Um garoto invade minha casa
É ESTRANHO DE PENSAR EM CERTAS coisas. Como por exemplo, o que teria acontecido se eu não tivesse matado aula de inglês na quinta série e a professora tivesse aparecido com ponto extra para todo mundo que fizesse uma lição bobinha de gramática. Ou se eu não tivesse caído da casa da árvore do meu primo e quebrado o braço com dez anos de idade. É. Muitas coisas aconteceram no quinto ano...
Porém, era ainda mais difícil de imagainar o que teria acontecido se eu não estivesse no mercado na última noite de sexta de agosto, mesmo dia em que tudo começou a acontecer na minha vida.
Estava com meus pais fazendo a compra do mês. Não estava me sentindo bem naquele dia. Era tipo aquele sentimento incômodo no fundo do peito de que algo ruim iria acontecer. E eu ignorei completamente aquele aviso quando minha mãe disse que eu poderia escolher o sabor do cereal desta vez, porque minha irmã mais nova estava de castigo.
Quando nós estavamos a caminho do supermercado, eu ignorei completamente as provocações da minha irmãzinha banguela. Jieun sabia ser bastante irritante. Aquele sorriso de janelinha era de dar arrepio em qualquer monstro por ai.
Minha cabeça estava colada na janela, quando vi um vulto passar pelo carro. Era um vulto acinzentado, como se alguém muito grande tivesse passado correndo. Desgrudei a cabeça da janela, assustado, mas, quando olhei para minha família dentro do carro, ninguém parecia ter visto aquilo além de mim.
Meus pais continuaram dirigindo e conversando sobre o trabalho, enquanto minha irmã balançava as perninhas curtas, mas compridas para a idade dela, para frente e para trás. Aquela sensação no meu peito ficou mais forte. Algo dizia para avisar meus pais que era melhor voltarmos ou ir a outro mercado. Tinham vários mercados em Burndale. Mas tinha algo ainda maior me dizendo que, independente de onde eu fosse, eu estaria ferrado. E eu certamente estaria mesmo.
Ao chegarmos ao mercado, eu sentia como se alguém estivesse me seguindo para todos os lados. De repente, as pessoas estavam agindo de forma estranha e era como se eu fosse um espectador ali. Como se eu estivesse me observando também e aquela sensação era horrível.
Me lembro de estar na seção de cereais, quando minha mãe me segurou pelos ombros e me perguntou se eu estava bem. Respondi que sim.
Naquela mesma hora, por cima do ombro da minha mãe, vi o mesmo vulto passando no corredor, que cruzava o nosso, como em uma esquina. Eu quase gritei, no entanto, pessoas fizeram isso antes de mim.
As luzes começaram a piscar, saindo faíscas, desligando uma por uma. As sirenes do alarme de incêndio começaram a apitar e começou a chover pelas válvulas de emergência que ficavam no teto. Os clientes começaram a correr desesperados, pensando ser um incêndio de verdade, deixando os carrinhos de compra em qualquer canto. O supermercado nunca pareceu tão lotado quando naquele dia, com pessoas correndo alvoroçadas para lá e para cá.
Não pensei demais antes de segurar na mão da minha mãe e da minha irmã e sair correndo para a saída. A sensação de estar sendo seguido me alcançou até eu estar fora do mercado e continuou até o caminho para casa, quando meus pais decidiram ir no dia seguinte fazer as compras para que se recuperassem do susto.
Ao dormir naquela noite, eu tive um pesadelo. Eu estava em uma floresta escura, com arvores altas e grama rateira. Foi como se eu tivesse surgido lá de repente. Era tão real que eu podia sentir a textura do chão rochoso sob meus pés e a textura áspera dos galhos nas minhas mãos. Então passei a ouvir um barulho que se parecia com um rugido de algum animal. Eu comecei a correr para dentro da mata, porque não conseguia achar a saída e sequer pensei direito quando ouvi a criatura se aproximando.
Eu corri até conseguir sentir o chão tremer. Quando olhei para trás, havia um coisa gigante atrás de mim. A princípio, pensei ser uma pessoa. Mas tinha uma cauda ossuda. E eu nunca tinha visto alguém com um rabo de verdade.
Depois que percebi que era inútil tentar fugir, fiz a coisa mais idiota que poderia fazer. Eu gritei:
- Vai embora! - Berrei, sentindo a garganta arder e minhas calças prestes a molharem. - Vá embora!
Provavelmente monstros não falam inglês e, ainda que falassem, não me obedeceriam.
Eu abaixei e peguei uma pedra e um galho fino. Era tudo o que eu tinha para me defender. Comecei a rezar. Mas não consegui me lembrar de nenhuma oração, então só fiquei repetindo: "Ah, meu Deus! Ah, meu Deus! Porra, ai meu Deus! Perdão, senhor". Eu estava assustada para caramba.
O monstro uivou e eu tenho certeza de que era um tipo de risada na língua dele. Ele abaixou o corpo fedorento até ficar perto de mim. Dei passos para trás e só então percebi que a criatura não tinha olhos. Era um rosto acinzentado e enrugado, como o de um peixe. Mas tinha dentes pontudos e duas línguas musculosas.
Fiquei cara a cara com aquela coisa, poucos centímetros nos separando. Minhas costas estavam rentes a uma árvore. As línguas estavam brincando ao lado do meu pescoço, como se estivessem entrando em um acordo sobre qual pedaço elas engoliriam primeiro.
"A cabeça, por favor", pensei. Seria menos doloroso se comece minha cabeça primeiro.
Por instinto, virei o rosto, sentindo a bochecha arranhar no tronco da árvore. Meu rosto se contorceu quando a língua da direita passou no meu pescoço. Era nojento. E melado. A baba parecia petróleo. Era quente e fedia a ovo podre.
Foi quando ela tentou me dar mais uma lambida, que eu abaixei depressa e rodiei a árvore. O monstro se assustou com minha movimentação, mas não demorou para que viesse atrás de mim.
Continuei correndo pela floresta, ouvindo o guincho da fera ossuda às minhas costas. Quando achei que teria um tempo para pensar após despistá-lo, quebrei um galho de uma árvore e peguei algumas pedras para me munir.
Procurei por bolsos na minha roupa, mas percebi que estava de pijama.
Segundos mais tarde, a Coisa Feia apareceu, aparentando estar bem irritada ao perder sua presa. Ela estava com as línguas guardadas dentro da boca, o que me deixou aliviado.
Me escondi atrás de uma rocha. Meu plano era esperar que ele desse bobeira e meter o pau na cabeça dele. Mas ele parecia bem focado em tentar fazer purê dos meus miolos, me procurando por todos os cantos.
Me abaixei mais, e segurei o galho mais forte, como se fosse um taco de basball, pronto para acertar sua cabeça.
A presença daquele monstro me deixava com a mesma sensação ruim de mais cedo, no mercado, só que mais forte. E ficava pior sempre que ele se aproximava.
Quando a dor no meu peito se tornou forte, senti o cheiro podre que a boca dele emanava. Ao olhar para cima, dei de cara com a criatura.
Levei um susto, e me afastei, me empurrando para trás com as pernas. Ainda estava com meu taco de baseball, mas precisava que ele se aproximasse mais para que eu pudesse lhe acertar em cheio.
Ele guinchou, e mostrou as garras afiadas. Suas duas línguas penduram para fora e seus dentes ficaram bem expostos para mim. Segurei o galho o mais forte que pude e apertei os olhos.
E então: BAM! Eu tinha acertado a fera bem no meio da testa. Ela se afastou, com dor e eu aproveitei para me levantar e sair correndo, mas não sem antes me abaixar e tacar uma das pedras que havia escolhido. Peguei mais duas para levar comigo, por precaução.
Quando ele voltou a me alcançar, eu peguei uma das pedras e joguei em si, o acertando perto da boca, onde abriu um corte, por onde começou a pingar sangue. Aproveitei que ele ainda estava tonto e mirei outra vez, mas acabei errando.
Ele estava mais irritado. De repente, era só eu, ele e um tronco fino de árvore.
Meu coração estava batendo aceleradamente no meu peito. Uma voz baixinha começou a susussurar no fundo da minha mente. Era tão baixo que eu sequer entendia.
A Coisa Feia deu dois passos para compensar a nossa distância e eu ergui o tronco, ela recuou, mas se issou para frente e abriu a boca, despejando as duas línguas para fora, como uma cobra.
Ameacei me aproximar também e ela ginchou. Ele fazia um barulho parecido com os dinossauros dos filmes da aula de ciências.
"Direita" disse a voizinha. "Direita!"
Eu fiquei confuso. Fui para a minha direita, e o monstro me acompanhou.
"Direita", voltou a repetir. Desse vez, fui para a esquerda, pensando em fazer o contrário. A criatura avançou mais uma vez para a direita.
"Esquerda", então eu fui para a direita. O monstro se içou para a minha esquerda.
A voz me avisa o que ele vai fazer, pensei.
Continuei a seguir seus comandos. Todos eles estavam corretos. Era como se eu pudesse prever os movimentos antes que eles acontecessem.
Ao chegar perto o suficiente, a voz começou a passar instruções rápidas demais. "Línguas acima, da direita para a esquerda", "garras embaixo", "cauda nos pés". Tudo virou uma bagunça, mas era rápido em executar o contrário do que ela falava. Quando ela tentou me agarrar com uma das línguas, eu me afastei e rodeei seu corpo. Bati o galho em sua nuca. Ela se virou depressa, então eu bati em si devolta.
"Garras, dos dois lados" eu me abaixei, e as duas mãos tentaram me agarrar pela cintura. Passei o galho em suas pernas, em uma rasteira. Mas suas pernas ossudas eram fortes e sequer se mexeram.
Suas garras engancharam em minha camisa e me jogou para cima. Caí de bruços em uma chão irregular, com gravetos e pedras me espetando. Os ossinhos da minha cintura ralaram e eu me contorci de agonia.
Fui rápido em me levantar. Meu corpo inteiro doía e sentia algo quente escorrer na parte de trás do meu pescoço.
Quando a fera se aproximou de mim num bote, somente fechei os olhos e encolhi os ombros, completamente vulnerável a qualquer ataque.
Desejei que ela parasse e sumisse dali, me deixando em paz.
Continuei com os olhos fechados e as mão em frente ao rosto, me preparando para ter qualquer parte do corpo arrancada por seus dentes ou unhas afiadas, mas nada aconteceu durante os próximos intermináveis sete segundos.
Curioso, abri os olhos e, devagar, endireitei minha postura, observando ao redor. Minhas mãos abaixaram mais lentamente ainda. Elas estavam tremendo tanto que era difícil controlá-las. Coloquei minha perna esquerda, que tinha levantado em instinto, no chão, e as folhas estalaram.
Ele tinha sumido. Realmente tinha sumido.
E foi assim que eu acordei, no meio da madrugada de quinta.
Me sentei depressa na cama e olhei ao redor, assustado e encontrei a janela aberta. Chamei pelos meus pais e eles vieram correndo. Ao olhar para o travesseiro, encontrei um filete de sangue manchando a fronha. Eu tinha um corte na parte de trás do pescoço.
Depois daquele dia, eu passei a me sentir diferente. Era como se aquele monstro estivesse em todos os lugares e eu sempre estava com medo de encontrá-lo de novo. Evitava ao máximo ficar sozinho e não dormia durante a noite porque, sempre que fechava meus olhos, podia vê-lo. Senti-lo. Lá no fundo da minha mente. Ele ainda estava lá.
Eu estava diferente. Sentia que estava diferente. Andava sempre com medo, como se a qualquer momento fosse ver aquela sombra outra vez, ou encontrar aquele monstro me esperando em alguma esquina. Deixei de me meter em confusão na escola porque pensei que sentiria pavor em ficar sozinho na detenção.
Meus pais também perceberam que eu estava mudado, e me perguntaram o que estava acontecendo. Eu fui sincero, porque precisava contar para alguém o que estava sentindo. Mas, depois que vi olhar preocupado deles sobre mim no final daquela conversa que tivemos sentados na mesa grande da cozinha, eu me arrependi profundamente.
Passei a me consultar com uma psicóloga. Ela era legal. Doutora Jane. Talvez uma das pessoas mais legais que já conheci, no entanto, também sabia que ela era paga para conversar e ser legal comigo. Ainda assim, era legal acreditar que ela era assim porque queria ser minha amiga de verdade.
Eu contava tudo para ela. Meus pais me incentivaram a não esconder nada e dizer tudo o que estava acontecendo porque ela entenderia e me ajudaria sem me julgar.
Algumas consultas depois, recebi o diagnóstico de estresse pós traumático, devido ao trauma que eu havia sofrido naquele dia do supermercado e que, na verdade, eu não tinha visto aqueles vultos, que era só a minha mente me pregando peças. E eu fiquei realmente aliviado ao saber que aquilo era só coisa da minha cabeça e que nenhum monstro iria vir atrás de mim durante a noite.
Essa fantasia durou cerca de três meses. Tirando o fato de eu estar muito mais relaxado em relação aos meus pesadelos, eu ainda continuava me sentindo estranho.
Os pesadelos estavam se tornando mais frequentes e mais assustadores também, e eu sempre acordava com aquela coisa ruim no peito. Aquele mal pressentimento que às vezes até pesava no estômago.
Me levantei e fui até o quarto dos meus pais, depois de acordar assustado. Eles estavam deixando a porta aberta porque eu sempre tinha esses sonhos horriveis e ia me deitar com eles, ainda que já tivesse quase dezesseis anos.
Quando adentrei o quarto, fui direto até o lado direito, que era o que minha mãe sempre dormia e toquei seu braço, que estava por cima das cobertas. E, quando eu o fiz, pensei que estivesse passando por mais uma crise. Uma crise diferente de todas as outras.
Eu tinha sido teletransportado para um lugar completamente diferente, mas conhecido por mim. Era a casa da minha avó, em Busan, na Coréia. Tinha ido poucas vezes para lá, no entanto, eu me lembrava bem do local. Uma casa de um único andar, grama verdinha no jardim e canteiros de flores encostados na parede da casa. Uma cerca branquinha circundava o terreno. Era uma casinha de bonecas.
Minha mãe estava parada em frente a casa, olhando para ela, mas sem entrar. Então, meu pai apareceu ao seu lado, de repente, e minha avó saiu de dentro da casa, como se já soubesse que os dois estavam ali, sem sequer ter olhado pela janela como sempre fazia.
Eu me aproximei dos dois e fiz uma pergunta baixinha para meu pai, porque sabia que, se eu estivesse mesmo passando por um surto, minha mãe teria um ataque.
- Como viemos parar aqui?
Meu pai, por outro lado, me olhou com um sorriso lindo nos lábios, o que eu achei estranho. Ele odiava a minha avó, sua sogra, e sempre forçava um sorriso estranho nos lábios. Mas aquele... aquele era o melhor sorriso que ele já tinha dado estando em frente a cerquinha de madeira branca da sra. Park.
- Você bateu a cabeça, filho? Viemos de carro.
Meu mundo girou e eu não entendi nada. Eu tinha realmente batido a cabeça? Minha memória mais recente antes dessa loucura era ter tido um pesadelo e ido até o quarto dos meus pais e então sido teletranportado para cá.
De repente, minha irmã estava saindo de dentro da casa, junto com a minha avó. Olhei para minha mãe, procurando qualquer sinal de que ela estava tão confusa quanto eu, mas ela parecia bem feliz. Bem emocionada, na verdade. Acho que ela estava com saudade da vovó.
Assim que a sra. Park abriu a cerquinha baixinha, minha mãe passou por ela e a abraçou. No mesmo instante, eu senti um baque forte, como se algo tivesse me puxado para a realidade novamente. Tudo onde eu estava ficou escuro e então, quando eu abri meus olhos, eu ainda estava com a mão encostada no braço descoberto da minha mãe, que estava acordando.
Eu tirei minha mão de si num ímpeto, assustado. As coisas começaram a ligar na minha mente, mas eu ainda achava impossível aquilo ter acontecido. Dei alguns passos para trás, com medo. Minha mãe ligou o abajur e se sentou na cama. Quando eu olhei para a janela, ela estava aberta e a sensação de estar sendo vigiado voltou a me assombrar outra vez.
Não me lembro ao certo o que aconteceu depois, mas sei que foi a partir de então, que eu comecei a desconfiar que, ou estava realmente ficando louco, ou tinha algo de muito pior acontecendo por trás disso tudo e que eu iria descobrir o que era.
***
Depois daquele dia, eu entrei de fininho no quarto dos meus pais durante as noites, apenas para tirar a dúvida que pairava sobre minha cabeça feito uma nuvem de fumaça.
Eu sabia que aquilo não era possível. Céus, eu sabia! Mas, eu não queria acreditar que estava ficando louco. Portanto, preferia acreditar que eu podia realmente entrar no sonho das pessoas tocando nelas.
As primeiras noites foram ótimas. Me senti incrível em poder fazer aquilo. Mas então, eu comecei a achar que estava realmente piorando. Tipo, ninguém consegue entrar no sonho de alguém! Isso era muita maluquice.
Então eu contei para meus pais o que estava acontecendo. Disse toda a verdade e eles chegaram a conclusão, junto com a psicóloga, que eu deveria ser internado em uma clínica psiquiátrica até que eu melhorasse de verdade.
O pior disso tudo era que, eu realmente achava que deveria ser internado. Porque eu realmente achava que meus neurônios estavam derretendo e virando e virando mingau.
E, assim como a maioria das coisas que me aconteceram depois, aquela não foi a primeira vez que achei que estivesse louco.
Duas semanas após aquela consulta assustadora que me fez ficar com dor de barriga pelo resto do dia, a véspera de ser internado na clínica chegou.
Ela não era longe de casa. Era perto o suficiente para eu voltar correndo se algo desse errado. Mas ainda era muito mais distante do que eu considerava distante para se viver longe dos meus pais e meus amigos. Ainda que eu pudesse vê-los na quinta, dia de visita, eu ainda passaria seis dias sem olhá-los. Sabia que minha mãe estava devastada, mas também sabia que ela não demonstraria isso, não enquanto eu estivesse aqui. Talvez ela chorasse no carro, assim que me deixasse lá e fosse embora.
De qualquer forma, eu ainda tinha uma noite antes de tudo mudar. Meus amigos vieram direto do colégio para minha casa. Iríamos passar a noite jogando, conversando e comendo. Seria a última vez que eu faria aquilo naquele ano, eu pensei.
Eles eram legais. Três ao total. Roberts, Kitty e Michael. Eram doidos, mas leais. Kitty tinha cabelos coloridos que batiam no meio das costas estreitas. Várias mechas finas em rosa, roxo, amarelo, azul e verde.
Nós dois tínhamos uma paixão enorme em tingir os fios. Trocávamos a cor todo semestre. Desta vez, eu estava com um ruivo alaranjado. Iria pintar de preto naquela noite, meu tom natural, porque eu provavelmente não conseguiria cuidar bem de um cabelo tingido em um hospital.
Assim que entrei em casa, meus pais já tinham chegado, o que eu estranhei. Eles sempre chegavam depois das oito. Mas, mesmo que eles tenham dado a desculpa de que, coincidentemente tinham saído mais cedo do trabalho juntos, eu sabia que eles queriam passar o máximo de tempo restante comigo. E foi por isso também que meus amigos não dormiram na minha casa naquela noite. Em partes porque eles perceberam, e em partes porque meu pai praticamente os expulsou de lá de uma forma gentil.
- Acho que a mãe de vocês gostaria de passar uma noite de sexta em família - ele disse, se sentando no meio da gente no sofá.
- Eu não tenho mãe - Kitty respondeu, tirando o pirulito de cereja da boca num estalo. - Mas meu pai talvez quisesse que eu estivesse em casa agora - murmurou, pausando o vídeo game, o que arrancou um lamúrio de Roberts. - Ei, vocês ainda tem leite?
Meu pai suspirou, derrotado.
- Será que vocês podem me deixar ter um último momento com meu filho?
Todo mundo protestou, inclusive eu. Não queria ter que lidar com aquilo. Não queira ter que ter uma conversa onde o foco fosse minha saúde mental abalada por um episódio traumático. Simplesmente não queria agir como se não estivesse tudo bem.
Assim que eles foram embora - Kitty com uma garrafa de leite de amêndoa e mais um monte de pirulitos que eu nunca chuparia até o dia seguinte -, meus pais me chamaram para conversar na mesa da cozinha.
A mesa não era tão grande, mas ela parecia extensa demais quando íamos conversar algo sério sobre ela.
Nós nunca a usávamos. Geralmente comíamos no balcão ou na sala, em frente a TV. Basicamente, a mesa da cozinha era tipo um tribunal. Só se tratavam assuntos onde alguém era culpado ou onde as coisas eram complicadas demais para serem ditas assistindo a um episódio de America's Got Talent.
Me lembro de sentar todo enrigecido de frente para a minha mãe e meu pai. Coloquei minhas mãos na mesa. Por algum motivo, eu sentia como se estivesse encrencado. Embora soubesse que meus pais vinham tentado não me dar broncas desde que descobriram que eu tinha grandes chances de surtar em meio a uma briga. Eles tinham medo que eu me sentisse muito pior por estar sendo repreendido - "Tadinho! Já basta as sessões de tarapia!" - , então me deixavam fazer o que eu quisesse. Ou quase tudo. Como por exemplo, comer sobremesa antes da janta.
Meu pai tentou aliviar o clima, dando uma risadinha sem graça. Mas, eu franzi o cenho quando percebi que ele tinha um envelope nas mãos e deixou em cima da mesa, perto de mim.
- Estava no correio. É para você - ele disse, tranquilo, como se ser um adolescente em pleno século 21 e receber cartas fosse comum.
Era um envelope vermelho encamursado. O papel era firme e grosso, mas delicado ao mesmo tempo. Tinha um circulo dourando com um brasão em relevo sobre uma das abas do envelope, impedindo que ele abrisse. Parecia-se com um convite de casamento. Fiquei encarando o embrulhe a minha frente, mas não o toquei. Ergui a cabeça para encará-los.
- Para mim? - Questionei, com estranheza. - Quem me mandaria uma carta? É da clínica?
Minha mãe deu de ombros.
- Não acho que a clínica enviaria uma carta para você, querido.
Espalmei as mãos no granito gelado da mesa, antes de encostar na carta.
Quando eu a movimentei contra luz, me espantei ao ver Órgons Academy escrito em letra cursiva dentro do brasão dourado, em um fino relevo. Era como se estivesse ali de forma escondida.
Virei o papel, vendo meu nome escrito na parte debaixo. Era pequeno, mas muito bem escrito. Como se alguém tivesse usado uma caneta de pena e tinta dourada para escrever meu nome ali. Procurei pelo endereço de onde tinha saído aquilo, mas não tinha nada. Só o meu nome.
Eu iria abrir, porém, minha mãe me interrompeu e só quando olhei em seus olhos, percebi o quanto ela estava imapciente.
- Querido, será que podíamos conversar primeiro? - Ela perguntou, como se qualquer palavra ou tom errado fosse me fazer explodir.
- Mãe... - comecei, como se dissesse: não, não podemos. - Eu vou ficar bem, não tem com que se preocupar.
- Você vai para uma clínica psiquiatrica, Jimin. Não tem como fingir que tudo está bem quando não está! - Minha mãe dasabou. Ela começou a chorar de repente. Acho que ela estava segurando desde que a psicóloga disse sobre minha internação.
Meu pai esticou a mão e segurou a dela, por cima da mesa. Eu me senti mal por ter fingido por todo este tempo que estava tudo bem.
- Calma, mamãe - meu pai sussurrou.
- Como vou ficar calma? Será que você não percebe que tem algo acontecendo e que a gente não conversou até agora?
- Exato. A gente nunca falou sobre isso - desabafei, sentindo um nó na garganta. - Por que vocês querem falar sobre isso justo agora?
Minha mãe estava soluçando. Eu tinha a visto chorar poucas vezes. Acho que umas quatro, desde que nasci. E era uma sensação horrível. Ainda mais por saber que o motivo era eu.
- Por que nós precisamos falar sobre isso.
- Não - eu intervi. - Não precisamos, não. Vocês só querem falar sobre isso agora porque finalmente caiu a ficha que eu vou mesmo embora. Amanhã.
- Jimin, não fale assim com a sua mãe - meu pai repreendeu, tranquilo mas sério. Meu pai era infinitamente mais tranquilo que a minha mãe. E bem mais molenga também.
- Desculpe - disse, voltando a espalmar as mãos na mesa. Eu tendia a argumentar com as mãos quando ficava nervoso. - Mas é a verdade. Eu tenho um problema - bati as costas da mão no granito. - A clínica é para onde pessoas com problemas iguais ao meu vão. Eu vou ficar bem e vou voltar para casa. Vou terminar a escola, ir para a faculdade, me formar, ter um bom emprego, uma esposa, filhos, netos e depois vou morrer engasgado com um osso de galinha.
Meu pai me olhou cansado e esfregou as costas da minha mãe, que apoiou os cotovelos na mesa e cobriu o rosto com as mãos. Minha mãe odiava chorar, ainda mais na nossa frente. Ela dizia que aquilo era coisa do papai.
- Mãe... - chamei e ela retirou as mãos do rosto e me olhou com os olhos pequenos vermelhos. Minha mãe era coreana, meu pai, não. Mas eu puxei a maioria dos traços da minha mãe, exceto pela altura e biótipo. Me estiquei na mesa para pegar suas mãos. - Eu vou ficar bem. Prometo.
Minha mãe era esguia e alta. Meu pai baixinho e gordinho. Eu estava no meio dos dois. Era maior que meu pai, mas de jeito nenhum ficaria maior que minha mãe. Não era magro e esbelto tipo ela, mas tinha as gordurinhas charmosas do meu pai.
A sra. Park assentiu, e espremeu os lábios, como se estivesse esparramando o batom. Acho que ela tinha medo de eu nunca mais ser como era.
Eu não era o tipo de filho que os pais pudessem se gabar. Não tinha muito sobre o que eles pudessem ter orgulho. Tipo, eles diziam que tinham orgulho por eu ser eu, e só. Mas não podiam olhar para minhas notas na escola, ou para meu desempenho das atividades extracurriculares e se gabarem para outros pais como os outros faziam. Eu talvez devesse me empenhar em aprender coreano com a minha mãe. Sequer sabia muito mais do que me apresentar em coreano. Minha avó achava que eu era uma perca de tempo, sabia disso. Mas mesmo assim, eu era o neto favorito.
- Eu sei que vai. Você é o meu filho - ela disse, por fim.
Me levantei e contornei a mesa para lhe dar um abraço, que logo virou um abraço de quatro. Minha irmã estava na escada da sala, espiando. Ela sempre espiava. Nós teríamos brigado em qualquer outro momento, mas, naquela hora em especial, eu senti que deveria apenas aproveitar o abraço deles, porque eu não os teria sempre ao meu lado dali para frente. Não até que eu supostamente melhorasse, pelo menos.
Depois de todo aquele drama, eu subi correndo para o meu quarto, com o envelope vermelho nas mãos. Me sentei na minha escrivaninha e liguei a luz que ficava ali. Passei o envelope por ela, apenas para ler mais uma vez Órgons Academy no relevo do brasão.
Uma escola me oferecendo bolsa justo agora? pensei, Seria muita maldade.
Deixando as suposições de lado, me concentei em abrir logo o envelope.
Enfiei a mão lá dentro, sentindo a textura do papel.
Quando o puxei, dei de cara com um papel de carta amarelado, como se tivesse saído de algum correio de 1920. Ou como se ele tivesse atravessado um longo percurso até chegar na minha casa. Um percurso com guerras, dilúvios, incêndios e fins de mundos.
Era quase difícil de entender com clareza o que estava sendo dito com aquela caligrafia artística, que minha professora nunca conseguiu ensinar para gente.
Senhor Park.
Estivemos lhe observando durante esses dois meses e é com imensa honra que lhe fazemos um convite de caráter não optativo sobre vir estudar e morar em nossa academia. Um de nossos estudantes mais bem capacitados estará a sua espera esta madrugada. Esteja pronto antes da meia noite.
Temos respostas para suas perguntas.
Atenciosamente.
Sra. Millburn. Diretora da Órgons Academy.
Fiquei mais um tempo olhando para o papel em minha mão, e li mais algumas vezes, com os olhos arregalados. Deixei a carta sobre a mesa quando minhas mãos começaram a tremer. Me levantei e passei a mão nos cabelos, depois no rosto. Senti meu rosto ficando quente e minhas mãos geladas, acompanhando aquele frio incômodo na barriga de quando ficava nervoso.
Olhei mais uma vez para a carta, parada sobre a escrivaninha, pela brecha que abri com os dedos.
O quão maluco aquilo estava sendo?
Minha primeira reação foi achar que eu estava tendo um surto. E, assim como a doutora tinha me ensinado, eu me deitei sozinho na minha cama e me concentei na minha respiração.
Quando me senti calmo novamente, voltei a minha escrivaninha e peguei a carta, na esperança que o que eu tivesse lido antes fosse só obra da minha mente. Mas, estava tudo lá, escrito da mesma forma que eu me lembrava de ter lido à vinte minutos atrás.
Cogitei ir ao quarto dos meus pais mostrar aquilo, mas eu não queria mais preocupá-los. Eu iria para a clínica na manhã seguinte. Não era como se eu fosse ficar incurávelmente maluco depois de ler aquela carta.
Meu coração ficou acelerado pela noite inteira. Aquilo era real, ou era só alguém querendo me pregar uma peça? Tinha quase certeza que era uma brincadeira dos meus amigos. Quase.
Meu estômago continuou gelado. Não consegui dormir. Esperei até meia noite, imaginando que algo aconteceria. Ninguém apareceu.
Eu devia ter cochilado no processo. Sequer havia trocado de roupa depois que cheguei da escola. Mas cordei meia hora depois, com um barulho na janela. Pensei que fossem os galhos da árvore do lado de fora, ou qualquer coisa que pudesse fazer um som quando em contato com uma janela.
Estava encolhido sobre as cobertas, abraçando meu travesseiro. Eu não teria sequer me mexido, se outro barulho não tivesse vindo do mesmo lugar.
Sempre dormia com ela aberta, mas, depois que comecei a ter aqueles pesadelos estranhos e sentir que estava sempre sendo perseguido, passei a trancá-las. Meus pais, com medo que eu tivesse um surto e me jogasse por ela, instalaram uma tela de segurança. Parecia um cativeiro.
Estava meio lento quando me virei para o outro lado, ainda abraçando com o travesseiro. Estava tudo escuro, exceto pelo brilho da lua cheia lá em cima.
Minha visão ainda estava turva e borrada quando vi a silhueta de um garoto pendurado na minha janela. Eu pisquei diversas vezes. Depois me sentei.
Pensei que estivesse que estivesse sonhando. Não sentia que estava sendo observado, não da forma como sentia antes, pelo menos. O que era um alívio. E seria um alívio ainda maior se não tivesse um garoto pendurado na minha janela.
- Ei - ele sussurrou baixinho, enfiando a mão por dentro da tela em forma de losangos, e bateu no vidro.
Senti uma onda de espanto, finalmente me lembrando da carta. Aquele era o estudante mais bem capacitado que a carta falava? Meu estômago afundou.
Me sentei na cama, e fui rápido em ligar o abajur. Levantei, tropeçando nos meus próprios pés até chegar à janela e abri-la.
Ele estava pendurado na tela, como se fosse o homem aranha. Me perguntei como ele tinha subido ali, mas minha boca não conseguiu formular nada. Não quando ele tirou um alicate do bolso da calça de linho preta e começou a cortar os arames.
- O que está fazendo? - Sussurrei, mas eu queria gritar.
O garoto não me respondeu, mas continuou tentando cortar os arames, até abrir um buraco no centro, por onde ele se espremeu para passar. Ele tinha cabelos castanhos e rosto fino. Usava um terno estilo colegial com um paletó vermelho. Senti o sangue fugir do meu rosto quando vi o mesmo brasão do envelope no tecido, com Órgons Academy escrito de forma glamorousa, fazendo uma onda.
Dei um passo para trás e me virei de costas, para organizar os pensamentos. Mas fui tocado nos ombros e virado para si novamente.
- Kim Taehyung - ele disse, de repente, se curvando para mim de forma cordial. - A sra. Millburn me mandou lhe levar em segurança.
Sra. Millburn...
As coisas ao meu redor ficaram embaçadas e contorcidas. Taehyung se tornou distante, e minha visão ficou toda cheia de pontinhos pretos. Minha bochecha direita ardeu.
***
Oizão!!
Como vc está? Já comeu ou bebeu água hoje?
Se você receber um envelope desses em casa... Eu sinto pena de você.
Bom, espero que tenha gostado da att. Não se esqueça de deixar sua estrelinha e seu comentário, é muito importante para mim💜
Bom restinho de sábado e início de semana pra todo mundo hehe.
Beijoss, até a próxima.
Tchauuuu!!!
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