Capítulo 10 - 💡💡
Com Saulo devidamente algemado, Fabrício o segurou pelo cotovelo, mas antes de enfim deixar o Rochedo Verde, virou-se para Leandro.
— Daqui a pouco tô de volta e se você ainda estiver aqui, não será pra delegacia que te levarei; vou te entregar direto pro seu pai; só não prometo que chegará inteiro!
O pavor transformou o rosto de Leandro em uma pedra de mármore, o qual fez que ia se pronunciar, contudo, sem ficar para ouvir, Fabrício se ocupou em guiar Saulo até a viatura. O ar frio junto ao escuro estrelado, acabou por trazer um resquício de calma ao prisioneiro.
Não queria, mas teria que seguir o protocolo — ou parte dele. Sua intenção era simular um sermão ali mesmo e depois liberar Saulo, entretanto, deduziu que Leandro não iria embora enquanto não visse o turista dentro do carro de polícia. Portanto, após alcançar a porta do passageiro, Fabrício logo trancafiou Saulo no banco de trás, o qual se encolheu, evitando ao máximo ficar visível pelo lado de fora e dar ainda mais prazer para o sujeito de capuz preto, conforme a viatura seguia pela estrada iluminada somente pelos faróis do carro.
Por mais que aquela humilhação tivesse lhe trazido uma vontade insuportável de chorar, ele não faria isso. Sabia que era forte o suficiente para enfrentar mais um caso como aquele. Não era o primeiro e infelizmente não seria o último. No entanto, em todos os outros, os quais perdera as contas de quantos foram e nem o seu status fora capaz de evitar, Saulo conseguiu se controlar; ignorava os insultos e jamais revidava; como sua mãe lhe ensinou. Ainda assim, por algum motivo, em Irazal seus nervos estavam a cada dia mais à flor da pele.
— Se você viu tudo, por que estou algemado e não ele?! — questionou, recebendo apenas o silêncio e o breve olhar cinza através do retrovisor interno. — Dá pra responder?! — Diante de uma nova ausência de resposta, concluiu chutando o banco da frente em total fúria.
A brusca freada trouxe a Saulo um forte choque contra o banco, o qual teria sido amenizado caso tivesse ao menos as mãos livres de apoio. Dali, pôde ver pelo para-brisa a silhueta de uma árvore na curva da estrada escura, porém sua atenção rapidamente seguiu Fabrício, que impaciente deixou o banco do motorista, jogou a franja para trás e depressa, abriu a sua porta.
— Tá querendo que eu bata essa porra?! Sai do carro!
O receio fez o jovem preferir continuar lá dentro.
— Pra quê? Vai me bater?
— Nem se você pedir.
Disfarçando o quanto gostou da resposta, Saulo não se demorou a pôr as pernas para fora, jogando o corpo em seguida. Afastou-se ao perceber que o delegado impetuoso já batia a porta novamente. "Pelo visto não é de mim que ele está com raiva", constatou. Ainda algemado, viu calado, Fabrício se mover em direção à traseira do veículo e acender um cigarro, dando uma longa tragada com o olhar vago. Ele precisava do veneno para aliviar a tensão.
— Você deu sorte de eu estar resolvendo uma confusão aqui perto — soprou a fumaça. Uma calmaria se instalou por fim; apenas os sons dos grilos, tragadas e sopros ocuparam os ouvidos de ambos pelos próximos segundos. Saulo ainda se encontrava estressado; era melhor economizar as palavras. — Leandro é filho do prefeito.
A partir de então, o outro riu, aproximando-se.
— Quer mesmo debater comigo sobre quem de nós, tem o pai mais poderoso?! Porque o meu pode comprar essa cidade inteira se ele quiser!
"Sempre arrogante", Fabrício coçou um dos olhos.
— Não precisa gritar, estou do seu lado - reclamou, destacando o final. — E não se trata de quem tem o maior poder e sim do poder que me interessa. Eu e o pai dele temos um acordo. — Soltou a fumaça para o lado, mirando o breu no horizonte. — Geraldo desistiria de urbanizar Irazal e eu parava de quebrar o garoto na porrada. Inclusive, hoje você me fez um favor.
Saulo preferiu apoiar as costas no vidro posterior da viatura; apesar do cheiro de nicotina, o ar fresco estava relaxante. Olhou ao céu, encantando-se com o véu de estrelas cobrindo a Terra. Fabrício fez o mesmo, no entanto, de um outro ângulo; admirou aqueles pontinhos luminosos refletidos em íris douradas.
— Por que não quer que a cidade seja urbanizada?
— Foi a única forma que encontrei de congelar o tempo.
Globos amarelados baixaram, permanecendo distantes enquanto tentavam traduzir aquelas palavras sem nenhuma lógica aparente, porém, logo se voltou ao delegado, percebendo que o mais velho já o encarava e o que sentiu como efeito daquele olhar foi confuso. Desconcertante.
— Não entendi.
— Mudar é o mesmo que esquecer o que aconteceu lá atrás e se eu não consigo, não quero que ninguém esqueça.
— O que aconteceu lá atrás?
Fabrício fechou o cenho, quebrando o contato visual durante outra tragada, junto ao suspiro involuntário o qual expeliu a fumaça sem querer.
— Qual foi o motivo da briga? Fiquei curioso — desconversou, fazendo Saulo deitar a cabeça no teto da viatura e fechar os olhos. — Aposto que foi por ciúme da Luana.
— Não. Pelo menos não da minha parte. O motivo foi porque estou de saco cheio das pessoas desta cidade — desabafou. — Acho que morri e vim parar no inferno.
— Então devo ser o diabo. — Forçou um riso, completando a boca outra vez com o cigarro.
— Olha, vou ter que discordar. — Rindo, Saulo girou o rosto exibindo um sorriso carismático e iluminado pelo farol, o que deu vida ao novo contato visual; um mais profundo, vivo. Mantendo fielmente a ligação via olho no olho, Fabrício levou o cigarro, segurado com a ponta do polegar e indicador, à boca mais uma vez, puxando o veneno sem se dar ao luxo de piscar. Devagar, Saulo desfez o sorriso ao se sentir conduzido por aquele olhar dominante; magnético... Limpou a garganta, tornando a observar as estrelas. Era mais seguro. — E o carro do meu pai?
— Estamos procurando.
— Sei... Vai! Me solta, delegado.
— Por quê? Não é você que tem fetiche por algemas? — Diante da expressão espantada de um Saulo fazendo menção de dizer algo, mas se limitando a somente segurar o riso, Fabrício soltou o cigarro pela metade no chão e, durante o apagar da brasa laranja com a sola da bota, tirou as chaves do cinto.
Os passos que o guiaram até o jovem, soaram mais audíveis que o normal, culpa do silêncio exagerado e característico da noite no interior. Sem esperar o pedido, Saulo se virou de costas, para de cabeça baixa, aguardar seus pulsos serem libertos; havia um nervosismo nascente em suas veias. Pulsos os quais primeiro receberam um toque morno; toque que pulou as algemas e desceu às palmas, lentamente, deixando um rastro formigante nas mãos imóveis; frias. À procura do rosto de Fabrício, ergueu a cabeça, encontrando através do vidro traseiro da viatura apenas um contorno facial iluminado e quase invisível em meio à sombra.
O emaranhamento mental possuiu Saulo assim que percebeu seus bíceps sendo segurados e seu corpo girado de supetão. Argolas metálicas ainda lhe contornavam os pulsos e linhas questionadoras invadiram sua testa no momento em que Fabrício excluiu não só a distância entre os dois, com também as forças de Saulo. "O que é que esse delegado vai..." Dos bíceps, mãos firmes correram pelos braços castanhos sobre o atípico agasalho de lã, deslizando para baixo, rumo às mãos algemadas às costas do mais baixo e unindo por consequência, seu torso ao dele.
Outra vez, os tais pulsos foram alcançados e os olhares interligados, não quebraram o vínculo nem por um segundo. Saulo abriu a boca, mas nada pôde falar. Perdera as palavras e os movimentos do corpo. O cheiro de cigarro estava muito forte, contudo, nem se quisesse, conseguiria prender a respiração, dado que Fabrício guiava dessa vez, o próprio rosto na direção do seu.
A descarga elétrica e imperceptível, ocorreu graças à união da ponta fria de ambos os narizes; exalavam faíscas rosadas que não podiam ser vistas a olho nu. Já a pequena curva nos lábios de Fabrício surgiu no instante em que Saulo, com o coração controlado pela aceleração, não se conteve e fechou os olhos.
Ruído metálico, discreto, porém evidente, ecoou pela estrada escura junto ao gradativo afastamento do mais velho. Som responsável pelo erguer de pálpebras e permitiu que íris âmbar flagrassem o delegado balançando as algemas antes de as prenderem novamente no cinto. Engolindo em seco, Saulo soltou o ar dos pulmões com força, ainda sem reação enquanto alisava o próprio pulso e encarava Fabrício de modo... decepcionado.
— Não quero que pensem que estou te dando privilégios, então quando chegar no hotel, fale que me pagou caro para eu te liberar.
— Com dinheiro? — O olhar inofensivo fez parte do tom passivo agressivo. Se não fosse pela lanterna da viatura naquela escuridão, Saulo não teria visto o sorriso libertino à sua frente.
— Com o que mais seria? — Os polegares, encaixou entre o cinto e a calça jeans, em uma pose despreocupada.
— Não sei... me diz você.
Após estudar Saulo por um momento, Fabrício inclinou seu rosto para a direita sem tirar os olhos do outro. Estava difícil de conservar o semblante rígido.
— O que é, garoto? — Um rápido aceno com a cabeça serviu para acentuar aquela interrogação.
— Égua! Eu é que pergunto! O que foi isso?! — Não fez questão de sustentar o tom natural, continuando a alisar do pulso.
— Isso o quê? — A voz mansa só fez irritar ainda mais o estudante.
— Não se faça de sonso, delegado!
Tranquilamente, Fabrício cruzou os braços. Não queria demonstrar, mas se divertia com o diálogo. Em contrapartida, cansou de assistir Saulo esfregando o próprio pulso e foi até ele, tomando a liberdade de lhe levantar o braço e inspecionar de perto a área antes contendo a algema.
— É... estava apertada mesmo. — Logo, virou a mão do outro, encontrando escoriações nos nós daqueles dedos. — Vou pegar um curativo.
— Não precisa. — Puxou o braço, incomodado com a aproximação do delegado.
— Por que você está com raiva, exatamente?
— Não estou com raiva!
— Então você gostou?
— Do que eu gostei?
— Não sei, me diz você.
O riso sem graça deixou os lábios marrons do estudante.
— Boa noite, delegado.
Com urgência de sair dali — mas especificamente, de perto de Fabrício —, pôs-se a caminhar rumo ao hotel. Tênis transparentes passaram a marchar sobre a estrada escurecida, afundando na terra junto aos pedaços secos em pequenos torrões. O que gerou um eco desconfortável semelhante à mastigação e lhe fez pisar com mais sutileza para evitar os sons.
— Desculpa.
Pés de imediato estacaram, logo girando na direção do dono daquela subida fala.
Fabrício, que não havia sequer entrado na viatura, ainda se localizava ali. Um dos pés sob o coturno pousava sobre o outro; mãos de volta escondidas nos bolsos acompanharam a traseira do carro lhe servindo de apoio. Seu rosto quase que totalmente tomado pelo escuro — com exceção do nariz e queixo, assim como o topo dos cabelos destacados pela luz da lua —, não deixou visível o sentimento conflitante naquele peito.
— Pelo quê? Seja mais específico. Você me deve tantos pedidos de desculpas.
Fabrício riu sem pudor.
Contudo, ao vê-lo se afastando, o qual já se encontrava totalmente apagado e fora do alcance dos faróis, Fabrício deixou a viatura para trás antes de carimbar as marcas de suas botas na terra grossa durante a corrida impulsiva.
— Eu só precisava saber se era recíproco.
Ele não pensou no ferimento naquele pulso ao segurá-lo subitamente e Saulo também não se abalou ou se importou com o pequeno desconforto que sentiu na região, pois, no escuro que só não estava absoluto graças à lua, teve a cabeça puxada pela nuca e a boca ansiosa carregando um excesso de vontade, dominou seus fartos lábios de cor viva, sugando-os com a mesma ânsia que eram devorados.
Línguas entusiasmadas, moldando-se uma na outra em meio às salivas partilhadas, gosto de cigarro e narizes disputando o espaço e o ar que não tinham, deram origem à sensação mútua e única; embriagante. Dedos finos com urgência subiram, puxando ambos os lados da camisa social e tentando a todo custo se unir ainda mais ao homem curvado para igualar suas alturas. O qual logo passou a portar o rosto jovem, sentindo os pinicantes pelos faciais com mãos que, apesar de ásperas, estavam cobertas de doçura conforme interrompia o beijo relâmpago e recuava sua cabeça pouco a pouco.
— Égua! — Saulo reclamou, depressa se pondo na ponta dos pés para continuar porém, Fabrício desviou sua própria boca para a testa do estudante, onde estalou um beijo e se afastou em definitivo.
— Volta pro hotel. Por hora é melhor ninguém ver a gente assim. — Fez um aceno com a cabeça na direção que Saulo deveria seguir; apressando-o. — Preciso pelo menos fingir que sou imparcial pra isso aqui não virar um bang-bang.
— Uhm... — Desconfiado, manteve-se parado. — Você não é casado não, né?
A risada do delegado, embora baixa, exibiu quase todos os seus dentes.
— Deus me livre! — Não se segurou e tascou outro beijo no mais novo, com direito ao enrolar em seu dedo, de um dos cachos dele. — Vai logo, garoto. Meu autocontrole está passando.
Saulo acabou sorrindo e, antes de retornar ao seu trajeto, disse:
— Tá desculpado.
— ⚡️ —
Rolou novamente na cama, ficando de frente à janela fechada e levou mais ar aos pulmões. Ao chegar no hotel, encontrou uma das camareiras na recepção, contudo, mesmo sabendo que naquele dia o turno da noite era de Luana, não fora o fato de não tê-la visto que lhe tirou o sono.
O pequeno feixe alaranjado, este vindo das luzes do jardim e adentrando no cômodo através da abertura entre as duas cortinas, deu origem à meia-luz, a qual criou um rastro iluminado em seus olhos, dando ainda mais ênfase no tom de ouro daquelas íris.
— Égua... — sussurrando, tocou os próprios lábios e cobriu a cabeça com o travesseiro como se isso fosse eliminar aqueles pensamentos. — Por que parece que não foi a primeira vez que beijei ele?
Entretanto, aquele travesseiro não foi capaz de camuflar o forte trovão. Nem percebera quando começou a chover e ainda que tomada pelo escuro, o quão sombria sua mochila parecia contornada pela iluminação externa ali na mesa. De dentro dela, pôde ver parte do rádio exposto, o qual também carregava contornos cintilantes.
Em poucos segundos o tal rádio já havia sido pego e Saulo, retornado à cama. O clima frio e chuvoso lhe obrigou a não ficar muito tempo fora das cobertas. Um novo lampejo repentino em tom azulado, invadiu o quarto, clareando cada canto durante um piscar de olhos; ele só não esperava ter as mãos atacadas por um violento choque naquele mesmo instante.
Razão do rádio ser imediatamente jogado longe sob a trovoada que acordou boa parte do hotel. Palpitações surgiram enquanto, no canto do quarto bloqueado pelas sombras, chiados soaram. Altos e desagradáveis. Sentindo a aflição correr pelos seus músculos, continuou sentado no colchão, imóvel.
Petrificado.
— "Quem é você, rapaz?"
— "Me chamo Saulo e sou alguém que admira muito a pessoa que você foi!"
Novos chiados finalizaram a conversa em inglês, os quais também desapareceram sem mais nem menos.
O sobressalto teve a companhia de um xingamento no momento que se assustou com o ruído da vibração gerada pelo aparelho tremendo sobre o móvel ao lado. Saulo mirou o alvo a tempo de ver o forte raio de luz liberado pelo celular. Apanhou-o com desespero e esperança de ser alguém de sua família. Mas não era. Ainda assim, exibiu um discreto sorriso ao ler a mensagem que embora confusa lhe serviu de calmante.
"Já que meu dinheiro é sujo demais pra você, vai pensando em outra forma de pagamento."
"Pagamento do quê?"
"Minha tomada acabou de explodir. Como vai querer receber pelo serviço?"
"Uhmmm! Interessante!
Já tenho algo em mente."
Notas Finais
É aquele ditado: quem tem limite é município, pro Saulo deu mole, é vapo.
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