Capítulo 12 - Sonho Lúcido
"Desnorteado, Saulo cambaleou para a esquerda antes de perder o equilíbrio e cair de joelhos, apertando as têmporas como se o gesto pudesse expulsar de sua cabeça aquelas pontadas latejando. Sentia enjoo devido à sensação de estar parado e em movimento ao mesmo tempo.
Seu cérebro entrava em conflito.
— Você é um... você é um extraterrestre?! — O mais velho começou a frase em servo-croata, mas logo a mudou para alemão.
Nikola Tesla detestava a ideia de os humanos serem as únicas criaturas racionais no Universo e acreditava que, futuramente, outras formas de vida tentariam entrar em contato com outros seres inteligentes. O problema foi que essas afirmações não fizeram bem para a sua imagem.
Ali do chão, pálpebras enfim subiram, revelando íris amarelas em meio aos olhos avermelhados. Olhos os quais se arregalaram no instante em que reparou na sua volta. O primeiro sobressalto veio com a visão da abertura engolindo metade do carro de seu pai, já o segundo, surgiu durante o passeio de suas pupilas em processo de dilatação, no laboratório do século XIX; o local tinha cheiro de ferro em brasas. Entretanto, o mais forte e terceiro sobressalto, tomou-lhe o corpo após colocar os olhos naquele homem tão...
Familiar.
— Puta que pariu! Égua! Meu Deus do céu! — berrou em português, ignorando a enxaqueca e depressa se levantou, tendo inclusive que se segurar no cilindro ao lado. A percepção era de estar dentro de um ônibus desgovernado. — Não acredito que tô sonhando com o Nikola Tesla!
Apesar de não ter entendido absolutamente nada dito pelo visitante, o inventor pôde reconhecer a pronúncia de seu nome em alto e bom som.
— Quem é você, rapaz? — Ainda sem coragem de se afastar do cercado, tornou a fazer perguntas ao jovem de pele castanha, desta vez em inglês e finalmente sendo compreendido por ele.
— Me chamo Saulo e sou alguém que admira muito a pessoa que você foi! — Sorria com olhos já marejados, sem poder conter a emoção. Se o chão, sob seus pés, não tremesse tanto, já teria ido ao encontro do inventor.
— Fui? — A conjugação no passado lhe deixou confuso.
— Minha nossa! — Fitou o equipamento logo adiante, no qual refletia boa parte da luz expelida pela abertura atrás do carro. — Ela é tão mais linda pessoalmente!
Aproximou-se da bobina, desequilibrado, chegando até a peça em poucos tropeços. Com extremo cuidado, alisou as barras metálicas em volta, como se tocasse uma relíquia no museu.
— Sua aeronave? — Tesla apontou ao carro. "Um, dois, três, quatro, cinco, seis...", contou os passos como de costume, ficando mais perto da máquina desconhecida. Agradeceu mentalmente por aquela força de atração vinda do portal ter diminuído. — É de uma aparência singular, entretanto, admiravelmente bem-feita, Saulo!
O jovem finalmente se deu conta de qual época se passava o suposto sonho mais vivido que estava tendo.
— É um carro... Automóvel, modelo 2043.
— Automóvel, compreendo... — Observou a lataria, evitando tocá-la e ficar de frente para a luz morna da fenda; encantado com aquele design totalmente diferente dos carros de seu tempo. — 2043 é relacionado à potência? Número de série?
Saulo riu.
— É só o ano de lançamento."
-
Cocoricós; altos e agudos, embora distantes, revezavam a trilha sonora com o piar dos pássaros extrovertidos. "É cedo para sentir, saudade do hotel?" Sob a companhia do longo bocejo que lhe rendeu um lacrimejar involuntário, Saulo empurrou os cobertores pesados com os pés muito bem protegidos por meias grossas — a casa de Fabrício era mais fria do que ele esperava. Dali, avistou o rádio no chão, tocando-o como quem acaricia um animal de estimação. "Agora dei para sonhar com suas falas", e então, se espreguiçou conforme ficava de pé e por consequência, encontrava o corredor. Manteve os braços no ar, encarando a porta entreaberta; porta a qual havia fechado antes de dormir para pelo menos diminuir a fria corrente de ar.
— Ele deve ter chegado bem tarde — deduziu. Desde que fora hospedado por Fabrício no dia anterior, Saulo não tinha visto o dono da casa, e de acordo com as quase 12hs, ele já se localizava na delegacia.
Sem se importar com a sua saúde auditiva, aumentou o volume da música após ocupar os ouvidos com os fones. Utilizou-se disso para afastar as perguntas rondando suas memórias sem lógica; ofuscadas pelo sonho. E, durante os passos pela casa silenciosa, cantarolava em meio aos movimentos automáticos de cabeça; rumo ao banheiro e principalmente, ao banho quente, demorado, relaxan... Estacou antes mesmo de chegar na porta do seu destino.
Era alto.
Angustiante.
Doloroso.
Depressa, arrancou os fones do ouvido, para com a mesma urgência, olhar para trás à procura da fonte daquele choro.
Choro de criança.
Agudo.
Intenso.
— Oi?
A paralisação momentânea congelou todos os músculos de Saulo, ampliando seus olhos, os quais encaravam sem piscar o corredor à meia luz. A dificuldade nem era se convencer de que estava sozinho, mas sim aceitar que o tal choro não vinha de nenhum dos quartos abertos, pois era justamente do outro lado daquela porta fechada que ele soava. "Isso não está acontecendo!" Com o pavor ganhando espaço em seu corpo, girou os pés lentamente, dando início aos passos igualmente vagarosos na direção do cômodo misterioso. A impressão de que aquele choro ficara cada vez mais alto só fez sua respiração se tornar ofegante, pesada; sentia o coração bater no ritmo dos soluços.
Diante da porta, se viu parado.
— Está... está tu-tudo bem? — Não sabia que sua voz soaria tão trêmula, e muito menos que o silêncio se instalaria em seguida. Juntou-se à madeira, colando a orelha na porta gélida. — Quer que eu chame o Fabrício? — Já com a mão na maçaneta, apertou com o polegar o botão no centro. Nenhum click soou. — Trancada, óbvio... Égua! — gritou subitamente.
Fones de ouvido sem fio lhe escaparam das mãos junto ao sobressalto que o fez tremer dos pés à cabeça. A razão fora o susto gerado ao perceber de soslaio, uma silhueta baixa surgir no começo do corredor.
Virou-se rápido, descobrindo que não estava mais sozinho. Instante em que a pessoa carregando uma sacola colorida de pano, recuou.
— Eita! Te assustei?!
— Um pouco — assumiu, tão logo se abaixando para apanhar os fones. — Karen, né? — chutou o nome da espevitada garota com uma trança de cada lado do rosto.
— Kelly — corrigiu, revirando os olhos; ato não visto pelo jovem pausando a música alta que escapava dos fones. — Eu tô berrando tem uns dez minutos na porta! — Riu, trocando a sacola de mão. "Aposto que foram nove minutos", pensou ele enquanto sorria sem graça para a garota teatralmente zangada. — Tem medo de ficar surdo, não?
"Se eu não ouvi ela por causa da música, como ouvi o choro?", meneou a cabeça, tentando a todo custo não deixar transparecer o caos que ocorria dentro de sua mente.
— Deixe eu adivinhar, veio me desconvidar do seu aniversário? — Não fazendo questão de fingir simpatia, deu às costas à garota ao simplesmente retornar para o quarto.
— Não! — Kelly franziu o cenho, seguindo-o no automático. — Por quê?
— Sei lá. — Mexeu os ombros, largando os fones ao lado do celular sobre a cama, segundo no qual ampliou os olhos ao reparar no tempo em que a música fora pausada: 3:33. "Nove... Que diacho de número!" Ignorou, voltando a atenção à Kelly. — Ninguém gosta de mim nesta cidade.
— Que judiação! O tio Fabrício gosta — disse ela, logo assistindo o suavizar das linhas na testa negra. — Eu gosto também. Toma. — Por fim, entregou-lhe a sacola colorida.
Ao abrir, o aroma gostoso de imediato fez seu estômago bater palmas. Lá dentro, encontrou através da embalagem transparente com suas divisórias, arroz, feijão e um refogado que ele achou melhor não saber com qual parte do animal fora feito. Entretanto, ali havia outro item: pacote em papel bege.
— Obrigado, Kelly! Eu estava morrendo de fome, mas e isto, é o quê? — questionou assim que analisou dos dois lados, o tal pacote sem rótulo.
— Farinha de mandioca. O tio me pediu pra ir à venda comprar e trazer seu almoço.
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Em meio ao suspiro junto à coçada nos discretos pelos no rosto, Saulo mirou a porta do quarto de Fabrício. "Deve estar ali." Entrou sem pensar. Um cheiro de cigarro com fundo de loção pós barba exalou imediatamente do ambiente. O jovem nem mesmo esperou o almoço descansar no estômago para vasculhar aquele lugar à procura da chave capaz de abrir o cômodo intrigante; fora só o tempo de Kelly se despedir para que ele voasse até os armários e caixas espalhados pela casa.
Faltava somente o quarto do delegado.
Lá dentro, Saulo não se deixou analisar o local que possuía um conjunto de móveis com aspectos rústicos, passando tão rápido pelo guarda-roupa ao avistar ao lado da cama um móvel — o qual parecia alto demais para ser chamado de mesa de cabeceira — que tal ato brusco acabou lhe causando um tropeço na bota largada no caminho, o que o levou de cara ao tapete vinho, liso e enfeitado com uma estampa julgada como de velho.
— No quarto dele tem aquecedor... Legal! — Reparou no aparelho enquanto alisava o joelho.
Dali, sentado no tapete, focou aquele móvel novamente. Um dos puxadores retangulares das gavetas, brilhava com a ajuda de um raio de sol perdido ali dentro. Prosseguiu, mirando a gaveta destacada; a terceira de baixo para cima e também, de cima para baixo. Estava no meio de todas as outras.
Depressa, o jovem puxou a gaveta e se deixou observar seu interior por um momento. Entre alguns clipes, isqueiro e um papel dobrado em linhas cor de rosa, o qual lhe fez lembrar do bilhete no chalé, Saulo topou com o molho de chaves e enfim substituiu os olhos pela mão. A ansiedade corria por suas veias durante e depois do curto trajeto à outra porta; mãos trêmulas testavam as chaves, uma a uma, as quais fugiram dos dedos frios e caíram no chão algumas vezes, criando um tremendo barulho no assoalho devido à calmaria exagerada no corredor.
O ruído da fechadura girando, trouxe-lhe uma agulhada no peito; apertou o botão no centro da maçaneta, ouvindo o click imediatamente. "Não vou encontrar uma criança amarrada aqui, não vou encontrar..." de olhos fechados, mentalizava conforme empurrava a porta.
Apavorado, ergueu as pálpebras pouco a pouco, tateando a parede à procura do interruptor e, assim que a luz elétrica foi acesa, Saulo piscou; várias vezes. Confuso, adentrou o cômodo aparentemente vazio e limpo. Porém, ao prestar atenção na decoração, o familiar calafrio na espinha ressurgiu. A pequena cama, coberta pela bela colcha de babado e figuras de ursinhos, além da estante em formato de casinha cheia de brinquedos, deixou claro que se tratava de um quarto infantil.
Carregando o coração disparado, começou a fazer uma varredura; canto algum daquele quarto ficou sem a visita das íris douradas e em nenhuma parte, encontrou qualquer vestígio de que uma criança recentemente passara por ali. Nem mesmo um sapatinho perdido, chupeta ou mamadeira suja, achou.
— Égua! Isso não faz sentido! Como eu sabia que era um quarto de criança?! — gritando esfregou o rosto, se controlando para não puxar os próprios cabelos.
No entanto, ao abrir os olhos novamente, o nicho sobre a cabeceira da cama ganhou sua atenção. Ali, em meio aos cubos A, B, e C, um porta retrato 3D se mostrava ligado. Paisagens aleatórias eram projetadas de um pequeno cubo negro; montanhas, cachoeira, floresta... Uma menina risonha.
O mesmo sorriso visto na página jornalista impressa por Fabrício e deixada em seu caderno.
O problema foi perceber algo a mais naquela foto. Atordoado com o reconhecimento, Saulo nem percebeu o minuto em que passou a recuar ao som das batidas frenéticas em seu peito. A culpa fora do que estava em torno do pescoço daquela menina fotogênica.
Um cachecol de lã colorido visivelmente grande para seu tamanho.
— Eu já vi um cachecol igualzinho a esse, só não lembro onde! Eu já vi sim, sei que vi!
Ele não teve tempo para fazer uma recapitulação mental, pois, assim que suas costas encontraram o suspenso armário branco, foi de imediato atingido por um forte choque, o qual inclusive, dificultou sua respiração por um instante. Ofegante em meio às vistas turvas, Saulo abria e fechava as mãos para afastar a sensação formigante do corpo antes de procurar entre os ursos de pelúcia, derrubando-os sem se importar, algum sinal de fio solto, desencapado, ou instalação elétrica irregular para explicar aquele choque, até que em total assombro, afastou-se sem tirar os olhos do armário de... "Madeira... seca!"
O calafrio dessa vez lhe golpeou dos pés à cabeça.
— A madeira é um isolante — pensava alto —, péssimo condutor de eletricidade. Ao menos que... — Encarou as próprias mãos — a tensão elétrica seja assustadoramente alta.
Tal movimento ocular lhe permitiu ver, em segundo plano, alguns ursos no chão. Abaixou-se para recolocá-los no lugar, momento em que reparou que um deles, o menor de todos e cor de rosa, não possuía um dos olhos, o qual Saulo não teve dificuldade em achar.
Rapidamente, apanhou a peça do canto do quarto, inspecionando-a com um vinco exagerado entre as sobrancelhas.
— O olho é um pen drive?
Continua...
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