CAPÍTULO 90

Todos estavam instalados em quartos confortáveis no palácio Majsir. Hana, Radishi e Archibald passavam a maior parte do tempo na biblioteca lendo antigas escrituras, enquanto Derek patrulhava a cidade em busca de problemas.

– Mas se as Torres Lunares de Merrin foram destruídas e as Torres do Planalto Proibido estão inacessíveis, como poderão os necromantes restabelecer o elo entre a Terra e as dimensões abissais? – Indagou Archibald ainda tentando assimilar o que aprendera com Hana e Radishi.

– Não penso que isto será possível – disse Hana – Ao menos não diretamente. Imagino que consigam energia suficiente durante o alinhamento das luas para abrir uma pequena janela temporária. A chave para restabelecer o elo deve estar com os demônios. Um grupo deles virá por esta janela. Penso que o plano será ancorá-los à Terra usando as crianças do eclipse. Acho que a partir daí terão chances de acessar as Torres Lunares originais.

– Sim – concordou Radishi – Sua teoria parece boa.

– Talvez, então, se eliminarmos todas as crianças, poderíamos evitar o pior – sugeriu Hana.

– Matar crianças inocentes? – Archibald retrucou com repúdio e recebeu o apoio de Radishi.

– É por isso que estão fadados ao fracasso! – Hana irritou-se – Se não estiverem dispostos a confrontá-los num mesmo nível, não haverá esperanças.

– Tem que haver outro meio... – Radishi ainda estava esperançoso.

– Ah sim – ela respondeu sarcástica – vá até a necrópole e implore a Thoudervon que seja misericordioso. Tenho certeza que isto irá amolecer seu coração... Não, pensando bem, me esqueci! Ele não tem coração.

– Talvez eu possa conseguir apoio com os tchillianos...

– Não há tempo, Archibald. Teremos que agir rápido. Todo poderio do império e a grande campanha militar em curso não darão chance alguma deles chegarem a Lacoresh.

– Mesmo se considerarmos a queda da capital? – arriscou Archibald.

– Não apostaria numa queda de Lacoresh – palpitou a princesa – A loucura de meu pai não deve ir longe. É bem possível que suas ações tenham sido contidas e que ele tenha sido destruído a esta altura. Os verdadeiros comandantes de toda essa guerra, Thoudervon e Arávner são poderosos demais para deixar que o desvario de papai cause algum incômodo a seus planos.

– Parece que estamos em um beco sem saída – concluiu Radishi.

– Não mesmo! O que temos que fazer é nos concentrar em encontrar uma maneira de libertar Kyle da prisão temporal – lembrou Archibald.

– Continuamos sem ideias...

Radishi arriscou – Talvez possamos obter o Orbe do Progresso.

Hana franziu o cenho – Hã, o que é isso?

– Um poderoso artefato que está nas mãos de Arávner – explicou o tisamirense.

– O maldito... – resmungou Hana entre dentes.

– Sim, me lembro – disse Archibald – era um objeto que pertencia ao Silfo Rodevarsh.

– Um item capaz de cancelar qualquer magia. Até mesmo qualquer efeito do Jii – explicou Radishi – Mas Arávner é poderoso demais... Já o confrontei, fui derrotado e tornei-me seu servo. Não há como detê-lo, nem mesmo como enganá-lo. Ele lê mentes e mestre no Rashaik telecinético. Sequer conseguiríamos tocá-lo.

Há algum livro na biblioteca que fale sobre tal objeto?

– Sim, já li durante minhas pesquisas.

– Talvez haja alguma pista ou indicativo. Alguma fraqueza ou limitação deste.

– Na verdade... – Radishi olhou para o alto pensando – Sim! É isto!

– O que ? – os dois disseram em uníssono.

– Mas não adianta... Será impossível! Não há, em parte alguma, uma grande quantidade de cristais de sargentium. Vejam, há um relato sobre como anular os poderes do orbe. Se este receber uma grande quantidade de energia de uma só vez, ficará sobrecarregado e inoperante. Isto ocorreu quando este foi levado até uma das Torres Lunares.

– Como assim? O que isso tem que ver com os cristais?

Radishi disse em tom professoral – No interior das torres havia uma longa haste composta de milhares de cristais alinhados. Eram estes que canalizavam as energias do cosmo para disponibilizá-las para uso dos antigos. O Orbe do Progresso, e objetos semelhantes a ele eram justamente as peças que faziam com que as torres funcionassem. Posicionados na base direcionavam o fluxo energético como uma mangueira de sucção.

– Magueira? Não entendi nada – Archibald queixou-se – mas o que está dizendo é que se dispuséssemos de uma grande quantidade de cristais, poderíamos anular o orbe, certo?

– Sim, é isto.

– Ótimo, agora temos um caminho a seguir.

– Mas Archibald – disse Hana – esses cristais são raríssimos! Levaríamos anos buscando-os.

– Não se encontrarmos o túmulo de Gulfar.

– Gulfar – riu-se Hana – isso não passa de uma lenda.

– Talvez não – retrucou Archibald – eu conheci seu descendente direto.

– Não fala sério? – disse Radishi.

– Sim, bem aqui, em Tisamir. E não duvidaria se ainda estivesse por aqui.

– Se esquece que estou aqui há anos? Eu certamente o teria visto.

– E você se esquece que os anões podem se entocar debaixo da terra por anos a fio?

– Mas onde?

– Há antigos túneis dos anões sob Tisamir, ou vai dizer que não sabia disto?

– Ouvi rumores, mas na verdade, nunca vi um destes, ou mesmo soube de alguém que tivesse confirmado a sua existência.

Archibald esfregou as mãos – Pois eu confirmo! Vamos! – disse excitado – Não custa tentar!

Hana ficou entretida com a leitura de alguns textos, enquanto Archibald e Radishi foram até o bosque central verificar se o velho anão ainda estaria em Tisamir. Foi um pouco difícil localizar a casa deste, pois havia crescido muito mato em toda parte. A casinha do anão estava coberta por musgo e trepadeiras e quase não podia ser distinguida.

Radishi foi até a portinha, mas Archibald informou – Há outra entrada.

Teve que arrancar montes de mato e plantas até deixar visível o alçapão sobre o solo. Havia uma saliência e sob esta, uma alavanca escondida que Archibald vira o velho anão acionar. Colocou a mão no buraco e tateou para encontrar o mecanismo. Puxou e houve um clique audível. A tampa do alçapão cedeu e foi erguida.

Archibald olhou para o túnel escuro abaixo, acendeu uma tocha e disse – Eu vou primeiro.

Radishi o seguiu. Vagaram pelos túneis baixos, poeirentos, com ocasionais insetos e teias de aranha. 

– Isto aqui parece um labirinto. – resmungou Radishi.

– De fato. Acho que nos perdemos... Talvez você possa usar suas capacidades para sondar o local em busca de alguma presença.

– Não será necessário – disse o espectro de Noran que surgiu materializado diante da dupla.

Radishi e Archibald saltaram de susto com a repentina aparição.

– Me desculpem, não quis alarmá-los...

– Noran! Que bom lhe ver! – Radishi sorriu.

– Achei quem estamos procurando, sigam-me.

– Ás vezes me esqueço que você está nos acompanhando aí do outro lado – confessou Archibald.

Desceram dois lances de escadarias até chegar em túneis amplos, pelos quais circulava ar com mais vigor. A chama da tocha chegou a ficar escassa em alguns momentos. Archibald pegou uma outra, acendeu e entregou a Radishi.

– Para garantir...

O túnel levou até uma caverna alta, na qual descansavam construções de uma antiga cidade dos anões. Poucos contornos eram visíveis sob a iluminação pobre das tochas.

– Ouviram isto? – indagou Radishi.

– Sim – confirmou o ex-monge. Havia um fraco som de batidas à distância.

– Venham – disse Noran, e volitou em direção aos sons.

Atravessaram uma ponte de pedra sobre uma rachadura profunda e escura no solo. Também surgiram sons de água.

– Será que há um rio lá embaixo? – Archibald estava curioso.

– Nunca estudei os detalhes, mas é sabido que há fontes de água sob Tisamir. Toda água de nossos reservatórios vem do subterrâneo, mas nunca supus que pudesse haver outra cidade aqui enterrada.

Archibald admirava detalhes de inscrições nas rochas e esculturas que encontravam no caminho.

– Esse lugar é enorme! – Radishi deixou escapar com admiração.

Os sons ficavam cada vez mais próximos. Havia uma cascata de escadarias que descia para zonas mais profundas.

– Está explicado por que os anões somem sob as montanhas. Eles constroem essas coisas gigantescas!

– Vai ver que é para compensar a baixa estatura – zombou Archibald.

Radishi e Noran riram. Um pequeno momento de descontração em meio a tanta pressão e da impressão de que uma destruição iminente recairia sobre o mundo.

– De que adianta construir, se não dá para ver nada direito? – comentou Archibald.

– Os anões não enxergam como nós, humanos, especialmente sob a terra.

– Imagino que não possamos captar a verdadeira beleza de suas obras.

– Verdade.

Desceram mais e mais por um longo tempo mantendo silêncio e apreciando a grandeza do lugar.

– Noran – Já não posso ver através de você – Archibald indicou.

– É verdade – confirmou Radishi.

Noran tentou tocar nos amigos.

– Posso senti-lo – arrepiou-se Archibald – o toque é gelado, mas sólido o bastante.

Radishi olhou ao redor com atenção – Há muito Jii e Mana fluindo aqui. Nunca vi nada igual.

– Talvez seja por isso que tantas pessoas em Tisamir desenvolvem capacidades relacionadas ao Jii, não acha?

– É um fato, Tisamir é mais saturada de Jii que qualquer outro lugar em que já estive em Lacoresh, mas isto aqui é assombroso!

– Parece ser uma fonte de Jii... E Mana.

Ainda havia muito o que descer e Radishi queixou-se – Preciso descansar – suas pernas doíam e faltava fôlego.

Archibald sentia o exercício, mas estava longe de precisar de um descanso. – Imagine só quando formos voltar escada acima...

Radishi gemeu com a perspectiva – Fiquei tempo demais lendo livros naquela biblioteca. Estou magro e fraco.

– Não se preocupe, poderemos retornar com calma.


Depois do descanso, prosseguiram longamente até chegar ao fundo. No local corria um rio com eventuais e pequenas quedas d'água. Um caminho pavimentado seguia o seu curso. Ao longe, pela primeira vez, puderam ver uma fonte de luz.

– Será que é uma saída? – indagou Radishi.

– Não – disse Noran – Ele está logo ali adiante. – Indicou uma pequena construção esculpida nas rochas. Quando chegaram ao local indicado, Noran disse – Bem, estava aqui quando o vi.

A luz vinha de um ponto adiante, assim como os sons de bate-bate agora bem mais intensos.

Deixaram a pequena habitação para trás e chegaram a uma imensa câmara plenamente iluminada por luzes amareladas. Nela havia centenas de estátuas dispostas em círculo. No centro, uma piscina de onde emanava o forte brilho amarelado, como o de um sol encarcerado. Totalmente concentrado em seu trabalho, um anão de cabelos brancos desarrumados faziam uma escultura à partir de um grande bloco de rocha.

Todas as estátuas representavam anões com perfeição tal que deixariam o escultor, Mestre Carulvo de Audilha, admirado.

– Com licença – disse Archibald. Sua voz ecoou na câmara de teto alto e que tinha excelente acústica.

O anão achou que ouvia coisas. Deu com os ombros e continuou esculpindo sem olhar para trás.

– Senhor Brum, com licença – insistiu Archibald elevando o tom de voz.

– Hã? Urlet Necan? – o pequenino desceu do andaime com as ferramentas em mãos. Encarou-os com uma expressão mal-humorada. Estava coberto de pó da cabeça aos pés e na frente dos olhos tinha um par de óculos amarrados no rosto por tiras de couro. As barbas eram longas e despenteadas, como seus cabelos, e o narigão protuberante cobria os lábios.

– Humanos? – disse sem acreditar – H-U-M-A-N-O-S!

– Desculpe-nos, não queríamos interromper seu trabalho.

– Ora seus maledictos invasores! Profanadoores de túmulo! Mas como? – e o anão passou seu olhar sobre Archibald.

– Você?

– Eu? – ele engoliu seco.

– V-O-C-Ê! É aquele garocto de recaados do maledicto Atir, não é de facto?!

– Sim, só me permita dizer uma coisa.

– Desembuche, racto!

– Seu trabalho é magnífico! O senhor deve ser o mais habilidoso escultor vivo!

– Mesmo? – O anão sentiu-se lisonjeado, mas isto durou apenas um instante – Me toma por toolo!

– Falo sério. Eu viajei pelo mundo e sua técnica é mesmo inigualável! O jeito que representou sua família, seus ancestrais!

– Como sabe disto?

– Ora, o senhor mesmo me contou a respeito, não se lembra? Falou-me do projeto que idealizava: construir uma homenagem à história de seus ancestrais.

– Sim, me lembro – mentiu o anão. Como é mesmo seu nome?

– Archibald DeReifos.

O anão reparou na ponta do cajado preso às costas de Archibald. Avançou sobre ele e tomou-o. – Dá isso aqui! Há! Mas fui eu que fiz esse cajezado.

– Foi uma encomenda para Atir. – Archibald o lembrou.

– Sim, sim. Aquele muquirana! Veja isto! Está arranhaado! Ora! – Brum deu com os ombros, resmungou e devolveu o cajado para Archibald.

Archibald disse – Este é Radishi e este é Noran.

Radishi elogiou – Magnífica obra! Sinto-me honrado por ter tido a chance de ver tal maravilha.

Afinaal, que diabos vocês estão a fazer aqui? Pelo que sei, toctos os tisamirenses se foram de uma vez por tocdas!

– Poucos ficaram – explicou Radishi – apenas aqueles que desejam contrapor o avanço dos necromantes e a destruição que trarão sobre o mundo. Viemos em busca de ajuda.

– O que querem? Não vou deixaire meu traballo, isto não!

– Precisamos de cristais de sargentium para confrontar os necromantes.

– É? Estes são muitíssimos valiosos...

– Sabe onde podemos encontrar alguns?

– Por acaso são cegos?

Archibald olhou para a piscina e percebeu que o conteúdo não era água, mas sim cristais. Havia milhares de peças.

– O senhor poderia nos emprestar alguns?

– Emprestar? Isto é o legado de minha faamília!

– Não temos nada a oferece em troca – disse Radishi.

– Bem, se pretendem usá-los contra os maledictos necromantes, já me parece uma troca razoábile. Alguns primos que vieeram nos visitar foram mortos pelos maledictos. Sem falar no pessoal de Thodur Balink que foi escraavizado pelos maledictos.

– Nós o conhecemos – revelou Radishi – agimos em conjunto com o Silfo Modevarsh na libertação dos escravos das minas de Xilos, há muitos anos.

– Está bem. Podem leevar o quanto conseguirem carregaire. Não se faz uso destes como se fazia em tempos antigos. O coonhecimento sobre como processaire os cristais se perdeu. Vamos, xô! Vão de uma vez! Já perdi tempo demaise com vocês.

– Obrigado, senhor Brum, estamos em débito para com o senhor!

– Apenas peguem os maledictos cristais e saiam logo!

– Sim, claro – Archibald e Radishi esvaziaram suas sacolas e preencheram-nas com cristais.

– Espero que a quantidade seja suficiente – cochichou Archibald.

– Eu espero que nenhum fantasma venha nos perseguir – fez uma alusão ao ancestral de Brum, Gulfar.

– Ora, já temos um fantasma nos perseguindo...

Radishi riu. Não poderiam estar num melhor humor. Com os cristais, talvez pudessem bolar uma estratégia para confrontar Arávner e obter o Orbe do Progresso.

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