Capítulo 1 - Seis de junho
Detrás do balcão, a adolescente puxou de sua orelha um lado dos fones de ouvido e entregou à mãe entretida com as alterações que fazia no cardápio, o que chamou a atenção daquela proprietária de restaurante, para a tela do celular da filha. Ao vivo, o repórter local trazia novas informações sobre o recém homicídio ocorrido na pequena cidade do interior sulista.
— "A polícia encontrou há três dias em sua residência, o corpo do aposentado Roberto Esteves. Conversei há pouco com o delegado Fabrício Azevedo a respeito do andamento das investigações."
Ansiosas, mãe e filha se mantiveram concentradas no aparelho, inquietas durante o cortar da cena e a aparição do homem diante da fachada da delegacia, o qual fumava e trajava blazer junto ao topete grisalho. As duas riram assim que ele atirou o cigarro no chão ao perceber a câmera ligada.
— "Bom dia, delegado! Pode nos contar sobre a excêntrica arma do crime? Tinha visto algo do tipo?"
— "Não, foi a primeira vez, o que não quer dizer muita coisa, já que moramos num baita fim de mundo." — O tom monótono não foi poupado e deixou o repórter levemente sem graça.
— "Certo. E sobre o relato da filha e dos vizinhos? Estamos perto de conhecer o culpado? O que sabemos até o momento?"
— "Ou culpados, não descartamos nada. Bom... ainda é cedo, mas coletamos informações importantes para a investigação. Segundo os depoimentos, aconteceu uma discussão entre o Seu Roberto e o suspeito, ou um dos suspeitos, e na volta para casa, a filha flagrou um garoto deixando o local, onde encontrou o pai já sem vida."
— "O que pode me dizer sobre o boato de que o assassino é negro?"
Ao longo de alguns segundos, Fabrício se deixou encarar o sujeito sem nada a dizer.
— "Geralmente boatos são espalhados por desocupados, o que não é o meu caso." — O desconforto na face de Fabrício foi palpável enquanto ele deixava de olhar o repórter para mirar a câmera. — "Agora, se me derem licença, preciso trabalhar."
— ⚡ —
"1899, Colorado Springs/EUA
Sozinho no singelo e silencioso laboratório — ele preferia dessa forma —, mãos ágeis realizavam os últimos ajustes do não tão novo experimento. Já trabalhava nele há bons anos, em especial, dentro de sua cabeça. Uma de suas habilidades era realizar testes precisos somente com o pensamento.
Concentrado, sentou-se na cadeira de madeira diante da máquina: uma bobina alta contornada por barras verticais e horizontais, as quais formavam uma espécie de grade. Fazia anotações e revisava algumas equações, atento ao trabalho à medida que vez ou outra, alisava seu espesso bigode. Apesar de ser noite e a maior parte da iluminação estar aglomerada apenas no lado de dentro das paredes frias, ainda assim era possível ver de longe a imensa torre no alto daquele centro de pesquisas.
Algo piscou aos seus olhos.
— O que aquilo está fazendo ali? — perguntou-se ao topar com um rádio velho de madeira no vão entre o chão e o equipamento. Sem hesitar, o inventor tirou o aparelho dali, deixando-o junto à cadeira. — Depois me livro disso — completou, Nikola Tesla."
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2043, Grande Panópolis/Brasil
Mais uma vez, o alarme persistente ecoou do oval dispositivo brilhante, quebrando o silêncio do quarto que muitos diriam, ser grande demais para uma pessoa só. Ainda mais, uma que mal tinha tempo para dormir.
— Acordei! Desliga isso pelo amor de Tesla! — ordenou. A caixa de som inteligente de imediato encerrou o irritante efeito sonoro e trouxe a calmaria novamente. — Que dia é hoje?
— Seis de junho, Saulo. Sábado — respondeu o aparelho controlado por voz, em um tom feminino extremamente doce e suave. — Seu celular está com 8% de bateria.
— Ok. Obrigado.
Tentando a todo custo erguer as pálpebras que mais pareciam estarem coladas na pele, Saulo Mahin, enfim se viu despertando entre bocejos junto ao coçar nos olhos. Os quais tiveram como primeira visão refletindo nas íris âmbar, o belo lustre composto por anéis dourados e lâmpadas esféricas espalhadas pelo objeto desligado, que nada mais era, do que a representação criativa de um átomo.
— Sábado... Acho que hoje tem laboratório — resmungou, sonolento, porém animado.
Recordar-se do recente sonho, deu-lhe uma certa disposição.
Embora rápido, o banho serviu para espantar o resquício de sono e o cansaço acumulado daquele universitário. Temporariamente, pelo menos. Enquanto segurava a alça de mão da mochila nada leve, o jovem franzino parou atrás do guarda corpo transparente, inclinando-se para ter uma visão melhor da sua ampla sala de estar lá embaixo, na qual não encontrou nem mesmo os funcionários da família.
"Eitapega! Cadê esse povo?" Em consecutivo, o sutil apito informou a carga baixa do celular; com pressa, tirou o smartphone do bolso, sem demora ativando o carregamento sem fio antes de guardá-lo novamente. Logo, desceu pelos elegantes degraus pretos que ligavam os dois andares daquele apartamento luxuoso, e isso, em meio às esfregadas de dedos na camada de cabelos crespos, a fim de eliminar a água que havia esquecido de secar e já lhe descia pela testa castanha.
— Denise! Hoje tem lab e não tô achando nenhum jaleco! — berrou, à procura da governanta; correndo e completando o local silencioso com seus passos barulhentos. — Denise, cadê você?! Está me traindo de nov...! Bom dia, mãe mais linda do universo. — Baixou o tom bruscamente ao topar com a expressão impaciente de Catarina, aquela sentada à mesa muito bem posta.
Apanhou um croissant, dividindo-o ao meio e pondo a outra parte na cesta.
— Eu não recebo bom dia? — reclamou, Arthur, deixando seu tablet extra fino de lado por um instante. — E esse sorriso? Viu um passarinho verde?
— Uma Bobina, na verdade — informou de boca cheia ao pai. — Sonhei com o Tesla. Maior legal, né? Eu via o laboratório dele de cima. Pareceu tão real! — contou, empolgado.
— Tesla, aquele eugenista? — Ele sempre fazia questão de destacar essa parte. Não que menosprezassea importância do inventor para o mundo, mas por ser contra colocar pessoas, quesão feitas de qualidades e defeitos, em pedestais.
— Pai, ele nasceu em 1856, era outros tempos. Já ouviu falar em construção social?
— Tá, continue passando pano. E, aposto que teve safadezas nesse sonho — implicou Arthur, ganhando além do olhar enfezado do filho, também um pedacinho de pão arremessado em sua direção.
Saulo odiava aquele tipo de comentário em relação à sua quase devoção por Nikola Tesla.
— Vem cá, quem é você mesmo, visita?! — Mastigando, exibiu uma expressão indiferente, indo para atrás da cadeira de Catarina, onde a acariciou nos ombros e ficou totalmente exposto para o lado externo do imóvel, graças às paredes de vidro moldando aquela sala de refeições.
— Um dos empresários mais importantes e ocupados deste país! — Fora curto, retornando ao seu aparelho eletrônico e ignorando a alfinetada do filho.
— Óia! Vai, mãe! Agora joga na cara dele que a Senhora é a mais rica da família! — Colocou lenha na fogueira, vendo primeiro os pais rirem um para o outro.
Apesar dos esporádicos desentendimentos, formavam uma família unida.
— Dispenso esse senhora. — Tal palavra realmente não combinava com sua aparência jovial. — E sente para tomar café. Coisa feia comer em pé — ralhou, apontando uma das cadeiras vagas.
— Sem tempo, senhorita. — Após dar um gole generoso no suco da mãe, Saulo se guiou até Arthur. — Bom dia, pai metido. — Deixou um beijo sobre a careca negra. Seu genitor nunca gostou de cabelo. — Alguém viu a Denise?
Nesse momento, a mulher de meia-idade e corpo cheio, enfim surgiu na área ampla, carregando um pano branco dobrado. No entanto, antes de chegar à família Mahin, o toque de seu celular ecoou. Com urgência de desligá-lo para não atrapalhar o café da manhã dos patrões, tirou-o do bolso do vestido longo e levemente informal, acreditando ser apenas a geladeira informando algum item em falta; porém, diante do autor da ligação exibido na tela, ela procurou os olhos dourados de Saulo.
— Perdeu seu celular? — Mostrou o visor ao jovem. Mais especificamente, o nome dele piscando em forma de holograma para fora da tela.
— Eu? — Tocou a lateral da calça, logo tirando o smartphone. — Não, tá aqui carregando no meu bolso. Será que clonaram meu número? Atende e pergunte o que é energia escura. — Riu sozinho, sendo o único a entender a complexidade daquela questão.
— Já falei pra você jogar essa porcaria antiquada no lixo — lembrou o mais velho. — A última vez que um celular meu fez uma ligação sozinho, taquei ele na parede.
Denise então aceitou a ligação, levando o aparelho ao ouvido.
— Antiquada? Ele é do ano passado! Mas você é mais velho que este celular e nem por isso a mãe te jogou no lixo. — Piscou, provocando o pai e ganhando como resposta, o ilustre dedo médio de um Arthur segurando o riso.
— Não foi por falta de vontade. — Catarina entrou na brincadeira, sussurrando a seguir ao marido: — I love you, baby!
A governanta se aproximou do trio; tinha pressa de voltar ao trabalho.
— A ligação estava com um chiado muito alto, depois, caiu. Bom... Procurava isto? — Entregou-lhe o jaleco bordado com seu nome junto ao brasão da universidade.
— Onde achou?
— No seu guarda roupa, ao lado dos outros.
— Que coisa... — Sorriu, enfiando-o na mochila, e por fim, passou o braço sobre os ombros da governanta. — Mãe, convença ela a se casar comigo.
Achando graça, Denise o empurrou de leve, voltando ao abraço em seguida. Independente das palavras do rapaz, o relacionamento de ambos se resumia a algo bem fraternal.
— Deni, dá um tapa nesse menino, fazendo o favor! — pediu, a mãe, ajeitando a faixa florida a qual enfeitava seus cabelos crespos e volumosos.
— Ou pede pro seu marido quebrar a cara dele — sugeriu, o pai.
— Égua! Por quê? Ele pode participar também; sabem muito bem que não tenho preconceito — brincou, Saulo.
— ⚡ —
A máquina de formato cilíndrico no centro, esta de cobre, contrastava com o prateado do espesso anel deitado no topo, embelezando ainda mais o vasto laboratório muito bem equipado. Não era à toa o grande número de prêmios nacionais e internacionais conquistados por aquela Universidade. Laboratório o qual naquele dia em especial, encontrava-se com todas as janelas cobertas pelas cortinas elétricas blackout.
Dali de seu, nada confortável, banco transparente, Saulo analisava o equipamento sem se deixar piscar. Jamais havia visto uma com a aparência tão fiel "parece a do meu sonho"; pelo menos, não ao vivo e, embora não fosse imensa quanto à original ou às espalhadas pela cidade, o tamanho lhe deixou fascinado. "Deve bater no meu peito!", calculou.
Na Grande Panópolis, haviam consideráveis Bobinas de Tesla, assim como em 90% do país, das quais expeliam a EEW, Energia Elétrica Wireless, no entanto, com o avanço da tecnologia, estas ganharam uma aparência mais discreta e moderna.
— Façam o favor de me marcarem em todas essas fotos — exigiu a professora, diante das várias câmeras apontadas ao equipamento.
Na ponta direita da sofisticada bancada preta, e devidamente trajando jaleco, como os demais estudantes, Saulo nem prestou atenção nas palavras da professora; ele estava muito ocupado namorando a máquina. Nesse meio tempo, a mulher de cabelos curtos deu início à aula prática. Apesar de toda a parte teórica já ter sido explicada e habitar nos cadernos e dispositivos móveis daqueles alunos, achou válido recapitular todo o funcionamento da peça a ser estudada.
— A Bobina de Tesla é basicamente uma máquina que produz raios. — Agachou-se, tocando a caixa preta, a qual se encontrava longe do equipamento. — Aqui está o transformador que precisamos para alimentar a bobina. Entra 127 volts e sai...?
— 8 mil — respondeu, a garota às costas de Saulo; aquela que usava um coque cheio no alto da cabeça feito de tranças e possuía belos olhos castanhos.
A professora continuou.
— Adoro quando vocês prestam atenção no que eu falo. Chega me emociono. — Após o sorriso à aluna, retornou por fim para junto da bobina, agachando-se novamente. — Toda a energia é armazenada neste banco de capacitores, então, passa por esta roda cheia de parafusos e depois disso, o mundo explode. — Risos soaram pelo laboratório. — Alguém gostaria de me corrigir?
Saulo ergueu a mão.
— A energia dos capacitores vai ser descarregada na bobina primária.
— E quem é essa tal de bobina primária? — soou teatralmente.
— Essa espiral na base, feita com um monte de fios enrolados. — Apontou com a caneta.
— Simples e direto, gostei! Nesse momento é criado um campo magnético, e ele vai parar na bobina secundária; este cilindro bonito. — De pé, passou a mão sobre a peça coberta por milhares de voltas de fios de cobre. — Todo esse processo vai aumentar aqueles 8 mil volts para tensões altíssimas, podendo chegar até a 2 milhões de volts.
— Nesse caso a bobina é um transformador que está ligada em outro transformador? — quis saber um aluno nos fundos.
— Exatamente.
— Por que tudo isso de volts faz criar raios?
Saulo julgou a pergunta do colega como extremamente ignorante. Aprendeu aquilo no ensino médio, entretanto, guardou sua opinião para si mesmo.
— O ar até certo limite, é um isolante; não conduz eletricidade, mas, acima desse limite, a bobina começa a usar o ar como condutor. Por isso que nas tomadas das nossas casas, não saem raios. O limite está muito abaixo. Agora... — Apanhou o controle de energia, e a uma distância segura, mirou no transformador principal, tendo também à sua disposição, o interruptor dos painéis de led espalhados no teto. — vamos colocar o filho do Tesla para cuspir raios. Ah, preciso frisar que iremos trabalhar com mais de um milhão de volts? Tem alguma criança aqui? Não, né? Quem tentar chegar perto da bobina perde ponto e ganha uma inimiga!
Diante da ameaça, todos os alunos se mantiveram calados e quietinhos em suas cadeiras. Saulo, ainda mais ansioso com o apagar das luzes após os ajustes finais da professora, sentiu-se energético enquanto esfregava as palmas na calça, em total excitação no laboratório possuído pelo clima obscuro.
Seu coração palpitou com os zumbidos nada baixos; semelhantes a curto circuitos, porém em alta escala auditiva. O nascer da primeira faísca, esta em tons de lilás, foi o que acelerou de vez seus batimentos.
Conforme os raios iam ganhando tamanho e os barulhos tornando qualquer outro som, inaudível dentro daquele laboratório, Saulo passou a se remexer na cadeira. Estava inquieto. Precisava ver mais de perto. "Está muito longe!" Raios desgovernados, colorindo o laboratório com luzes lilás e brancas, eram jorrados do anel prateado violentamente, perdendo-se no ar e por vezes, encontrando com fúria o chão. Ruídos chicoteando no alto, davam ainda mais intensidade aos flashes luminosos sendo refletidos nas pupilas dilatadas e congeladas na bobina.
Repentina.
Ardente.
Incontrolável.
Uma força desconhecida tomou conta de seu corpo; foi possível sentir fisicamente o formigar correndo em suas veias, eletrizando cada poro e lhe dando um choque de adrenalina. Saulo não conseguiu continuar sentado. Sem ser visto, deu passos precisos em meio ao escuro, rumo à máquina ensurdecedora contendo níveis imensos de energia e atirando raios para todos os lados. Menos nele. Era como se possuísse uma proteção invisível; um escudo isolante.
Calafrio.
Respiração cansada.
Visão nublada.
Em transe, deu outros passos; seus olhos já demonstravam incômodo devido ao tempo sem lubrificação; só que Saulo não iria perder tempo piscando.
Há poucos centímetros da bobina, parou, e sem noção alguma do que fazia, ergueu dedos cobertos de sede; implorando, desejando do fundo da alma por aquilo, até parar a mão completamente aberta, com ânsia, na peça portando dois milhões de volts.
O breu do laboratório foi invadido por uma cegante explosão de luz.
Continua...
Notas Finais
Sim, a história se passa no futuro. Há toda uma numerologia envolvida e 2043 foi o ano mais próximo que encontrei de fazer os números se encaixarem.
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