CAPÍTULO 88

A Catedral de Lacoresh era um dos pontos que ainda resistia às hordas. Mesmo com toda corrupção do governo Lacorês e no Alto Clero, ainda restavam sacerdotes bem intencionados nas bases da Real Santa Igreja.

Um grupo destes, apoiado por alguns monges da ordem dos Naomir, conseguiu abrigar na catedral centenas de pessoas, e, entre estas, algumas poucas crianças do eclipse. Uma dúzia de sacerdotes mantinha uma corrente de oração que afastava os mortos-vivos de baixa feitura, porém, um cavaleiro da morte rompeu esta barreira imaterial.

Em meio à confusão, o ex-monge Naomir, Meinard, e seu capataz, Felear, ajudavam a conduzir algumas pessoas para dentro da construção. Meinard tinha fé muito pura e ainda podia convocar os Sagrados Ofícios.

– Diamantilia Carvus Oném – a benção concedida envolveu a velha armadura de Felear com um leve brilho coruscante.

– Flama icti Flamare! – a segunda bênção ateou chamas esverdeadas em torno da espada de Felear.

O ex-cavaleiro defendeu-se dos ataques do morto-vivo couraçado, um dos Oito Barões de Serin.

– Comerei sua carne, humano! – disse a horrenda criatura.

Felear deu uma leve estocada no abdome do oponente.

– Há, isto faz cócegas... – Zombou o Barão e contra atacou atingindo a armadura abençoada. Felear arquejou, mas aproveitou a proximidade e deu uma nova estocada atingindo a base da garganta. No mesmo instante, Meinard convocou os Sagrados Ofícios – Flamare Oném!

Com isto a chama da espada migrou para criatura e acumulou-se gerando um estampido. A cabeça do morto-vivo voou para o alto, seguida de um rastro de fumaça e o corpo tombou.

Meinard gargalhou e comemorou – Há tempos que não acertamos uma destas, hã, Felear?

Apesar da situação desesperadora, Felear abriu um sorriso, mas logo o desfez para perguntar – O que é aquilo? – indicou com a ponta de sua espada.

A nuvem escura e faiscante passou veloz por cima da dupla e zuniu pela nave principal da catedral até o altar. Ali estavam agrupadas algumas crianças do eclipse. A possessão foi rápida e indolor. Os sacerdotes que presenciaram o fato não sabiam se aquilo que viram era uma benção ou uma maldição.

A menina de cabelos loiros, tranças e vestido bege olhou ao redor e disse numa voz masculinizada – Não se preocupem, irei lidar com essa horda de mortos-vivos.

Com passos decididos cruzou a catedral até a saída. O povo começou a dizer coisas como – É um milagre! Nossas preces foram atendidas. É uma bênção dos deuses.

Necranxelfer achou aquilo divertido e soltou uma sinistra gargalhada que provocou silêncio imediato. O corpo da menina era inadequado para lutar se comparado ao de Vekkardi, mas ainda assim prosseguiu.

Do lado de fora, surgiu uma figura sinistra acompanhada de dois cavaleiros da morte. Vestia um manto negro decotado que mostrava parte do peito pálido e a garganta, grosseiramente costurada com um cordão negro. A expressão no rosto ainda era quase humana, exceto pelos olhos esbugalhados que pareciam bexigas inchadas de puro sangue. O trio montava cavalos zumbis como o que o Barão Dagon possuía. Sacerdotes o reconheceram dizendo com horror – É o Rei Serin! Olhem, o Rei Serin.

Os cavalos subiram a escadaria e os clérigos que faziam a corrente de orações, de mãos dadas, deixaram as montarias inquietas. Um dos cavaleiros foi derrubado e rolou alguns degraus escada abaixo.

Serin, irritado, gritou numa voz estridente – Já basta desta ladainha! – apontou a mão pálida na direção dos sacerdotes disparou um raio negro que passou de um para o outro fazendo-os gritar de agonia. Caíram todos no chão até que a energia obscura retornou a seu mestre. Ele inspirou fundo e deixou escapar um gemido de prazer – Isto! Isto!

Uma dúzia dos sacerdotes, agora escuros e murchos, tombaram sem vida. A ação de Serin causou pânico no interior da catedral. Em meio à multidão desesperada, uma menina de olhos negros, com cerca de dez anos, caminhava calmamente até surgir no portal da catedral.

Ela disse – Você irá comandar seus mortos-vivos para fora desta cidade e dizer ao insurgente, Maurícius Greysnow, para se render.

Serin respondeu com uma gargalhada – Com se eu apenas pudesse obedecer... Mas não tenho escolha. Saia do meu caminho, demônio, ou sofra as consequências!

Serin agora via-se preso ao mesmo tipo de feitiço com o qual comandava o Barão Dagon e tantos outros dotados de alguma consciência. Sua racionalidade era convicta da ação tola de seu pai. Na verdade, odiava seu pai mais que nunca, entretanto, não conseguia desobedecê-lo.

Serin comandou um de seus lacaios – Destrua-a, Barão Lynn!

O cavaleiro avançou sedento pelo sangue e erguendo sua espada. Antes de alancar o alvo, a montaria e o Barão foram envoltos por chamas intensas. O Barão agonizou ao ver seu corpo sendo consumido pelo fogo.

A menina incinerou o oponente em poucos instantes, sem mesmo mover um dedo. Serin, tomado de surpresa indagou – Que tipo de demônio é você?

Necranxelfer retrucou jocoso – O tipo poderoso que pode eliminá-lo facilmente. Retires suas hordas!

– Não posso, tenho que obedecer meu mestre.

– Onde está o insurgente?

– Fora de Lacoresh.

– Qual seu paradeiro?

– Eu mesmo não sei, ele está obcecado pela reunião da família. Partiu para o norte para capturar minha irmã...

– Mais uma vez, retire as hordas!

Serin queria obedecer, era a coisa lógica a fazer, mas não sabia como lidar com o elo de obediência estabelecido durante sua ressurreição.

– Mas que merda! Maldição! – convocou um feitiço. O raio veloz atingiria qualquer pessoa, mesmo se possuísse excelentes reflexos. Mas o reflexos sobrenaturais do demônio salvaram sua pele, ou melhor, do a pele do corpo que possuía. A menina rolou e uma pessoa que estava atrás de si foi atingida e fulminada.

Necranxelfer contra atacou fazendo o oponente arder em chamas de dentro para fora. Os últimos pensamentos de Serin foram de ódio para com seu pai. Antes de ser consumido, percebeu que morreria como muitos de seus servos. Era mesmo um final irônico. Antes de sucumbir ouviu em sua mente "Ainda não chegou sua hora... Sua alma agora é minha! Irá ser um valioso servo em minhas hostes".

A menina caminhou até o monte de cinzas e deste retirou um pequeno ovo negro que soltava fumaça cinzenta.

"Para o norte?" ponderou o demônio. "E quanto a Mitzlorg, estaria aqui?"

Necranxelfer tinha dificuldades para prever ações de Demônios Zimbronianos. Eram criaturas de puro caos que somente o Senhor dos Abismos conseguia, de algum modo, comandar.

A menina levou o ovo até a boca fazendo suas mandíbulas se deslocarem desproporcionalmente, como as de uma cobra para engoli-lo por inteiro.

"Ah, Serin Greysnow! Sua alma é deliciosa!" Voltou a gargalhar alto, assuntando todos ao seu redor.

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