha preguiça no colchão, me arrumando apressadamente devido a curiosidade, desci as escadas buscando pela carta, me deparando com o casal tomando o café na copa. Caminhei até a minha mãe, recebendo a missiva empacotada, Victor permaneceu assustado, aguçado em todos os quesitos relacionados ao papel.
— Quem foi o azarado da vez? — Meu pai aludiu à carta.
— Não tem remetente, Victor — Sabrina assegurou, desfocando a atenção dele e mirando-a para o que eu carregava em mãos — Pode ter sido o namorado dela com mais um presente.
O envelope não tinha nada além do meu primeiro nome, característica suspeita demais para ser de Heitor, e ainda instigada com o escritor anônimo, decidi por desfecho abri-lo para descobrir sobre.
28 de Junho de 1995
O que você mais rebuça pode se tornar crível aos olhos da sociedade, basta unicamente das provas concretas as quais guardo. Eu te admiro, porquanto, será rápida o suficiente para saber quem eu sou?
L.
Cartas desse gênero não são nada românticas, principalmente quando confinam um segredo avassalador, com veemência poderia julgar ser outros, todavia, não haveria quem culpar senão ele. Quem mais guardaria admiração por mim?
Isto é obra daquele estúpido apaixonado, e se meus pais suspeitassem da ameaça?
A hora de partir bateu na minha porta, tinha de ir à escola para não me atrasar, dessa maneira, abandonei meu pai em seu discurso, correndo até a maçaneta, com mochila nas costas me despedi e passei a correr. Aquela intimidação era metafórica, me preenchia de cólera por conta das consequências, e sendo ou não corajoso, acertarei as dívidas com o escritor.
Entrei bravíssima no colégio, procurando o indivíduo inepto de razão, fúria cerrando as mãos, passos fundos os quais afundavam o chão: ali estava ele, Jeon Jungkook. Beirei-me de lado na clavícula do rapaz, encostada nos armários, braços cruzados e face carrancuda, contudo, quando ele notou, somente desviou o olhar e passou rente a mim.
— Tenha um bom dia, você está precisando — bateu levemente em meus ombros.
Segurei com firmeza o pulso dele para que este não partisse, jogando-o contra a estante para silenciá-lo. Àquela brincadeira passou dos limites.
— Cuidado — vociferei, socando o metal atrás do seu pescoço.
— O que foi? Não transou com Heitor?
— Eu estou te transmitindo o recado, cara.
— Pobre coitada, tem as pernas tão abertas que não suporta abstinência de sexo.
Eu queria, como eu queria, não transar, mas acabar com a raça dele.
— Oh, sinto muito, deve ser difícil ser um virgem desgraçado que me am-...
Fui interrompida.
Jeon pressionou a minha garganta, rápido, rude, cruel e eficiente, causando a batida da minha cabeça no armário estudantil, revertendo a situação. O alarme tocou, sinalizou o início da primeira aula, e a mão do moreno persistiu no local, sufocando-me; conseguia respirar, contudo, era difícil, tentava me debater, porém, sua força era imbatível.
— Jungkook? Você está louco?! A Ayla tem namorado! — Clarisse invadiu, entrando em desespero com o tumulto.
Alguns alunos passavam no corredor, ardilosos com cena ali vista, entretanto, pouco me importava com tal fato, não ligava para a plateia, meus olhos não fugiram dele, o ser o qual urrava pelo sofrimento com os grandes chifres:
— Eu te odeio, mais do que qualquer coisa, eu te detesto, todos podem lhe amar, mas sempre, sempre eu vou te execrar, nada nesse mundo vai me fazer gostar de você, nada além de escárnio, pois só o meu desprezo por ti ultrapassa a racionalidade. — Pressionou ainda mais o meu pescoço. — Passará o resto da sua vida sozinha, sobrevivendo de resquícios após todos descobrirem aquilo; ficará de joelhos perante mim após notar que não exerce poder sobre ninguém, e que somente eu, Jeon Jungkook, poderei controlá-la.
Engoli em seco, sem resposta para dar, olhos de diabo concentrados na vítima do sufoco, destruíram minha retaguarda e quase me fariam abaixar a cabeça.
Heitor cutucou Jeon e, pelo desvio de atenção, Aguiar conseguiu empurrá-lo para longe de mim, sem dificuldade, todavia, o moreno não parou muito distante; meu namorado segurou a gola dele, prontificado do que faria. Jungkook estava caminhando para o suicídio popular, físico e moral, ele corria altos riscos.
Contudo, Jungkook tem provas sobre Rachel.
— Há quanto tempo, Aguiar! — O moreno devolveu o grosseiro ato, segurando na gola da camisa do amigo.
— O que ele estava falando para você, Ayla? — Suspirou fundo e pesado, almejando acertar as contas com o seu melhor amigo. Quando travou seu olhar momentâneo sobre mim, me encarregou de tal responsabilidade.
— Ele...
Fui cortada.
— Não, não, não, não, não, Heitor — Jeon trouxe o Aguiar para mais perto, fazendo-o encará-lo, repuxando um sorriso sarcástico. — Mentirosas não têm espaço de fala.
— Ela não é mentirosa.
— Ah, não é? — Queixou-se, um tanto duvidoso — Ayla, descreva para ele a sua recente experiência: quando você ficou de joelhos e quase bateu um boquete em mim.
Resta sanidade nesse garoto?
— Boquete? — Aguiar espantou-se.
— Ela tentou me seduzir beijando até onde não devia, e tenho muitas evidências, amigão.
O absorvente com a escrita.
— Até mesmo da cor do batom dela.
Eu marquei alguma vestimenta com o meu batom?
— Tenho também alguns amigos como testemunhas nos quais viram ela sair da cabine. Completo para você?
— Cabine? Ela fez tudo isso no banheiro feminino?
Falei para Heitor que usaria o toalete, lá fui apenas para pegar o absorvente.
— Muito pior, ela foi audaciosa, cometeu contra mim no banheiro masculino.
Fodeu.
— Ayla... — Heitor ficou decepcionado.
Jungkook, agora afirmo, sou eu quem te odeia.
— Eu...
— Ayla, por favor, diga-me que é uma pegadinha tramada em parceria — Aguiar suplicou usando palavras.
— Heitor, eu... — mordi os lábios, notando a multidão de pessoas ao redor.
Caso eu enrole, os professores irão perceber: virar o jogo nunca foi tão fácil, irei acabar com a reputação de Jeon Jungkook.
Aguardei a vermelhidão em meus olhos tocarem, complementando-os com algo molhado e falsificado, maquiavélico demais para ser denotado como emoção, e ao romper com o silêncio, pronunciei frases convictas e manipuladoras.
— E-ele me enforcou... po-porque não co-continuei a agradá-lo — iniciei um ciclo fictício e dramático —, fa-falei que era errado, mas desde sempre e-ele me ameaça...
— O que?
— E-ele me obrigou a ir até a cabine e... — forcei a minha garganta ao interromper o discurso com um soluço lamentável —, Jungkook me incriminou porque odeia o nosso namoro! Ele me sujou por causa... por causa que ele gosta de você, Heitor!
Cochichos e murmúrios espalharam-se pelo corredor, fofocas confusas, teorias plausíveis, todas audíveis aos ouvidos atentos. Eu não podia sorrir, quem dirá rir, embora imersa a essa vontade. O jogo virou, Jeon Jungkook. Todos estavam surpresos, inclusive o próprio criminoso, que ao ouvir a mentira não poupou a risada vagarosa.
Não gosto de vê-lo assim, é torturante...
— Você vai mesmo acreditar nela?
— Porquê não acreditaria?
Jungkook desviou as íris, guiando-as ao meu semblante.
— Cuidado Ayla, estou roubando o seu namorado.
Idiota.
— Mas não faz diferença, você tem quem possa substituir — remeteu a minha namorada.
Direcionou as palmas nos glúteos de Aguiar, e naquele exato momento, o mundo caiu, até os olhos de quem esperava estagnaram-se e permanecerem abertos.
Ele... ele está doido?
— Tão gostoso, tão popular, tão grande, todavia, não se equivale ao lindo boquete que você, Ayla Ferraz, conceberia a mim naquele instante; nada se compararia aquilo, sabe por que? Porque eu te a-...
Quase...
Heitor atingiu um soco no rosto do acastanhado, sendo a bochecha deste vítima dum golpe tão fortificado que sangue escorreu nos recantos da sua testa e nariz. Apesar da intriga, o pescoço do moreno manteve-se inclinado, transportando um sorriso maroto e safado, com os fios acastanhados cobrindo olhos e orelhas.
Ele está implorando por mais briga, por acaso é um maníaco?
Mesmo aterrorizada, pude ver Jeon reerguer a compostura, e, como um bêbado já dopado, cambaleou diversos passos no corredor, ainda segurando a gola de Heitor.
— Você perdeu a melhor parte, Aguiar — alargou a elevação dos lábios, conseguindo desprender-se de Heitor.
— Deixe-a em paz.
Jeon ergueu os braços num ato de paz, começando a andar, de costas para o mundo, de costas para si mesmo, tão lento e confuso, esquecendo o que construiu, destruindo a sua reputação. Ele parecia perdido; ele parecia distante.
— Já não preciso mais dela, não agora — suas pupilas desviaram-se para mim. — Pedirei desculpas na próxima aula, Ayla.
Respirei fundo, observando Heitor, enfim direcionando-me até a sala: não queria mais saber de rivalidade; de Jeon, quem dirá de Aguiar.
Todos da sala pensavam alto sobre a disputa, ajustavam-se nas carteiras e causavam tumultos e debates, todavia, frequentemente desviavam olhares tortos para mim e meu agressor. A aula de sociologia iniciou, eu não era ótima na matéria, nunca fiz questão de ser, apenas escutei o professor e foquei, estudando o que era dado. Somente hoje, porque estou muito saturada.
Karl Marx, Weber e Durkheim, os três grandes que o garoto havia citado no banquete.
Uma pessoa bateu na porta, abrindo-a sem questão de ser bem-vindo, o diretor Alfredo não queria ser acolhido, pelo contrário, gostava de ser o receptor dos alunos, isso estava escrito nos seus olhos azuis. A barba cinza malfeita deixava-o tenebroso, como o advogado do diabo encarnado para dar as devidas penitências.
Quando aquele olhar direcionou-se a mim, quase tudo ganhou um novo sentido: a confusão, a bagunça, as desculpas da próxima aula.
Pensar além do óbvio seria a causa da minha dor de cabeça, a criatividade poderia ferver, contudo, eu não tinha ideias para escapar do futuro castigo. Não será só por hoje, quem dirá até amanhã, acredito no potencial do diretor, e na sua capacidade de punir.
— Ayla Ferraz e Jeon Jungkook, acompanhem-me até a minha sala — cabal e seco, trouxe suas ideias em poucas palavras, olhar de falcão e postura de leão, foi rígido até na sua retirada.
Uma troca mútua dividindo um infinito ódio, ambas as íris sobrecarregam a raiva expressada pelo fixo ressentimento, porém, uma delas satirizava, tirava total proveito do previsto, a outra, era corrompida pelo egocentrismo, irritabilidade incontável pela penitência.
Pousei meu traseiro no assento quando no cômodo cheguei, evitando contato com o acastanhado, o diretor encostou a entrada, sentando-se no banco e avaliando o problema. Repetir as sentenças ditas não garantia a minha salvação.
— Diga-me as suas pretensões ao entrar no banheiro masculino, senhorita Ferraz.
Cruzou os braços em cima da cômoda ante ao que dizia, cabelos grisalhos quase inexistentes lambidos num topete, com os óculos metálicos caídos sob o enorme nariz.
— Senhor diretor, como antes havia pronunciado, somente segui Jungkook a fim de obter o que ele me devia. Não duvide das minhas francas intenções.
Depositei minha perna acima da coxa, julgadora das próximas desculpas retorquidas vindas de Jeon.
— Devo chamar seu pai para resolução do confronto, senhorita Ayla?
— Não há motivos para tamanha algazarra, a história relatada por esta criatura está distorcida. Lembre-se, ele me agrediu, com o intuito de me afogar.
— Para uma tentativa de sexo oral no banheiro, suficiente seria uma suspensão para você, Ayla.
— Não foi isso que eu quis dizer — me passei por intimidada, com o viés de persuadi-lo, soube há tempos que a humildade é capaz de comover humanos. — Sermos privados da educação física será eficaz para a nossa correção, não é, Jungkook?
Ele negou, insatisfeito com a proposta feita, parecia sádico e masoquista, embora a seriedade estivesse refletida em face.
— A troca das suspensões para a mão de obra me parece justa, contudo, a diminuição da minha penalidade é tida por algum motivo, senhor diretor?
— Quem me dera, um dos mais brilhantes alunos questionando uma pergunta dessas...
O quinquagésimo levou a mão até a sua testa suada.
Aluno brilhante, título do Jungkook desde pequeno.
O garoto manteve-se calado, aguardando solenemente a resposta do que havia perguntado.
— Não irei postergar a severa penalidade, porém, as verbas para o acampamento e baile já estão reservadas, além do mais, não é a única denúncia de invasão no toalete.
— E essa oportunidade é reservada para mim? — Jeon perguntou.
— Reservarei até certo ponto, Jeon Jungkook, é a primeira vez que a sua presença aqui me causa decepção: enforcar uma garota por mais que em defesa própria é gravíssimo. Não passará em branco, ligarei para os seus pais.
Defesa própria? Ergui uma sobrancelha, vendo-os de soslaio, desgostosa perante a situação. Como se ele fosse um santo!
— Seis aulas de educação física serão abolidas para ambos, ao todo, resultando três semanais; porquanto, você tomará uma ocorrência em virtude do acontecimento, Jungkook.
O diretor preencheu o papel, entregando-o para o dono e, logo adiante, indicou o dedo para a porta.
— Combinado... — o jovem sorriu fraco, tombando sua cabeça, semelhante a um anjo.
O garoto levantou-se da cadeira, retirando-se da sala calmamente, e assim eu faria, repercutindo aqueles movimentos durante o percurso, contudo, interrompida fui pelo diretor. Jungkook despediu-se, vitorioso pela minha derrota.
— Aguarde aqui, senhorita Ferraz, sua punição será tão grave quanto a de Jeon. Sexo em lugares públicos é crime.
Sexo em lugares públicos?
Voltei a sentar-me na cadeira, cruzando braços e pernas enquanto escutava os sermões, prontificada do recebimento de duas semanas a mais do castigo. Não, não foi isso, foi pior do que eu imaginava, sequer esperava a expulsão dum evento desses. Devido a tentativa de sexo em público contra Jungkook, além de ambos os pais atentarem-se do problema, serei a única de fora das comemorações finais antes da graduação.
— Você estará proibida de ir ao acampamento e ao baile de primavera, receberá uma suspensão de dez dias letivos, terá quatro aulas a mais suspensas de educação física que a vítima, e será obrigada a manter distanciamento de Jeon Jungkook. — Assinou o papel veementemente, e embora secura destacada no seu coração, sentia a empatia dele pelo meu pai. — Guardo pena de Victor Ferraz, suas atitudes impulsivas não podem ser justificadas. A interpretação dos pais de Jungkook poderá ser avassaladora, um boletim de ocorrência pode ser prestado. Caso Jeon tivesse mais embasamento na história, sua ação acarretaria numa expulsão escolar.
Por culpa dele...
— Senhorita Ayla? — A voz do superior por algum motivo ressoou reflexiva após a chamada.
— A-ah, combinado! — Confirmei, breve e sucinta, recolhendo a suspensão.
Andar pelos corredores e não sentir o público ao seu favor era um desaforo, assim me sentia ao consolidar os passos do vazio pátio até a agitada sala de aula, sozinha, sem ninguém para me consolar. Não, eu já sabia, as provocações não iriam parar, pelo contrário, começavam agora, no ápice da explosão.
Jungkook me aguardou antes de adentrar na classe, correndo o grande risco de ser pego, e somente quando ao lado dele fiquei, pronunciou palavras concretas e sinceras.
— Heitor amaria saber o porquê de Ayla Ferraz não estar presente nas aulas de educação física.
Desaprovei o moreno e as suas sedutoras turbulências, era clara sua carência de consciência do tipo de punição que eu enfrentava, e não estava disposta a lidar com mais um mar de consequências, não, não porque estive a interagir com a vítima. Abri a porta da classe e sem mais delongas fui até a minha carteira, desprezar a presença do ilustre recentemente não era difícil.
Ou era o que eu pensava.
O dia continuou monótono e exaustivo, sem cores ou vibrações para alternarem o meu humor: Heitor tentava, e falhava; Clarisse comentava, eu ignorava. Tudo estava nas mãos do mais egocêntrico ser, mal conseguia articular solução para me desvincular da suspensão.
Minha mente vagou nos ensinamentos e não obteve grandes reflexões: era aula de matemática e incógnitas eram aplicadas. Sentir o afago de Rachel era o que me fazia falta, aquelas lembranças aniquilavam qualquer autocontrole...
Horário próximo, relógio preguiçoso, deixava todos ansiosos de segundo a segundo: o alarme tão amado alertava sobre a aula, fim da matemática, começo da educação física.
Suspirei fundo, ainda sentada na carteira, jogava a cabeça para trás, tentando relaxar; a sala esvaziou-se, depressa os alunos evaporaram: Aguiar, meu namorado, foi jogar futebol com os colegas, e Jungkook, babaca, sozinha me largou.
Organizei o material na bolsa, interrompida por alguém que na porta bateu, amparando-se na batente quando meu olhar ferveu. Ele viu a mochila nas minhas costas, notou a expressão carrancuda na qual eu transportava.
O moreno expôs, num ato involuntário, a imprevisibilidade da cena, e pela vulnerabilidade de pensamentos, não sabia se provocava ou me questionava sobre os acontecimentos. Pressionei-me a ficar calada, não aceitando responder qual fosse a pergunta.
— Não podemos ficar na classe, por mais que suspensos da aula.
Fingi não escutá-lo, avançando para a saída, lugar onde ele habitua-se e não se retirava.
— Ayla, larga de frescura, o diretor foi benevolente, nos deu somente esses castigos.
Ignorei-o novamente, amassando o papel da suspensão nos dedos. Muito benevolente.
— O.k., fugindo do assunto, o que é isto na sua palma?
Parei de caminhar, com as respostas presas na ponta da língua:
— Com licença.
— Ayla, eu estou falando com você.
— Com licença — vociferei ao repetir, esgotando o último pingo de paciência.
— Dê-me este papel agora, caso contrário, todos saberão da Rachel — cominou.
Depositou as palmas em meus ombros delicadamente, numa discreta tentativa quase furtou a suspensão da minha mão. Levantei-a, desferindo um forte tapa contra seu rosto, e não surpreso com o que recebeu, o maior abandonou tudo, contendo os meus pulsos contra parede, não tão agressivo, entretanto, eficaz para me impedir.
— Fale.
— Deixe-me em paz.
— Fale — insistiu.
Mordi os lábios, suportando a vontade de arrebentá-lo: cólera, raiva, repulsa, seja o que for, tentei debater-me contra àquela força, fracassando inúmeras vezes e não conseguindo escapar.
— Estou tentando compreender, por favor — ele admitiu.
— Está tentando compreender um erro que você cometeu? Por sua culpa, estou passando por maus bocados.
Ele ficou visivelmente confuso e revoltado:
— Se você me compreendesse, não cometeria metade das suas falhas, Ayla.
— Se você não fosse um iludido, talvez eu teria o mínimo de compaixão.
Palavras doloridas desferidas como balas em seu peito, palavras amargas nas quais ousaram escapar sem o meu pleno consentimento, causaram-lhe feridas e personificaram o seu medo.
— Cale a boca — ordenou.
— Acha justo me beijar sem permissão? Ameaçar-me com uma merda de uma foto?!
Enxerguei fortes expressões de rancor ao vê-lo retrucar.
— Acha justo retribuir todos os meus beijos e descrevê-los como abuso? Sujar o meu nome porque eu gosto de você?
— Sempre foi sujo por causa das suas atitudes, Jeon Jungkook, e o problema não é esse, é que você, garotinho indefeso, afunda a reputação de quem te conhece, de todos que se relacionam contigo. É por esse motivo que ninguém quer tê-lo como amigo.
— Oh, pobre coitada, sua reputação está destruída porque sente pena de mim? Ah, ela sofre demais sendo uma grande vagabunda — o moreno choramingou, sarcástico.
— Uma grande vagabunda na qual você, virgenzinho necessitado, pensa enquanto se masturba.
— Necessidade passa quem comete adultério. E outra, pessoas virgens não carregam metade dos chifres como os seus, garota.
— Adultério? — Ri, no ápice do escárnio —, não era eu quem almejava a namorada do melhor amigo. — Fixei minhas pupilas nele, aborrecida —, nossos pecados são idôneos, Jeon, eu traí e você me cobiçou, desejou uma mulher comprometida na sua cama.
— A mulher dos próximos, você quis dizer — corrigiu. — Sinto muito, nem para trair esta serve, corrompeu-se ao preferir uma outra qualquer.
— Antes namorar a mulher mais imunda do mundo do que te namorar.
— A mais imunda do mundo te odeia, Rachel já não te ama há tempos.
— Pouco interessa, você nunca será um pretendente meu, nem que seja o último na terra. Não te amo nem para classificá-lo como amigo.
Um silêncio constrangedor tomou conta de ambas as bocas, ele ficou ferido, eu sabia disso, mas tal não demonstrava, devido ao comportamento educado.
— Não te reconheço como amiga desde que me conheço como gente, e não consigo controlar esse desejo, então acho melhor nunca... trocarmos palavras.
Um soldado rendido na batalha, aceitando a derrota como nunca havia aceitado, depositava a arma ao lado, prendendo a sua língua para nunca mais machucar alguém, para nunca mais declarar palavras amorosas.
Minha garganta queria proferir frases de baixo calão, e entre elas, desabar tudo o que tivemos no nosso passado: lágrimas de lembrança, lágrimas de promessa, lágrimas de amizade às quais nunca mais voltaram, tempos passados que cruzamos os dedos, tempos passados os quais compartilhamos segredos, tudo, tudo fora corrompido pelo ego da indomável paixão.
Empurrei-o para liberar espaço, sendo culpada pelas íris rudimentares que queimavam o meu orgulho. Fuga, único substantivo que não fora em vão dentre todo esse tempo, sequer encarei-o antes de tal ato cometer. Sem despedida e como uma presidiária, tomei a iniciativa de ter a liberdade, apressei meus passos, tão seca e idiota, abandonando-o em meio a solidão.
Ar livre, ar puro, corria pelo extenso corredor e me perdia pela escola, a finalidade era não ser encontrada.
— Aonde você está indo? — Uma voz feminina ecoou no lugar.
Clarisse como um fantasma surgiu, num suspiro cálido e acolhedor, ouvidos antenados para escutar-me e julgar-me feito um juiz, interrompendo o meu trajeto de busca da felicidade. Ela estava atrás de mim, observando externamente sem ideia do que ocorria.
— Dê-me licença, por favor — supliquei.
Apertei a alça da bolsa, furiosa, não pensando em sequer vislumbrá-la. Não obtive respeito mútuo, eu estava exposta aos sinais de tristeza: meu nariz fungava e as lágrimas escorriam, a postura me entregava e burra ela não seria. Queria expressar o que guardava dentro de mim, mas dentro de mim não estava para poder expressar-me.
— Você está chorando? — Ficou estupefata.
Acercou-me para verificar o que acontecia comigo, enxergando o acúmulo de sentimentos. O silêncio cravou inúmeras incógnitas na mente da garota, perturbou-a, e com isso, fortificou-a de perguntar a mais miserável pergunta.
— Tem a ver com a Rachel? — Clarisse interrogou, encostando a mão no meu ombro.
Droga, não imaginei que ela estivesse tão próximo.
Desvencilhei os passos antes tímidos para poder ultrapassá-la, retirando os dedos dos meus ombros para ter privacidade, todavia, sua entonação alta soou no corredor, disposta a chamar a atenção de quem não devia.
— Você quer saber o que aconteceu, não quer? Pergunte ao Jeon — rebati.
Caminhei apressadamente, olhos no piso frio durante o percurso, trombando em quem menos esperava.
— Sou eu quem quero saber, vi que há um clima entre vocês dois.
Heitor do esconderijo saiu, pairando seu olhar rígido e sério sobre mim, face rancorosa recheada de orgulho, como quem dominasse a situação e não precisasse de esforço. Ele estava em minha frente, e Clarisse, nas minhas costas, ambos cercando-me dada a curiosidade.
— Aguiar... — mordi a bochecha interna, disfarçando tamanho espanto.
— Conte-me, Ayla, o que acabou de acontecer entre vocês dois?
Ele viu.
— Nada ocorreu.
— Qual é o segredo que vocês guardam?
O quanto ele ouviu? Ele sabe sobre a Rachel?
— Nada de importante — engoli em seco, recuando.
Ele resmungou.
— Quem é essa tal de Rachel? O quão relacionada ela está com o Jungkook?
— Ela não está interligada nisso.
— Clarisse, diga-me quem é essa tal de Rachel — fitou a garota, desdenhando a minha resposta.
— Rachel é a na-... — a ruiva foi interrompida.
— Uma amiga minha! — Era uma voz masculina, fortificada e pronta para o emaranhado piorar.
— Ah, que ótimo, só faltava você — Aguiar virou-se para o garoto —, João Pedro.
Senti uma palma rodeando o meu braço, e quando encarei o responsável, não deixei de observá-lo. Pirulito era um garoto de pele morena, nariz empinado, cabelo cacheado, maxilares bem formados, trajava sempre óculos redondos, de fraco grau, sendo estudioso e membro do time de futebol. O seu verdadeiro nome era João, João Pedro.
O garoto era tão homofóbico quanto, todavia, mediava entre o talvez e a zombaria.
— Que por diabos de motivo você faz aqui? — Heitor atacou-o verbalmente.
— Perderia eu um teatro desses? — Pirulito brincou. — Na realidade, só acredito ser injusto o motivo da discussão. Ela apenas brigou com o Jungkook, comum numa amizade de quatorze anos.
— Os rumores alegavam a presença de uma garota, a Rachel — Heitor desconfiou.
— Os rumores já afirmaram que Ayla tem aids por sua causa, e ela tem? — João Pedro rebateu.
— A informação sobre a mulher veio de uma fonte confiável — Heitor complementou.
— Heitor, não me entenda mal, mas por sua falta de fé em mim, tenho o direito de dar um tempo em nós. Vamos, Pirulito, o meu namorado prefere acreditar em outras pessoas.
Nunca avistei João tão sério quanto agora, e quando ele puxou-me, não fiz picuinha, graças a sua humildade não lidei com a fúria de Heitor. Estávamos eufóricos, eu ansiosa e o garoto instigado, ambos necessitando da abordagem daquele tópico.
Pedro me afastou da popularidade, guiando-me até a quadra coberta, onde a aula de educação física ocorria com tranquilidade, sem muitas interferências e exercícios brutos. Sentamos nas arquibancadas e tratamos de conversar.
— Aonde você quer chegar traindo Aguiar com uma garota? Está louca?
Ele sabe de tudo.
— Eu te vi naquele beco do Paraíso de Verão, não tente mentir.
Todo mundo me viu naquela porra?
— Aquele beco é um lugar conservador — respondi na mais vasta solenidade.
— É um lugar bem gay.
Quase ri ao ouvir aquilo. Exato, aquele lugar era tão gay, tão aconchegante, mas...
— Como você sabe disso? — Assustei-me, entregando a verdade por despercebida.
— Me diga você como sabe disso.
— Não me diga que você é... — fui interrompida.
— Sou.
— É?!
— Sou!
— Eu também sou! — Correspondi o entusiasmo, talvez parte de mim não se sentiria mais solitária. — Bissexual, e você?
— Homossexual.
Fiquei por um tempo sem reagir.
— Eu... eu estou chocada, pensei que somente eu e a Ana Clara fossemos... apoiadoras do movimento.
— Pois é, não são.
— Algum companheiro?
— Miguel, recém-formado em administração, ele é estrangeiro, veio do México!
— Oh, desconheço este chico, perdão.
— E você? É aquela garota a sua verdadeira pretendente?
— Ah, sim, ela é a Rachel, está no último ano da residência de ginecologia, tem vida própria, é responsável — relatei.
— E o Heitor?
— É... — suspirei fundo, sem explicações.
— Quando Jeon se envolveu no conflito?
— Ele é hétero e guarda admiração por mim, por isso não divulgou sobre, mesmo que informado acidentalmente.
— Você mima Jungkook para ele não reportar a traição?
— Não. Quer dizer. Talvez, em tese, esse era o plano.
— Rachel não guarda ciúmes dele?
— Ela desde o início teve medo.
— Que maluco...! — riu levemente. — E os seus pais? Sabem disso?
— Não, sequer imaginam. E os seus?
— Todos pensam que sou hétero.
— Você faz muitas piadas homofóbicas.
— Um belo disfarce perto desses repugnantes, não acha? — Levantou uma sobrancelha, e assim confirmei.
Estávamos conversando e rindo feito dois babacas, embora tamanho escândalo e escárnio, tudo era silenciado pelo medo da descoberta, o zeloso cuidado era primordial. Quando avistamos Perna-Mole invadindo a nossa área cortamos o papo, de tal pressentimento atentando-se quando ele passou a nos avisar.
— Seus pais vieram lhe buscar, Ayla, e estão bastante iracundos; Heitor e Clarisse estão tentando acalmá-los.
Troquei um olhar desesperado com o Pirulito; como se não bastasse pagar pelos erros de Jungkook, por Clarisse terei a sexualidade violada e por Aguiar a traição revelada.
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