Capítulo 10 - Privilégios
"Desconfiado, o inventor recuou ao se dar conta de que uma espécie de nave passava pela abertura ainda mais clara, ficando inclusive difícil de olhar devido à intensa luz forte. Chegou a pensar que seria mais uma daquelas visões, nas quais conhecia e testava suas invenções mentalmente, contudo, a imagem da excêntrica máquina negra estava cristalina demais... e avançava pouco a pouco. Possuía muitas curvas, pneus pequenos e extremamente largos, além do excesso de vidros. Julgou ser uma criação alienígena, já que fechada daquela forma, poderia ser usada também para viajar pelo espaço.
Até que os raios pararam repentinamente junto aos ruídos elétricos.
O silêncio era quase palpável.
Embora o círculo luminoso ainda estivesse aberto e jorrando luz para todo o laboratório, rodas não mais giravam; a nave não mais se movia, encontrava-se parada. Metade visível e metade oculta dentro da fenda. Nikola fazia menção de se mexer quando, assustado, ouviu um som diferente durante o abrir da porta; suas costas se chocaram com o cercado e por um triz não foi parar do outro lado com o brusco movimento; recuara às cegas.
Sua surpresa viera mesmo com a próxima cena.
Não foi um alienígena que saiu da nave, mas sim um jovem e desnorteado, humano."
— ⚡ —
Bocejou, esfregando o canto do olho conforme seguia pelo corredor com paredes esverdeadas e um belo carpete num verde mais escuro; a frieza de seus dedos lhe obrigou a sair um pouco daquele quarto de hotel nem que fosse para se aquecer caminhando.
Novamente, havia tido mais um sonho vivido; Saulo tinha a sensação de que eram um, continuação do outro. O problema, foi que conforme os dias passavam, as lembranças daqueles primeiros sonhos iam ficando cada vez mais distantes em suas memórias. Ainda assim, sentia que uma determinada imagem do recente sonho não sairia tão fácil de sua cabeça:
"Fui eu que saí daquele carro."
Quadros de paisagens de Irazal lhe fizeram companhia até chegar no final do corredor — iria aproveitar que estava ali e avisar na recepção sobre o defeito no aquecedor. Ele próprio poderia tentar consertar, porém, a preguiça falou mais alto.
O forte som de algo se quebrando, semelhante a um copo de vidro, foi o responsável pela súbita interrupção de seus passos.
Exibindo costas cobertas pelo moletom escuro e de capuz, Saulo viu uma pessoa debruçada no móvel; conversava com a recepcionista atrás do balcão, e, a julgar pela maneira que mexia uma das pernas, somada à expressão aflita de Luana, parecia haver um clima tenso naquela conversa. O vaso quebrado no chão junto às flores em meio aos cacos, fez Saulo deduzir que fora a pessoa encapuzada quem o quebrou.
— Vou embora se repetir aquela mensagem olhando na minha cara! — Diferente de Luana que cochichou algo inaudível, o rapaz soou até que alto demais. — Acha mesmo que não foi ele ou só está querendo me fazer ciúmes?! Já disse que essa história de bordel é invenção dessa gente mal comida! — Deu um tapa no tampo de madeira, fazendo Luana dar um sobressalto com o som.
A partir de então, Saulo não conseguiu mais continuar naquele canto escondido. Deixou o corredor, depressa ganhando os olhos assustados de Luana. O sujeito diante dela, por sua vez, notou, virando-se para trás e topando com o estudante se aproximando.
— Melhor alguém limpar isso. — Apontou ao chão. — Alguma criança pode se cortar.
— Já vou chamar o moço da faxina. Precisa de alguma coisa?
— Sim, o aquecedor não está funcionando. Tem como ir dar uma olhada? — Ao concluir, mirou o rapaz de capuz e de uma palidez que não parecia saudável, o qual ainda escorado no móvel, não tirou os olhos de Saulo desde que ele surgira ali. Olhos claros, o que intensificou o quão dilatadas estavam suas pupilas.
— Tá me olhando desse jeito por quê?! Tá querendo chupar o meu...
— Leandro, por favor!
"Leandro..." Saulo lembrou de imediato daquela mensagem vista no celular de Luana.
— Por favor o quê, Luana?! — Outro tapa desferiu na madeira.
Não só isso.
Leandro endireitou a postura, indo para cima de Saulo que nem se mexeu. Momento em que Luana aproveitou para enviar secretamente uma mensagem. Já o encapuzado, manteve-se encarando o outro bem de perto, inflando o peito para intimidar o mais magro, ato que não abalou Saulo em nada. Muito pelo contrário; o estudante não quebrou o contato visual nem por um segundo. Além disso, aquela proximidade contribuiu para que Saulo sentisse o forte cheiro de álcool.
— Que tal você sair daqui e ir curar essa cachaça em outro lugar?
Uma risada alta surgiu.
— Tá ouvindo, Luana? Seu amiguinho me chamou de cachaceiro. — Tornou a mirar Saulo com certo desdém no olhar. — E vê se fala mais devagar, nordestino, tudo isso é medo? — Voltou a rir, sozinho. — Isso aí na sua cara foi o delegado que fez? Ouvi o povo comentar sobre o seu chilique no restaurante.
O hematoma, apesar de já discreto no rosto de Saulo, ainda era possível ver se olhado de perto.
— É... foi ele. O Fabrício é apaixonado por mim — ironizou. — E eu sou nortista.
— Sério? Foda-se! — Não se conteve e empurrou Saulo entre o peito, fazendo-o recuar e pisar nos cacos do vaso, logo abaixando os olhos no impulso, e... um calafrio lhe tomou a espinha ao contar seis rosas amarelas perdidas no chão. A necessidade de fugir daqueles números o fez voltar a focar Leandro. Não havia só efeito de álcool e drogas naquele rosto. Era possível sentir inclusive a raiva exalando pelos poros do rapaz. — No final, é tudo a mesma bosta! Seca, miséria e um bando de desnutrido igual a você. — Riu, deixando os nervos de Saulo a ponto de explodirem; mesmo assim, controlou-se. Não queria que Luana visse seu lado furioso. — Aliás, ouvi dizer que você tem muito dinheiro. Veio do tráfico ou de tanto mamar nas tetas do governo? — Gargalhou.
O pingo de autocontrole quase evaporou devido às chamas dançando nos olhos de Saulo. Chamas estas que já lhe tomavam conta das bochechas, trazendo o tom de vinho à pele, assim como também serviam de combustível para a aceleração em seu peito.
— Conhecer um preto rico dói tanto assim?!
O ar humorado desapareceu da face de Leandro no mesmo minuto.
— Não, desde que ele saiba se colocar em seu lugar!
Assentindo, Saulo cruzou os braços junto ao entortar da boca; no percurso, pressionou forte os dentes no interior do lábio. Estava cada vez mais difícil se manter calmo. Ato refletido nas mãos camufladas pelos braços, as quais formaram punhos apertados e sem demora lhe marcaram as palmas com as unhas.
— E qual é o meu lugar?! — Saulo já escutava as batidas de seu coração soarem de dentro dos próprios ouvidos.
Leandro, recuperando o humor ácido, sorriu sem pudor como se tivesse adorado a pergunta.
— Na senzala.
A cena a seguir, de tão veloz, mal fora vista por Leandro, muito menos por Luana, mas para Saulo, pareceu ser exibida em câmera lenta. Mãos antes presas nos braços cruzados, deslizaram para fora, aos poucos, mantendo os punhos cerrados em conjunto dos tais braços pousando ao lado do corpo. Não por muito tempo. O direito ergueu-se, dobrando enquanto tomava impulso para trás: seu destino piscava, sorridente feito um alvo impossível de errar.
E ele não errou.
Sua audição passou a captar só os ruídos de sua respiração; cheiro, apenas das flores no piso; visão, somente do vermelho na pele do sujeito. Saulo absorveu parte do impacto gerado pelo choque de seu punho no rosto girando para a esquerda; desequilibrando o rapaz. Não parou. Outro golpe no mesmo lugar apareceu; este mais forte e enfim derrubando Leandro sentado no chão, o qual teve os cabelos negros revelados ao perder a proteção do capuz.
Vendo-o naquela posição tão vulnerável, Saulo sentiu que precisava continuar. Passos rápidos foram dados; semblante completamente fechado. Leandro usou as pernas e mãos para manter distância; recuando sentado até encontrar um pilar esculpido em madeira. Contudo, teve as cordas do capuz violentamente puxadas assim que o outro se agachou diante dele.
— Se eu soubesse que seria tão fácil te derrubar, não teria deixado você latir tanto — sussurrou.
— Pare com isso! — pediu uma funcionária que Saulo nem notou chegar, tocando-o no braço, e como se implorasse para ser visto, o número no botão preso ao bolso de seu uniforme verde cintilou a ele. "Três". — Nossa patroa não gosta de brigas aqui dentro!
As súplicas de Luana, que até aquele momento estavam bloqueadas para o hóspede, também passaram a tomar seus ouvidos. No automático, Saulo procurou o rosto dela, não tinha a intenção ser visto daquela maneira; causar medo em Luana era a última coisa que queria. No entanto, ali no painel de chaves às costas dela, pousada no gancho livre, encontrava-se a pomba branca.
Abaixo da ave, reluzia o número seis. "Meu quarto."
— Leandro! — gritou a camareira.
Dessa vez, quem não teve tempo de ver a cena fora Saulo.
Seu corpo foi empurrado para que suas costas grudassem com força no piso frio. Saulo nem se atreveu a reclamar, pois, pressionando-lhe a garganta, estava a lâmina, na qual refletia a luz do ambiente nos olhos do sujeito sobre seu corpo e completava aquele punhal. Os outros funcionários do hotel já se encontram no hall, aflitos com a confusão. Um deles, narrava o ocorrido para alguém pelo celular.
A consequência do olhar apavorado de Saulo proporcionou um sorriso aos lábios sangrando.
— Ué? Tá tremendo por quê, nordestino? Sabe qual é o problema de vocês? É achar que só porque têm dinheiro, vão deixar de estar por abaixo! — Leandro forçou o punhal.
— Vai... me-me matar... por causa de-de dois socos? — soou em um murmuro, e engoliu em seco, sentindo a lâmina lhe pressionar ainda mais a pele.
Leandro não exagerou; Saulo estava realmente tremendo, embora imóvel. Nada em seu corpo se movia, além disso; apenas piscava por ser um movimento involuntário. Encontrava-se paralisado; com medo de que até sua respiração fosse capaz de dar combustível para aquele rapaz lhe tirar a vida. E se saísse vivo, sabia que aquelas pupilas extremamente negras e imensas, ficariam gravadas em sua mente.
— Talvez. — Deslizou o punhal devagar, formando uma pequena linha vermelha na garganta de Saulo. — Estou me decidindo ainda...
Entre uma piscada e outra, Leandro sem mais nem menos se afastou, com urgência e desespero, deixando Saulo sozinho no chão como se houvesse visto um demônio sanguinário. Hesitante, ele ergueu o torso, sentando-se e nem percebendo que todos os olhares no hall foram guiados para a mesma direção: entrada do Rochedo Verde. Seu estado de perturbação em meio aos batimentos acelerados, só lhe permitiu acariciar a garganta para verificar se algo escorria dela.
— Graças a Deus você chegou! — A voz era de Leandro, mas Saulo não quis olhar para cima e descobrir quem entrara no hotel; em vez disso seguiu os sons dos passos, topando com um par de botas escuras. — Ele ia me matar, Fabrício! Olha como tá a minha cara!
Apenas ao se dar conta de que o olhar cinza estava concentrado em sua mão, Saulo desceu o próprio foco, deparando-se com o... Relaxou os dedos, deixando o punhal rapidamente encontrar o chão entre suas pernas; o qual caiu com o pesado cabo metálico para baixo e trouxe o repentino barulho ao local.
Depressa, pôs-se de pé, fugindo da arma.
— Chuta pra cá! — Fabrício pediu e Saulo nem hesitou em obedecer, o qual assistiu ao punhal parar na bota do policial e ser guardada por ele na pochete em seu cinto. Adiante, o delegado foi até Leandro, puxando seu rosto com força, de modo a apertar as bochechas com uma só mão e por fim, inspecionar aquelas pupilas dilatadas. Soltou-o sem delicadeza, fazendo-o quase tropeçar. — Agora os dois arruaceiros pra delegacia!
— Não! É dele! — Percebendo o que acontecia, o estudante correu de encontro a Fabrício, apontando Leandro. — Essa faca é dele!
— Minha?! Estava na sua mão! Todo mundo aqui viu você me socando e depois tentando me matar!
Rosto por rosto, de cada funcionário, foi analisado pelo policial, os quais evitavam o contato visual com o homem grisalho. Ele sabia a razão. Sem alternativas, Fabrício respirou fundo e tirou as algemas do cinto.
— Égua! Tá tão louco de droga, caipira?! Você colocou ela na minha mão!
— E este corte aqui — Leandro puxou o lábio inferior para baixo, exibindo um ferimento e dentes manchados de vermelho. —, fui eu que fiz também?! A gente que mora no mato, mas pelo visto os animais tão tudo lá na cidade grande... comendo banana! — Terminou com somente o mexer dos lábios.
Retomando toda a fúria de Saulo.
— Quer saber?! Eu devia ter te batido mais e de preferência, cortado essa sua língua!
— Viu? O nordestino assumiu.
Ao notar que o clima esquentava e que Saulo já dava indícios de querer voar em cima do outro, Fabrício se pôs entre eles, dando as costas a Leandro após afastá-lo com violência pelo peito. Alguns funcionários já haviam voltado aos seus trabalhos, os mais curiosos, ainda permaneciam ali. Uma delas era Luana, calada atrás do balcão e carregando uma expressão indecifrável.
— Vira, garoto.
— Eu soquei ele, mas a faca não é minha! — Olhos amarelos ganhavam umidade; era choro de raiva.
— Saulo, vira!
Sorridente, Leandro cobriu os cabelos de volta com o capuz enquanto assistia à cena satisfeito.
— Fabrício, eu juro... — Foi interrompido pelo rodopiar forçado de seu corpo. Fechou os olhos, de modo que lágrimas escaparam em meio aos cílios. — Ele colocou a faca na minha mão! Diacho!
O delegado segurou os pulsos de Saulo junto ao discreto som das algemas.
— Eu vi, agora fica quieto! — sussurrou próximo ao ouvido do jovem, o que levantou as pálpebras dele imediatamente. A seguir, a primeira algema contornou o pulso dele e o clique, informou que ela foi fechada. De imediato, um gemido de incômodo soou dos lábios castanhos. — Muito apertado? — tornou a sussurrar. Saulo fez que sim com a cabeça; e sem demora, Fabrício ajustou a peça de aço. — Melhorou?
Continua...
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