Capítulo 11 - Pai da Eletricidade

     Dentro do ambiente iluminado, o homem descamisado se entretinha com o seriado policial e aproveitava o sabor forte da sua cerveja artesanal; cabelos ondulados soltos nos ombros deram uma nova perspectiva daquele escrivão civil. Instante em que, cismado, pausou o episódio ao ouvir as batidas na porta. Fazia tempo que não recebia visitas; no máximo, Fabrício passava ali vez ou outra, contudo, este não precisava bater.

     Após não só apanhar a pistola de baixo do sofá, como também descer a trava e acomodá-la atrás, no cós da bermuda, enfim foi atender a porta.

     Paralisação.

     Foi a primeira sensação, junto ao ar frio chocando em seu rosto e torso, que tomou seu corpo com a revelação. De todas as pessoas em Irazal, aquela era a última que esperaria em sua casa.

     Limpou a garganta, afastando a mão da pistola.

     — Luana?

     — Posso entrar?

     — Pode! Claro! Entra!

     A recepcionista não fez questão de dar muitos passos casa adentro, na qual perdera as contas de quantas vezes dormiu nos seus tempos de criança, mantendo-se a uma pequena distância da entrada. Iria ser breve. Alan, que fechou a porta sem tirar os olhos da dona dos cabelos longos, perdera momentaneamente as palavras de tanta surpresa.

     Ela só não esperava ficar tão sem jeito diante daquele policial sem camisa; culpa da evidente musculatura bem trabalhada, também daquela quantidade de pelos espalhada no centro e principalmente, das cicatrizes abaixo dos peitos. Virou o rosto, mirando a TV pausada; Alan não demorou a entender o motivo. Depressa, correu ao sofá, no qual se encontrava a regata preta; ato que deixou a pistola em sua cintura totalmente visível à Luana.

     — Foi mal por atender a porta assim. — Rapidamente, vestiu a peça durante os passos de volta. — O T me deixa com um calor desgraçado! — Riu, exibindo aquele sorriso que Luana conhecia melhor do que ninguém. Tudo estava diferente, físico, voz, andar... menos o sorriso; este era o mesmo.

     — T?

     — Testosterona — explicou.

     — Ah, sim! — Cruzou os braços, o que fez Alan recuar. Ele sabia que aquele era um comportamento defensivo. — O tratamento está... Você está muito... Parece estar bem. — Era difícil formular uma simples frase.

     Ele assentiu.

     — Sim, mas eu poderia estar melhor.

     De imediato, Luana correu seus olhos escuros ao redor. Aquela situação seguia um rumo complicado; era melhor fugir.

     — Você guardou o altar em outro lugar? — Essa fora uma das explícitas mudanças naquela casa.

     — Não, eu destruí.

     A afirmação levou outra vez a atenção de Luana a ele.

     — Por quê? Sua mãe gostava tanto daqueles santos.

     — Nunca tive uma mãe, Luana! Aquela mulher doente só me pariu! O melhor dia da minha vida foi quando ela me abandonou! — O tom magoado ecoou pelo cômodo, seguido por um breve silêncio. — E se não fosse pelo Fabrício, eu também não teria um pai! Eu não teria ninguém!

     Olhos maquiados foram diretos ao chão; ela entendeu perfeitamente a indireta.

     — Preciso que me ajude com uma coisa. — Ergueu suas íris. — Pra minha segurança.

     A partir de então, Alan foi recebido pelo nascer da sua costumeira irritação, o que lhe fez fechar a expressão e chegar mais perto da moça.

     — Em quem tenho que bater?!

     — Ninguém, só preciso de uma arma emprestada.

— ⚡ —

     Dedos acastanhados deslizaram sobre a pele de mesma cor, coçando a área e sentindo com a ponta deles, os micros e pinicantes pelos atravessando seus poros. Saulo não costumava deixar a barba crescer; era mais simples lidar com um rosto liso, contudo, suas preferências e objetivos pareciam estar perdendo a importância ou simplesmente, mudando.

     Não se preocupava com seus estudos como antes; a comida do Sul não era mais tão ruim assim. Até a tranquilidade do interior se tornara menos chata, e em especial...

     Luana.

     Ela não era mais a única dona dos seus desejos.

     — Eu não posso estar ficando doido! — resmungou depois de fechar o rádio. Havia o desmontado e o revirado do avesso, porém não encontrou nenhuma bateria ou sensor de energia wireless, o que tornava o recém episódio durante a tempestade, totalmente intrigante. — De onde veio a energia que ligou isto!?

     Suspirou, largando o rádio na mochila e ligou a TV, ainda com a toalha úmida pendurada no pescoço. Alguns cachos molhados fizeram companhia à sua testa, deixando a região receber uma gota discreta. No impulso, livrou-se dela com os dedos, ato que deixou, mesmo que em segundo plano, a marca da algema gravada em seu pulso.

     Tudo estava lhe fazendo lembrar do rosto portando tímidas linhas de expressão, as quais serviam mais para dar um ar charmoso do que demonstrar velhice. Assim como os esporádicos fios brancos completando o topete castanho claro, que por vezes, gostava de fazer papel de franja bagunçada. Questionou-se sobre os olhos, que não sabia ao certo se eram azuis, verdes ou de outra cor; nunca havia parado para pensar.

     Sorriu, sem sequer perceber.

     — ... e sobre isso, a empresa responsável nos informou que se houver diminuição nas chuvas, muito em breve o trânsito será liberado na Ponte Norte-Sul — informou a repórter do telejornal.

     Saulo desconfiava que não poderia deixar Irazal sem uma autorização do delegado, mas saber que o fim do isolamento estava próximo, fez suas pupilas dilatarem. Porém, o projeto de sorriso se evaporou ao reparar no número estampado no poste de energia atrás da repórter: três.

     No microfone: seis.

     No vestido de uma criança brincando ao fundo: nove.

     Desligou a televisão.

     "Fabrício, não faz isso!"

     De novo, o nome do delegado tornou a piscar em sua cabeça, dessa vez, negativamente. Disparos no peito e a ofegância com que jamais se acostumaria, possuíram seu corpo junto da dor que lhe dava uma angustiante vontade de chorar. Saulo não acreditava em paranormalidade, no entanto, os últimos acontecimentos estavam destruindo seu ceticismo. O qual só ganhou forças ao lembrar do episódio na casa de Fabrício, ou melhor, quando ele passou mal em sua frente. "Deve ser um aviso!" Tomou fôlego, ignorando o aperto na garganta e a umidade no canto dos olhos.

     De posse do celular, se deixou mirar aquele contato no momento exato em que a campainha ecoou. A ligação seria adiada. Ao chegar na maçaneta, não esperou um novo toque para abrir a porta, deixando o ar gélido do corredor contaminar o quarto morno.

     — Boa tarde, Saulo! — Luana soou séria demais para o seu gosto. — Poderia me acompanhar até o escritório?

     — Tá, eu só... — Vestiu a jaqueta. — Aconteceu algum problema?

     — Sinceramente? Não sei. A gerente só me pediu pra te levar lá.

     Passado o curto corredor, o qual ficava na área do hotel sem acesso aos hóspedes, Saulo assistiu Luana dar duas batidas na porta em tom fosco de verde abacate, e antes de qualquer outra coisa, a dita porta se abriu, de onde o sujeito de meia-idade utilizando um terno fino, deixou a sala, parando na frente dos dois.

     Seus cabelos tingidos, reluziam de tão pretos azulados.

     — Bom dia, prefeito Geraldo! — Luana prontamente o cumprimentou.

     — Bom dia, querida! — O homem mirou Saulo no fundo dos olhos, moveu os lábios enrugados como se fosse dizer algo a ele, mas sem mais nem menos, fechou a boca, enfim seguindo pelo corredor.

     — Obrigada, Luana. Pode se sentar, Saulo — soou a mulher ali dentro, a qual concluiu indicando a cadeira à frente de sua mesa.

     Esta, que possuía belos óculos sem armação na ponta do nariz, soltou a peça, deixando-a pendurada ao seu pescoço pela corrente de brilhantes.

     O som da porta sendo fechada acompanhou o jovem até o tal acento fofo.

     — Estou aqui porque mesmo? — A testa franzida deixou nítida a estranheza. Já havia se hospedado em incontáveis hotéis, porém, aquela estava sendo a primeira vez que foi chamado ao escritório.

     — Bom... — Tirou um envelope da gaveta à sua direita; o ruído, dala correndo de volta no trilho e chocando com o móvel, pareceu-lhe mais alto que o normal. Saulo estava ficando nervoso. — Tenho que te devolver isto.

     Ansioso e também, curioso, ele apanhou o envelope, depressa abrindo e topando com uma generosa quantia de dinheiro. Confuso, procurou os olhos escuros da mulher uns bons anos mais velha.

     — Não entendi.

     — É o valor que pagou adiantado. Infelizmente, você não pode mais ficar aqui.

-

     Exaustos, os policiais retornaram à delegacia depois da confusão que durou boa parte da manhã. Numa cidade pequena onde todos são praticamente vizinhos, brigas, fofocas e ameaças de morte envolvendo traições e honra ferida, eram bem comuns.

     Fabrício alisou o punho direito, sobre as escoriações.

     — Na próxima, é a minha vez de bater e você assistir — cobrou Alan, ao encher o copo descartável de café.

     — Vou pensar no seu caso. Já pensei: não. — Sorriu, livrando-se do cinto, o qual ficou na mesa junto à pistola, antes de relaxar as costas na cadeira. Alan ameaçou lhe jogar o copo vazio com o egoísmo do delegado. — Se não for pra descer o cacete nessas porras que são machos só com mulher, nem levanto da cama.

     — E a hora que ele chutou o cachorro? Quebrar apenas a cara foi pouco.

     — Tá, chega de falar dessa desgraça. — Jogou o corpo para frente, apoiando os braços na mesa. — O aniversário da Kelly está chegando.

     — Você vai?

     — Prometi que ia. Ela convidou o Saulo também.

     — E...?

     — Nada. Só comentei.

     — Uh... — Continuou encarando o delegado. — Você tá doido pra dar uns amassos no miúdo nessa festa que eu sei — acusou, vendo Fabrício sorrir de lado, entregando-se.

     — Quem come de tudo está sempre mastigando — piscou.

     Alan gargalhou, gostando do clima, pois isso o deixou à vontade para falar sobre outra coisa com a esperança de não levar patada.

     — Falando nele... Você emprestou aquela moto, pro Saulo?

     — Até que demorou pra você comentar... — Baixou os olhos, deixando o bom humor se esvair ao puxar uma das pastas amarelas do lado, folheando-a; evitava mirar Alan. — Emprestei, por quê? A gente perdeu o carro dele e eu nem usava aquela porcaria.

     — Tem razão, não usava. Nem trocava o óleo, nem lavava, calibrava os pneus; porque era eu que fazia isso tudo! — Seguiu até a sua bancada, sentando na ponta do tampo, de onde manteve os olhos no delegado, o qual respirou fundo. — Mas ignorando essa parte... Falam que aquela moto era do Nick. Era mesmo? Não dá pra acreditar em tudo que essa cidade conta.

     Fabrício não se atreveu a erguer a cabeça, contudo, cessou o movimento das páginas enquanto seu foco via apenas letras em forma de borrões; ouvir aquele nome na voz de outra pessoa era torturante.

     — Era! Agora... — Suspirou, tentando controlar o volume da voz. — Sei que você está com ciúmes porque acha que estou te deixando de lado, o que não é verdade, mas dá pra parar com esse assunto?

-

     — Como assim não posso mais ficar aqui?! — levantou o tom, inclinando o torso para frente e segurou a borda da mesa com ambas as mãos. — Me dê pelo menos um motivo!

     A expressão furiosa de Saulo fez a gerente levar o corpo para trás discretamente. Já as íris amarelas, ergueram-se para a parede; ele estava irritado demais para a olhar nos olhos. Ato que se arrependeu no instante em que viu o número piscando no calendário digital: 27. "Dois mais sete são nove!"

     Saulo engoliu em seco, tornando a encarar aquela mulher.

     — Você acabou de mostrar o motivo. Agora, por favor... — Apontou na direção da porta. — Tem até o final do dia para deixar o hotel.

     O estrondo vindo da porta esverdeada sendo fechada com violência, foi ouvido com nitidez na recepção. Interessada, Luana voou até um dos vasos decorativos, fingindo estar ajeitando as plantas, quando viu Saulo passar quase correndo sem ao menos notá-la, e novamente, um forte bater de porta completou o ambiente do Rochedo Verde.

     Cego de raiva, Saulo começou a socar todas as suas coisas dentro da mochila; envelope com o dinheiro, roupas, computador... Batidas na porta acompanharam seus movimentos.

     — Tô ocupado!

     Luana não só ignorou o aviso, como entrou no quarto e fechou a porta atrás de si.

     — O que ela disse?

     Saulo pausou o puxar do chaveiro em formato de lâmpada ligado ao zíper da mochila, para estudar o rosto de Luana; julgou a pergunta retórica no primeiro momento, mas encontrar um semblante confuso lhe convenceu de que ela realmente não sabia de nada.

     — Fui expulso do hotel. Tenho certeza que tem dedo daquele caipira drogado e do pai dele!

     — É assim que as coisas funcionam aqui. — Pôs as mechas onduladas atrás da orelha. — A cidade é do prefeito e do delegado; é como se fôssemos suas pecinhas de xadrez — desabafou.

     O jovem deixou a mochila de lado para se juntar à Luana, segurando suas mãos.

     — Como vocês aguentam essa ditadura?! Só estou esperando esse diacho de ponte ser consertada pra meter o pé daqui!

     — Não temos escolha; é o nosso destino. E o destino não pode ser mudado.

     — Égua! Claro que temos escolhas! Esse papo de destino imutável, pra mim não existe. Nós que criamos o nosso próprio destino a partir... — interrompeu-se.

     O coração acelerou imediatamente.

     Luana, sem entender aquela expressão assustada, puxou suas mãos da posse de Saulo. Quanto ao rapaz, este pensou em se trancar no banheiro e implorar por um psiquiatra. "Eu não quero ficar louco!" Fechou os olhos, bem apertados, desejando que quando voltasse a abri-los, o rosto de Luana fosse realmente o dela, e não o de uma criança, de olhos imensos e bochechas rechonchudas com sardas.

     — O que você tem? — Havia mais desconforto, e até medo, do que outra coisa naquele tom de voz.

     — Cansaço — mentiu, enfim abrindo os olhos e revendo o atual rosto de Luana. Respirou com alívio, sorrindo. — Tive insônia nesta noite.

     De cabeça baixa, Luana pôs uma das mãos no bolso do terninho, e ali, pareceu segurar algo. Mirando-a de cima, Saulo ergueu aquele rosto pelo queixo, retomando o contato visual. Íris âmbar desceram, apreciando lábios bem desenhados, os quais contavam com o batom nude rosado e deixava aquela boca ainda mais atraente. Sem se policiar, Saulo foi diminuindo a distância entre ambas as faces, inclinando a cabeça junto aos olhos se fechando no percurso...

     Um forte empurrão lhe derrubou na cama. Dali do colchão, sorriu com um ar cafajeste, deduzindo o que viria a seguir.

     — Você vai mesmo embora quando arrumarem a ponte? — O olhar nada contente, fez Saulo murchar seu sorriso.

     — Tenho uma vida, uma família em Panópolis.

     — Eu também tinha uma família, mas um monstro tirou ela de mim. Agora eu não tenho nada. Estou sozinha! — O grito repentino da recepcionista acarretou linhas à testa negra. Saulo até fez menção de se levantar, porém, desistiu com a aproximação de Luana. — Acho que não vou ter outra oportunidade para fazer isso.

     — Isso o quê? O que tiraram de você? Se quiser conversar...

     Ela riu, apesar dos olhos umedecidos durante o mexer no bolso.

     — Meu pai. — Uma lágrima espessa, desceu-lhe pelo rosto, deixando a área mais escura ao molhar a maquiagem. — Você matou meu pai!

     De dentro do bolso, uma pistola prateada foi tirada. O tamanho pequeno junto aos detalhes dourados, davam a falsa impressão de que a peça não era tão perigosa assim. Contudo, ver o interior escuro do cano apontado à sua testa, trouxe um calafrio incontrolável a Saulo. Sem reação, apertou o colchão ao lado de suas coxas, tentando controlar o medo que já lhe disparava um coração cansado daquela atividade.

     — Espera, você é a filha... Luana, não sei o que te contaram, mas não fui eu!

     — Me contaram?! Até cheguei a pensar que não tivesse sido você. Sempre foi tão gentil que quase me deixei levar... Não! Ninguém me contou! Eu vi! — Avançou outro passo, colando o cano frio na pele do rapaz. Saulo não conseguiu desviar seus olhos dos dela, estava travado. — Eu vi você saindo da minha casa! Ele... — Fechou a boca, abrindo-a um segundo depois. — me criou sozinho. Era provavelmente, a melhor pessoa nesta cidade; fazia de graça, o que o prefeito é pago pra fazer e não faz! Queria entender, por que entre tanta gente podre aqui, você... — Pausou para secar o rosto com o dorso da mão livre. — matou justo o meu pai!

     O pressionar mais intenso da pistola, fez Saulo levar a cabeça para trás; esquivando-se. O celular na mesa de cabeceira ganhou de imediato seu foco.

     — Então, a gente... — calou-se. Ele não sabia nem como perguntar. — Foi tudo de caso pensado?

     O choque, confusão e decepção eram tão fortes, que já tomavam o lugar do medo. Por um momento, Saulo se esqueceu daquela pistola enquanto tentava entender o propósito de Luana.

     — Mais ou menos. Quis te matar desde a primeira vez que te vi, mas assumo que quando descobri que era rico, vi uma oportunidade de deixar essa cidade nojenta! Só que, acabei me envolvendo mais do que eu gostaria... — Tomou fôlego. — Seria tão mais fácil se você tivesse comido aquele chocolate!

     Lentamente, Saulo desfez os apertos no colchão; suas mãos tremiam mais do que ele podia sentir.

     — Ok! Ok! Ok! Eu te tiro daqui! Te dou dinheiro, uma casa... Ou prefere apartamento? Gosta de dirigir? Abaixa a arma e a gente combina com calma.

     Lábios cobertos pelo batom se separaram, logo se unindo outra vez acompanhados do ar expelido por suas narinas. Saulo percebeu através do olhar congelado no seu, que Luana considerava a proposta tentadora. Por isso, tirou devagar, uma das mãos da cama, levando-a para cima de sua própria coxa; repetiu o movimento com a outra mão.

     — Quanto rico você é?! — A pergunta foi seguida do cutucão da pistola na têmpora de Saulo.

     Ele fechou os olhos.

     Saulo se sentiu um porquinho feito de cofre; uma simples peça de cerâmica, que vazia, não tinha valor algum, mas quando cheia, embora continuasse a não ter uma importância verdadeira, poderia ser estraçalhada sem nenhuma piedade.

     — Muito.

     — É uma pena, porque eu não quero nada que venha de você! — berrou, deixando mais lágrimas escorrerem. — Eu só quero o meu pai de volta!

     Pálpebras castanhas se ergueram de súbito.

     — Quer mesmo atirar?! Então atira! Se acha que sou um assassino, me mata de uma vez!

     Olhos dourados puderam ver o tremor ser expelido daquelas mãos delicadas e contaminar a peça metálica, a qual gerava pequenas sacudidas no cano da arma, como se uma bala fosse saltar de dentro a qualquer instante.

     "Dane-se!"

     Sem pensar nas consequências, Saulo agarrou aquele pulso, levantando-se enquanto forçava Luana a apontar a pistola ao teto. Naquele momento, o que prevaleceu foi a força física e agilidade; com isso, ele pôde empurrá-la até a parede e imobiliza-la sem esforços. Luana tentou se livrar do rapaz que não lhe deixava sequer abaixar a pistola, contudo, desistiu após as falhas tentativas.

     — Solta a arma!

     — Vai pro inferno! — Cuspiu no rosto dele em conjunto da pistola indo parar no chão depois do dolorido aperto recebido no pulso.

     Saulo rapidamente chutou a arma, soltando a recepcionista para limpar a bochecha no ombro da jaqueta.

     — Você é a prova que já estou nele.

-

     O rapaz com seu coque cacheado no alto da cabeça, dirigiu-se ao delegado carregando as páginas de mais um documento devidamente escrito e assinado por ele, que logo foi parar na mesa de Fabrício.

     — Só falta esse? — questionou o mais velho, sem demora apanhando a caneta presa pela corrente na mesa e deixando sua assinatura no campo reservado.

     Antes mesmo de Alan responder, asas longas, soando alto ao baterem no ar durante o voo certeiro, chamou a atenção daqueles dois homens. A pomba branca, repentinamente, pousou no canto da mesa de Fabrício, permanecendo ali o encarando. E, como se tivesse se assustado, levantou voo, deixando a delegacia por onde entrou no instante em que o celular do delegado vibrou sobre a mesa escura.

     Notando os olhos do escrivão concentrados no celular sob a capinha com peixes fumantes, Fabrício terminou sua assinatura com um laço torto e, exibindo certa urgência, afastou o flip da tela, atendendo rápido a ligação.

     — Saulo, seja ligeiro. Tô meio ocupado.

     — A Luana... — Arfou. Ele não tinha ideia de como começar.

     Identificando o tom assustado e talvez até, choroso, Fabrício fechou o cenho, intensificando as rugas em sua testa conforme guiava toda a audição à voz do outro lado da linha.

     — O que a Luana fez?

     Alan de imediato, passou a prestar atenção no diálogo.

     — Ela... tentou me matar.

     — Inferno! — resmungou, pondo-se de pé. — Onde você tá? Ela ainda está aí? Você tá ferido?

     Aquela preocupação não passou despercebida por Alan. Não que Fabrício fosse frio com as vítimas que eles tinham a obrigação de proteger, contudo, julgou as expressões do delegado um tanto exageradas.

     — Sozinho, trancado no quarto.

     — Quê? Mais devagar.

     — Égua! Estou sozinho... trancado no quarto do hotel!

     — Beleza. Não sai daí. Tô chegando.

— ⚡️ —

     Garganta seca, diferente dos olhos que lutavam para lavar o rosto angustiado contra a vontade do dono. Saulo não se permitiria chorar; não naquele momento. Ele queria sentir raiva, apreciar aquele sentimento ruim e amaldiçoar mentalmente, todos os habitantes daquela cidadezinha. Esfregou as palmas sobre os olhos, sentindo um frescor momentâneo na região febril, por conta de às mãos frias. Dali, viu a pistola quase infantil, porém extremamente perigosa, no canto, ao pé da cama, quando três batidas fizeram a porta vibrar às suas costas.

     Assustou-se graças ao transe profundo no qual se encontrava.

     — Abre a porta, Saulo.

     Se nos primeiros dias em Irazal, lhe contassem que ouvir a voz do delegado lhe causaria aquele alívio indescritível, Saulo daria uma debochada e alta risada.

     Colocou-se de pé, sentindo o efeito passageiro devido ao tempo sentado no piso rígido e destrancou a porta. Antes de qualquer palavra ser dita, Saulo apontou na direção da arma que Fabrício prontamente travou, e... "Eu conheço essa... Porra, Alan!" guardou-a na pochete que fazia parte do cinto, o qual perdera o contraste em razão de a calça também preta. Em compensação, o distintivo em tom metálico e vermelho encaixado no adereço policial, ganhou destaque.

     — Por que não me avisou?

     Não houve especificação naquela pergunta, mas Fabrício entendeu perfeitamente o que o rapaz de olhar desgostoso quis dizer.

     — Eu tentei. — Foi na direção do outro, contudo, Saulo se esquivou, fugindo do toque.

     — Tentou, né? — Quis rir, se contendo. — Melhor treinar mais, você é péssimo em mandar sinais! Eu pensei que você estava com ciúmes dela, égua!

     — Um pouco era ciúmes, só que de você. — Encarando o jovem, pousou as mãos nos quadris. — Vai querer registrar o B.O. ou que eu te dê um beijo?

     Apresentando uma suave curva nos lábios, Saulo substituiu a resposta pelos passos acelerados até o delegado, puxando-o pela camisa, o qual rapidamente retribuiu não só o beijo de um rapaz carecendo de amparo, como também o envolveu com braços convertidos em abrigo. Mão, não mais fria ou trêmula, livrou a camisa social com cheiro de cigarro de alguns botões inoportuno, depressa acariciando o peito firme em meio aos pelos grisalhos. Fabrício não poupou o suspiro com o toque muito bem recebido. Apesar de a juventude atiçar seus hormônios, os quais clamaram para que puxasse o mais velho até aquela cama, Saulo tinha que resolver um outro problema.

     Parou o beijo e se aconchegou no peito exposto de Fabrício, abraçando-o com a mesma intensidade.

     — Não posso mais ficar aqui — contou. — Antes, meio que fui despejado. Parece que a gerente é amiguinha do prefeito.

     Fabrício nem disfarçou o respirar profundo enquanto acariciava a nuca do jovem.

     — Amante, na verdade — entregou. — Isso é coisa do Leandro; deve ter chorado pro pai... Enfim. Não posso fazer nada; não me intrometo nos assuntos do prefeito.

     Quase insultado, Saulo interrompeu o abraço para encontrar os olhos cinza.

     — Quê?! Não! Eu que não quero ficar aqui!

     — Então, você quer que eu faça o quê, Nick?

     — Primeiro, que pare de me chamar de Nick! Segundo, já que não tenho mais um carro pra dormir dentro, conhece outro lugar para eu ficar? Pousada, sei lá... Quartinho de empregado; estábulo... — soou com certa irritação e drama.

     Fabrício, no entanto, tentou esconder o constrangimento por mais uma troca de nomes conforme abotoava a camisa de cabeça baixa.

     — Estábulo conheço um monte. — Depois de ser recebido pela expressão do outro sem um pingo de graça, Fabrício deu uma breve olhada no quarto; em especial, na mochila sobre a cama. — Faz assim, Saulo, pega suas coisas. Na delegacia, a gente vê isso.

-

    Moto e viatura seguiram lada a lado, um acompanhando a velocidade do outro em meio à estrada ganhando tons de laranja e sombras crescentes naquela tarde fria. Por vezes, Saulo espiava o motorista dentro do carro preto, topando com um delegado tranquilo atrás do volante guiado somente com uma mão, já que o outro braço, descansava na janela aberta. Cabelos grisalhos, dançavam com a ajuda do vento agradável, deixando o penteado um tanto desordenado e jovial. Saulo quebrou o contato visual de súbito, sentindo-se um pouco envergonhado. A razão fora os olhos relaxados de cor fria, os quais semicerraram imediatamente com a ajuda das sobrancelhas pesadas e semblante rígido.

     O flagra lhe obrigou a mirar as montanhas no horizonte entre a vegetação enquanto os fracos raios de sol brilhavam em seu alargador.

     — Olha pra frente, garoto! — berrou pela janela, buzinando. — O que eu disse sobre pilotar igual gente civilizada?!

Continua...

Notas Finais

Este é um dos meus capítulos favoritos, em especial a parte 2 (são 3 no total; sim, é um capítulo grande 😱 corre!), porque através das pesquisas, tive conhecimento sobre algo histórico que infelizmente nunca me ensinaram na escola. Fiquei na bad, confesso :/

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top