Capítulo 15 - Paralelo
"Nikola Tesla estava convencido de que tudo aquilo não era uma simples visão e muito menos um sonho de Saulo, no entanto, preferiu mudar o rumo da conversa.
— Por que não consegue se equilibrar?
— Não sei. Sinto que estou dando saltos numa rua cheia de buracos.
Nesse instante, a atenção de ambos se voltou à janela fechada, graças às batidas no vidro. Ali, a pomba branca movimentava suas asas brancas durante as rápidas bicadas, como se estivesse desesperada para entrar no laboratório.
— Não se preocupe, logo ela irá embora. — Com a mão no bolso, Nikola passou a encarar o buraco iluminado. — Posso lhe fazer outra pergunta?
— Pode fazer três, seis, nove trilhões, se quiser!
Tesla riu; conversar com aquele menino estava sendo bem agradável.
— Como... Como sou visto no seu futuro?
Saulo não tinha muita coisa para falar da parte da população, até porque, aquele inventor não recebera o reconhecimento que merecia. Muitos nem o conheciam, tampouco sabiam de suas contribuições para o mundo.
Após limpar a garganta, segurando-se melhor nas grades, virou-se para ficar de frente a um Tesla de semblante ansioso.
— Égua, por onde eu começo? — resmungou e, por mais que tentou, o outro não conseguiu entender a primeira palavra dita em português. — Uhm... Na Sérvia, o seu rosto ilustra a nota de cem dinares. Maior legal, né? Já em Nova York, tem uma placa de rua com seu nome. Quer mais?
Chocado, no bom sentido, aquele homem só pôde assentir com a cabeça. Curiosamente, já havia se questionado sobre sua imagem no futuro. Afinal, era tratado como louco e imprudente até pelos próprios colegas de profissão; os mesmos que se pudessem, não pensariam duas vezes antes de roubar suas ideias. Ele sentia que quanto mais se esforçava em fazer seu melhor para ajudar o mundo e facilitar a vida das pessoas, mais esse esforço era desvalorizado.
— Algumas de suas previsões já existem e são indispensáveis no meu tempo, como o WiFi, que é uma rede sem fio, e o celular, a tal da tecnologia de bolso, como você nomeou. Ah!... Está vendo o automóvel? — Indicou com o dedo. — É um carro elétrico. Agora vou te deixar adivinhar o que aquele T significa. Dica: é uma homenagem ao gênio que iluminou o mundo.
Em silêncio, o excêntrico sérvio andou à máquina negra, agachando-se diante do para-choque onde, sem ao menos se permitir piscar, mirou o emblema com a marca da empresa. E, em meio à ausência da fala, contornou com íris atentas a letra T em vermelho, deixando escorrer do canto dos olhos em resultado, uma gota morna feito os raios faiscando da bobina.
— Ele é barato? Pessoas pobres conseguem comprar? — Secou a lágrima.
Saulo se viu na obrigação de mentir."
-
Relaxado graças às horas bem dormidas sob o ar quente do aquecedor, espreguiçou junto aos pés preguiçosos, arrastando-se pelo corredor e coçando em paralelo, os pelos já maiores no rosto. Por outro lado, o risquinho no cabelo definitivamente havia desaparecido com o tempo. Contudo, suas pernas estacaram em frente ao antigo quarto de Tiana. Mirou a madeira escura, desviando os olhos ao botão na maçaneta enquanto os frames das gravações corriam em sua mente. "Eu devia pegar aquele pen drive e esfregar na cara da Luana quem de verdade foi o pai dela!"
— Eu não vou pedir de novo pra você ficar longe desse quarto!
O salto decorrente do susto causado por aquele tom rude, fez o jovem olhar para trás imediatamente. Ali, a um passo fora da academia, Fabrício se encontrava trajando somente uma calça de algodão e tênis. Cabelos úmidos grudados na testa avermelhada, assim como todo o peitoral e abdômen carregando sutis pelos grisalhos, deram uma imagem mais juvenil e despojada do policial.
— Égua... eu só estava passando!
Fabrício secou o rosto com a toalha pendurada no ombro conforme assistia Saulo lhe dar as costas e prosseguir ao quarto de hóspedes.
Longe dos olhos humanos, a pomba branca pousou no peitoril externo da vasta janela, espiando através do vidro, o interior da silenciosa cozinha. Penas com um ilusório efeito acesso devido aos intensos raios de sol, tornavam-se ainda mais claras, contrastando com a paisagem verde cercada pelas montanhas distantes e pequenas casas das redondezas.
— ⚡ —
Entre os goles no líquido escuro recém passado, rejeitou a mesa ao puxar uma cadeira até o balcão perante à janela, de onde passou a apreciar a bela vista, como sempre fazia quando se encontrava angustiado. Antes de iniciar seus exercícios mais cedo, Fabrício fora à venda — precisava abastecer a despensa e respirar ar puro —, trazendo consigo, um bonito bolo de mandioca. Não que ele fosse fã de bolo durante a manhã, mas aquele em especial estava com uma aparência super atrativa.
Bloqueou a tela do celular após reler o aviso em conjunto do peito agoniado que seguia o mesmo ritmo acelerado de sua respiração; suspirou. "Maldito!", a ameaça de Geraldo a Saulo via mensagem de texto, havia surtido efeito.
Com a ajuda dos dedos levando os pedaços do bolo úmido aos lábios, a massa doce esfarelava e lhe derretia na língua, açucarando o céu de uma boca torcida em preocupação. Fios por estarem úmidos do banho, acabaram repartindo o topete ao meio, criando sem querer um penteado mais descontraído. Já fazia um tempo desde que cortara os cabelos pela última vez.
Não demorou para Saulo também surgir na cozinha; tinha fome e o cheiro do café não estava nada mal. Limpou a garganta, propositalmente alto para chamar a atenção do homem distraído. O qual se virou para ele, apoiando um dos braços no encosto da cadeira.
— Que foi?
— Está de folga ou com medo de eu entrar naquele quarto? — questionou, soando baixo. O agasalho de lã e os chinelos usados pelo delegado, o deixaram no mínimo, curioso. Em consecutivo, apanhou uma caneca do gancho sob a prateleira, tão logo virando o bule e preenchendo a cozinha com o som do café quente completando a peça de ferro.
Uma linha prazerosa de vapor invadiu suas narinas.
— Nenhum dos dois. Vou entrar mais tarde. — Retornou os olhos à janela fixa. — Desculpa se pareci grosso àquela hora; só lembrei que salvei a sua vida e até agora nem um obrigado recebi.
Saulo riu com a caneca na boca, deixando respingar algumas gotas de café no ar. "Que velho rabugento!" Preferiu se manter de pé, enquanto apoiava a lombar na base rígida da pia, mirando o outro de costas.
— Obrigado por ter feito a sua obrigação como uma autoridade policial, delegado. — Saulo não pôde ver, mas Fabrício também esboçou um riso. — Já que estamos virando amigos, me fala uma coisa... Você lembra do Nick quando... olha pra mim?
"Que aleatório!"
— Por quê? Tá com ciúmes?
Saulo riu de novo.
— Sorte a sua que eu esteja de bom humor.
— Mas eu não estou! — O forte tapa no balcão antecedeu o empurrar quase violento da cadeira, a qual arranhou o assoalho e por um triz não tombou para trás. Impaciente, Fabrício voou para cima de Saulo, mantendo uma pequena distância, e embora carregasse um semblante que assustaria qualquer outra pessoa em Irazal, Saulo nem sequer se desfez do ar indiferente diante do olhar cinza e semicerrado. — A partir de hoje, me ajuda e se preocupe apenas em ficar vivo, Saulo!
— Olha só! Acertou meu nome, parece que temos um progresso. — Virou a caneca entre os espessos lábios marrons e cobriu o nariz com o movimento, o que serviu para destacar as esferas douradas olhando para cima.
Ou melhor, olhando para o homem agitado. Ato que deixou Fabrício levemente tentado a dar mais um passo e tocar naquele rosto portando pelos ainda mais notórios. Sua irritação gerada pela preocupação se perdia pouco a pouco; evaporava. Era como se ficar perto de Saulo pudesse repelir o ar negativo que vivia em seu interior.
— Por que está deixando a barba crescer? — Sem se conter, tocou o outro no rosto, acariciando a pele escura com o polegar.
— Não estou. Só não faço mais questão de tirar.
O mais velho não gostou daquela resposta; sentiu um tom deprimente na forma que fora dita, ao mesmo tempo que se identificava com ela. Fabrício também havia perdido sua vaidade há um bom tempo. Para completar, ele desaprovou a ideia de vê-lo com barba.
Graças às más lembranças.
— Se o Geraldo fizer alguma coisa com você, eu... — calou-se, engolindo em seco. Era melhor não dizer em voz alta.
— Já ouviu falar em Multiverso?
Fabrício guiou as mãos aos bolsos do agasalho de lã, passeando os olhos sobre o rosto de Saulo ao ser pego de surpresa pela súbita mudança de assunto. A verdade, é que Saulo não queria falar sobre o ocorrido na delegacia e acabou dizendo a primeira coisa que lhe veio à cabeça.
— Já, mas não faço ideia do que significa. Quê que tem?
— Tive um sonho estranho. Tenho sonhos estranhos o tempo todo. — Pausou, tomando o café antes de começar a explicar. — Multiverso é uma teoria sobre a existência de universos paralelos.
— Como assim, paralelos?
— Outros universos com outras Via Lácteas, outras Terras, outros eus e outros você. Semelhantes, idênticos ou simplesmente diferentes. — Suspirou. — Acho que é com isso que venho sonhando. Tinha outro eu, só que, não era eu de verdade. Não sei como, mas eu via ele através dos meus olhos e todo o resto através dos olhos dele. Ele... era igual a mim, porém, diferente. Entende?
— Não. — Riu.
— No fundo, nem eu entendo a Física Quântica. — Saulo acabou rindo também, escondendo a boca com a caneca outra vez. Estava se sentindo à vontade para conversar com Fabrício, por isso, decidiu comentar algo mais íntimo. — O prefeito não pareceu surpreso quando nos viu... Você sabe, lá na delegacia.
Já o delegado, não precisou de clareza para compreender onde Saulo queria chegar.
— É impossível ser discreto numa cidade minúscula. — Jogou a franja úmida para trás, a qual se desmanchou quase no mesmo segundo, repartindo-se novamente e lhe cobrindo as têmporas com mechas grisalhas. — Sem falar que, depois do que aconteceu naquele ano, nem se eu quisesse, conseguiria manter em segredo. Na real, desde garoto, jamais fiz essas divisões de homem e mulher na hora de me relacionar; pra mim não faz diferença e nunca tentei esconder.
O jovem assentiu.
— Me identifiquei, mas somente meus pais e amigos próximos sabem. Os conhecidos acham que sou hétero porque só namorei mulher e pra mídia sou apenas um gay enrustido. Às vezes corrijo, outras ignoro, por causa... Sei lá. — Deu de ombros. — Não vale a pena o estresse. — Liberou um sorrisinho, sendo acompanhado.
O celular de Fabrício vibrando sobre o balcão encerrou o assunto. Sem demora e, com uma evidente urgência, analisou a tela do aparelho, relaxando a expressão preocupada ao colocá-lo no bolso.
— Boatos que a folga que não tenho, acabou. — Guiou-se até Saulo, parando novamente diante do jovem com a caneca na boca. — Não durma cedo. Vou te trazer uma coisa.
— Que coisa?
— Não posso dizer agora, mas é importante.
Saulo entortou a boca, insatisfeito com a resposta e de súbito, agarrou a barra de lã daquele agasalho, obrigando o delegado a mirar sua própria roupa sendo segurada, para então, retomar os olhos ao mais novo. Deu um passo à frente, deixando-se ser puxado.
— Obrigado por ter... Por estar me protegendo.
— De nada — soou baixo, sussurrando. Sua voz absurdamente macia, intensa e até mesmo, acolhedora, trouxe um pulsar diferente ao peito nortista.
Embora ambos quisessem dizer mais alguma coisa com a intenção de ouvir tantas outras, nenhuma nova palavra foi soprada. Saulo e Fabrício, ainda que calados, continuaram se olhando, parados e atentos às reações um do outro. Piscar naquele momento seria um desperdício.
A sequência somente se quebrou assim que Fabrício não só tomou a caneca da posse do outro, deixando-a na pia atrás do jovem, como também sentiu os pinicantes pelos faciais de Saulo com as duas mãos, ao segurar aquele rosto e fazer o que estava ansiado desde que acordara. Beijou-o com pressa, vontade; desejo. Lábios exalando o sabor de café e bolo, moldavam-se e desfrutavam de cada centímetro da boca tão a mercê da sua. Nem mesmo o cheiro discreto da nicotina exalando daquele homem, evitou que Saulo retribuísse o beijo com a mesma fome; necessidade. Havia um gosto familiar ali. Por consequência, o estudante, que agarrava as laterais do agasalho de lã, não se conteve e tentou intensificar ainda mais o laço, passando seus braços em torno de Fabrício e o puxando contra si, unindo torsos...
Sem mais nem menos, o delegado finalizou o beijo. Contudo, imerso naquele clima e na ponta dos pés, o jovem rapidamente guiou sua boca na direção dos finos lábios pincelados pela sua saliva, com a língua sedenta e pronta para começar tudo de novo, porém, Fabrício se esquivou, saindo de vez do domínio dos braços sob a jaqueta preta.
— Preciso trocar de roupa e ir pra delegacia — explicou junto ao carinho no rosto negro e escorregando a mão para a lateral dos cabelos já ganhando volume. — Não sai de casa e se ver alguém olhando muito pra cá, me liga. Pode ser algum capacho do Geraldo.
— Ok! — Saulo disfarçava, mas tinha consciência de que realmente corria perigo. Entretanto, não era apenas em troca de proteção que queria aquele delegado por perto. — Antes de ir, me fala onde tem bolo de macaxeira.
-
Fazia alguns minutos que Saulo se sentara no lugar anteriormente habitado por Fabrício e aproveitava a beleza do campo. Uma das coisas que ele mais gostou na casa de Fabrício foi justamente o fato dela se localizar mais alta que as demais; a visão ali era privilegiada.
Algo que Saulo nunca imaginaria ver, nem mesmo na televisão, ganhou de vez sua atenção. Mordiscando o terceiro pedaço de bolo de mandioca, fincou os cotovelos no balcão, pois lá na propriedade vizinha, próximo de crianças correndo, um cavalo simplesmente deitou no chão e passou a rolar grama, imitando o cachorro ao lado; apesar da maneira xucra por não possuir a mesma fluidez do animal menor.
Vulto branco!
Saulo teve que se segurar no balcão para não cair para trás com cadeira e tudo. O coração acelerado lhe ofuscou a audição momentaneamente. Culpa da pomba clara a qual não só surgiu na janela de asas abertas, como também bicou o vidro, trazendo um susto violento ao jovem.
— Égua! Sai daqui! Que diacho de pombo chato! — Fez menção de bater na janela, contudo, parou no meio do caminho.
Olhos amarelos congelaram na pomba batendo as asas atrás do vidro, enquanto em segundo plano, memórias surgiam.
"Sinto que estou dando saltos numa rua cheia de buracos", lembrou do sonho.
Bicadas no vidro levou seu foco à janela outra vez.
"Não se preocupe, logo ela irá embora."
— O que você está querendo me dizer?! — O choque da caneca de ferro contra a janela, trouxe além do ruído trêmulo na estrutura transparente, também manchas marrons do café escorrendo pelo vidro. — Égua! Égua! Égua!
Enquanto limpava aquela sujeira, Saulo tentava reviver todas as cenas do recente sonho, porém, boa parte já havia sido esquecida. "Saltos... pomba... Tem que ter alguma ligação!" Sua mente não estava na melhor das formas para conseguir as respostas sozinho. Nisso, através da parte limpa do vidro, notou as crianças brincando de pular corda.
— Salto... corda... pomba. Diacho! — Apanhou o celular, optando por vasculhar na Internet. Dentre as pesquisas de sinônimos, lendas urbanas e até significado de sonhos, ele caiu em um site científico. — Salto Quântico!
"Chamamos de Salto Quântico quando, devido a uma aceleração, elétrons se afastam do núcleo e partem para uma nova órbita. Na Física Quântica, assim que esse fenômeno ocorre, o elétron não pode ser visto durante o salto. Pesquisadores acreditam que ele possivelmente está em outra dimensão."
Fechou o navegador, uma vez que nesse exato instante algo deu um estalo em sua cabeça. "... não pode ser visto durante o salto."
— GPS!
Saulo voltou a atenção ao celular, mirando as informações já conhecidas e que, até aquele momento, não faziam sentido.
Grande Panópolis
última visita: 06/06/2043 — 13:28
Irazal do Sul
primeira visita: 06/06/2043 — 23:04
Havia uma evidente lacuna de horas entre os dois registros. Diante disso, Saulo se deu ao trabalho de contar o tempo em que ficou invisível; indetectável pelo GPS.
Exatamente: nove horas e trinta e seis minutos.
— 9, 3, 6!
"Nick!", a aguda e já conhecida voz de criança, gritou às suas costas.
-
O punho direito já carregando ferimentos sobre os nós dos dedos, colidiram novamente com o rosto do sujeito na casa dos trinta anos, o qual ganhou novas marcas na pele. Levemente tonto e escorado com um dos ombros na parede, escolhendo não encarar o homem à sua frente, baixou os olhos e cuspiu no chão da delegacia, vendo sua saliva mesclada ao próprio sangue, este também descendo do nariz.
Alan inclinou o torso para baixo, analisando melhor o estrago; seu distintivo pairava no ar por meio da corrente entorno do pescoço.
— Acho que você quebrou o nariz dele, Fabrício. Fico triste com uma coisa dessa, sabia? — Sorriu, causando a mesma reação em um delegado já erguendo o punho novamente.
— Espera! Deixa eu tentar explicar de novo! A mãe dela é doida! Eu não forcei nada, a menina foi pra minha casa porque quis! — defendeu-se, limpando com a camisa, o sangue fugindo das narinas. — Para com isso, delegado.
— Sem pressa, eu acabei de começar. — Curvou o canto dos lábios com um ar diabólico antes de o puxar pela camisa na altura do peito, endireitando aquela postura e o pressionando com força na parede. Sobre os ossos da sua mão direita era exibido um vermelho vivo devido à falta de pele na região; já os olhos cinza, quase fechados, faiscavam ódio. Sede de violência. — Mas eu jurava que você tinha dito, "ela nunca esteve na minha casa". Você também ficou com essa impressão, Alan?
— Fiquei. Que loucura, né?
A tosse sem fôlego foi reflexo do joelho que golpeou o estômago do indivíduo já tomado por hematomas.
— Cara... — Respirou fundo, de boca aberta. Se Fabrício não o segurasse pela camisa, ele já estaria no chão. — ela que começou, ficava me provocando com aquelas roupinhas... Eu sou homem! — Mirou Alan, às costas do delegado, o qual havia liberado um palavrão abafado. — Tá com raiva porque você não sabe o que é isso, né?! Nunca vai saber!
Fabrício o soltou, vendo por consequência o corpo do homem desabar de imediato. Alan, este portando o mesmo semblante furioso do seu superior, estalou os dedos.
Era a sua vez.
— Evita matar, mas se ele morrer, foda-se! — Fabrício deu às costas aos dois. Precisava fazer um curativo na mão. — Ninguém vai sentir falta de um pedófilo.
— ⚡ —
Mantendo a cabeça baixa, íris cinza se ergueram, de modo que os óculos de leitura cederam alguns milímetros, parando-lhe na ponta do nariz e como de costume, destacou suas rugas na testa.
— E aí? Morreu?
Alan mexeu os ombros, dando uma sacudida na camisa preta enquanto caminhava até sua bancada, à procura de refresco; aquela atividade havia lhe causado uma quentura no corpo. Já as marcas quase escuras em seus punhos, eram vistas de longe.
— Não sei. Larguei o filho da puta lá na porta do posto de saúde. Se ele sobreviver, termino o serviço. Sabe que não curto bater em verme desacordado.
— Você que sabe... — Tirou os óculos, dobrando as hastes antes de os pôr no canto da mesa. — Senta aqui. — Indicou a cadeira à sua frente.
Como o bom subordinado que era, Alan depressa obedeceu; aproveitou para firmar o coque no alto da cabeça, o qual já lhe alcançava a nuca.
— O que foi, Fabrício? Que cara é essa?
— Por que você — Coçou a lateral dos cabelos, sobre a concentração de fios brancos. — apontou sua arma pro Geraldo? Eu tenho os meus privilégios aqui, mas você não. Ele pode tentar se vingar. Além disso, você nem gosta do Saulo.
Alan respirou fundo, alisando o distintivo sobre o peito inconscientemente.
— Não é óbvio? Fiquei puto ao ouvir o matusalém falar daquele jeito da Luana! — começou. — Ok, não foi só por isso. Eu nunca tinha te visto tão desesperado.
— Ainda não respondeu à pergunta.
— Verdade, não gosto do miúdo, mas você gosta, gosta muito pelo visto. E eu... me importo contigo. Você me criou, me treinou; tudo que não me ensinaram na academia de polícia, aprendi com você.
— Violar os direitos humanos? — Riu, sem um pingo de culpa.
— Não, isso eu aprendi na academia mesmo. — Acompanhou o outro no riso. — Eu te devo muita coisa, Fabrício. Você... pagou a minha faculdade, a mastectomia...
— Para! Você não me deve nada! Eu sabia que não daria conta disso sozinho e você desde criança contava que seria policial... Porra, te vi nascer... Duas vezes! — Puxou a mão do escrivão, segurando-a como se fossem disputar um braço de ferro. — Você é o filho que não tive, Alan.
— ⚡ —
Deitado enquanto distraidamente passava as unhas na redonda almofada sobre a barriga, apreciando os ruídos soados do tecido grosso, Saulo mirou a mochila ao seu lado mais uma vez. Passara um considerável tempo enfiado naquele sofá de madeira; tanto que já sentia o estofado moldado ao seu corpo. Tudo isso se decidindo entre partir sem dar satisfações ou esperar Fabrício para uma despedida decente. Quanto a ir embora, ele já estava mais que convencido. Em Irazal não ficaria nem mais um dia.
Se fosse preciso, atravessaria o rio a nado.
Subiu o zíper da jaqueta de couro até o pescoço, tão logo pendurou a mochila nas costas. O jovem só não contava que encontraria junto à saída, o porta casacos, ocupado.
Bastou apenas aquela peça...
Fechou os olhos, forçando-se a não sentir o cheiro dele. Ainda assim, pálpebras pesadas, acompanhadas de linhas na testa, seguiram-no à peça aveludada. Apanhou o blazer azul-marinho, guiando-o lentamente — quase parando — às próprias narinas. Cheirou-o, devagar; profundamente... Inalando o perfume suave em meio ao cheiro habitual da nicotina, de olhos fechados e boca entreaberta.
— Adeus delegado. — Pôs a roupa de volta ao lugar, deixando antes de passar pela porta, uma carícia na lapela do blazer.
Contornado pela noite fria, saiu da casa pelos fundos, rumo ao porão no qual se encontrava a moto; sentindo de imediato o ar congelante lhe machucar o rosto. "Eles perderam meu carro. Não é roubo, é estorno", justificou-se conforme puxava o capuz da jaqueta, já levando a mão à porta com pintura descascada.
Vozes.
O murmúrio, perto o suficiente para ser captado e longe o bastante para não se entender palavra alguma, interrompeu o movimento que lhe abriria passagem ao porão-garagem. Do puxador frio feito gelo, Saulo tirou a mão, levando toda a atenção visual e auditiva, ao foco da conversação aparentemente exaltada.
Três pessoas.
Graças à iluminação naquele ponto da estrada, Saulo pôde reconhecer Kelly — através de suas tranças inconfundíveis — ao lado de um homem. Conversavam com outra pessoa; esta difícil de ver devido ao ângulo. A agitação da garota, gesticulando enquanto falava, não o deixou continuar parado ali. Ar esbranquiçado escapava dos lábios castanhos conforme Saulo caminhava até o trio, esfregando os braços sobre a jaqueta como se isso fosse de alguma forma, protegê-lo daquele clima gélido.
— Não, pai, não vou!
— Kelly, já mandei você ir ficar com a sua avó!
— Obedeça seu pai, menina malcriada! — Ralhou a mulher de porte forte, a qual possuía os cabelos presos em um liso rabo de cavalo. Braços cruzados na frente do peito, destacavam o quão musculosos eram.
Minuto em que ela encontrou os olhos dourados.
Rapidamente, pai e filha, um pouco ofuscados pelo escuro, olharam para trás.
— Algum problema? — Saulo questionou, encarando a face assustada da garota de tranças.
— Volta pra dentro, Saulo! — sussurrou ela.
— Ótimo, ele saiu sozinho. Vamos! Agora você vem comigo — disse a mulher, tirando o homem magro do seu caminho para chegar ao estudante. — Precisamos falar de negócios, neném.
De imediato, Saulo recuou, temendo a aproximação daquela mulher, que por estar de costas para a iluminação da estrada, exibiu um rosto ainda mais ameaçador. Porém, não foi o suficiente. Dedos firmes lhe pressionaram o braço sobre o couro da roupa, puxando-o com certa violência e dando início ao toque coberto de...
Descarga elétrica!
Espantada, a mulher depressa o soltou, sentindo a sensação formigante correr pela sua mão conforme a esfregava na calça em um ato automático de afastar aquela dormência. Entretanto, Saulo também sentiu o efeito. "Isso é normal! Pessoas têm carga estática!", ele tentou se tranquilizar. Precisava manter sua mente o mais sã possível.
— Se eu fosse você, soltava esse aparelho de choque agora mesmo! Não vou pensar duas vezes antes de estragar essa carinha!
Saulo deu mais um passo para trás; seu coração disparado seguiu o movimento de auto defesa.
— Dona, não tenho nada! Eu juro! Pode me revistar! — Ergueu as mãos já pálidas de tanto frio.
Impulsivamente outra pessoa se pôs entre os dois: o sujeito portando a barba espessa e todo o cabelo, este bem aparado, em fios grisalhos. No entanto, essa não fora a primeira coisa em que Saulo reparou nele; mas sim a camada de pele cobrindo o local onde esperou encontrar um olho. Aquele homem não possuía um dos globos oculares.
Contudo, o choque não estava ligado exatamente a isso. Havia uma sensação estranha de familiaridade; vinda de ambas as partes.
— Bah! Seu sotaque não me é estranho. Tire o capuz, por favor — pediu, cismado; Saulo prontamente atendeu ao pedido. Já Kelly, encarou o pai confusa, vendo por fim, o mais velho analisar a roupa do jovem. — Como se chama, menino?
— Sa-Saulo. Drico, liga pro Fabrício — cochichou junto aos seus olhos amplos e regados à súplica.
O homem por sua vez, fitou a filha; esta igualmente exalando surpresa, antes de tornar a estudar o rosto de Saulo.
— Como sabe o meu apelido? Ninguém mais me chama assim.
Continua...
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top