CAPÍTULO 84

Yourdon estava seminu em sua confortável poltrona. Seus aposentos ficavam numa das altíssimas torres erguidas na necrópole pela incansável força de trabalho composta por milhares de criaturas mortas vivas. Lá fora, podia-se ver que a cidade do necromantes crescera muito e possuía a agitação intensa como a de uma imensa colmeia escura e macabra.

Ao redor do feiticeiro havia delicados aparelhos místicos que recebeu como presentes do antigo e poderoso Thoudervon. O corpo de Yourdon descansava, quase deitado, e sobre seu peito e testa estavam encaixados dois cinturões de metal com pedras preciosas embevecidas em pura energia mágica. Este aparelho ajudava a projetar sua consciência a lugares distantes e inimagináveis.

A fascinante exploração de outras dimensões era uma obsessão para o mago. Ele usava todo seu tempo livre nas viagens. Ele conseguia fazer viagens astrais através dos antigos portais que um dia ligaram fisicamente a Terra das Nove Luas a diversos planos, tais como Ástrades, a terra natal dos anões, ou Fellhoria, lar do povo felino que lutou contra os demônios na guerra milenar.

Seu conhecimento sobre magia crescia e assim como sua curiosidade, mas ele esbarrava nos frustrantes limites de suas habilidade e própria capacidade intelectual. Perto das explorações as guerras e conflitos que ocorriam no Império Lacorês eram como coisas fúteis e indignas de atenção. Thoudervon o prezava como aluno, mas justamente por causa de sua utilidade, ficava preso a uma cansativa e longa rotina de trabalhos que prestava como assistente.

Sua jornada de consciência terminaria mais cedo naquela noite. Thoudervon, que raramente vinha visitar seus aposentos, entrou e anulou o feitiço de viagem astral, trazendo-o de volta ao corpo abruptamente.

O mago levantou-se assustando levando as mãos aos olhos que doíam muito. Sentou-se e olhou para o ser esquelético que o aguardava em uma de suas poses inumanas.

– O que houve, mestre?

– Temos um problema na capital.

– Problema? – indagou o aprendiz passando as mãos em sua careca. Os pelos curtos espetaram a palma indicando que era hora de raspá-la novamente. Depois de um acidente em que teve parte do cabelo incendiado, o mago adquiriu o hábito de raspá-lo.

– Sim. O imperador morreu, mas tornou-se um morto-vivo, e assim como eu, goza de plena intelectualidade e mantém seus poderes nigromânticos.

– Certo, mas qual é o problema?

– Já estava chegando nisto, pupilo. No processo ele perdeu a razão e fez algumas coisas que fogem ao nosso acordo.

– O estratagema está ameaçado? – indagou alarmado.

– Não pude avaliar os impactos disso, mas foi uma possibilidade que eu previ.

– Se havia previsto, posso saber por que não impediu que acontecesse?

– Vou deixar que você pense um pouco nisto enquanto resolve o problema.

– O que deseja, mestre?

– Eu iria pessoalmente, mas sabe bem que detesto interromper meu trabalho... Quero que vá a Lacoresh e coloque a situação novamente sob controle.

– Defina sob controle.

– Não. Já ensinei a você o suficiente para não precisarmos discutir pormenores. Apenas vá e resolva o problema.

Yourdon curvou-se – Sim, mestre, como desejar.

Thoudervon bateu os dentes e deixou os aposentos. Sem suas roupas, o mago tinha uma aparência de magreza doentia. Foi até seu cabideiro para vestir-se. Chris vestiu o manto cinzento e sobre este o vermelho, de gola alta e adornada de prateado. Olhou-se no espelho sem conseguir aprovar sua própria imagem e resmungou – Trabalho, trabalho, trabalho...

Yourdon procurou outros necromantes para descobrir mais sobre o que aconteceu em Lacoresh. Depois, desceu até as profundezas da necrópole. Na fornalha, contatou o demônio.

– Oh, grande Necranxelfer, este pequeno mortal vem para solicitar teu auxílio.

A voz profunda e lenta do demônio emergiu do crepitar das chamas – O que o aprendiz deseja desta vez?

– Poderia vir comigo até Lacoresh?

– Não é hora para isto...

– O problema é que Maurícius libertou Lorde Mitzlorg antes do tempo devido.

– Já entendi. E quanto ao instrumento?

– Está preparado, nas catacumbas.

– Ele é forte o bastante para me levar até lá?

– Sim, a circulação de Jii nele é excepcional. Guardava-o para uma ocasião como esta.

– Ótimo! Sair daqui será uma experiência refrescante... literalmente.

Yourdon curvou os lábios para um sorriso contido.


Toda uma ala de catacumbas foi esvaziada para tornar-se o lar de Vekkardi. Apesar de preso ali há muitos anos, ele mantinha excelente forma física. O pior período havia sido no início, quando foi objeto das experiências de Thoudervon. Yourdon acompanhou tudo condoendo-se, pois se sentia endividado com Vekkardi por causa da ajuda que recebeu durante sua primeira visita ao plano netéreo. Anda havia algum senso de humanidade no aprendiz, naqueles primeiros anos.

Certa vez Thoudervon lhe disse – Pode tomar este aí para matar, ou fazer o que quiser. O esforço para dobrá-lo não tem surtido efeito. Tenho mais o que fazer.

A força de vontade de Vekkardi era mesmo grande e Yourdon, intrigado pela desistência de Thoudervon, decidiu tomá-lo como objeto de estudo particular. Reformou parte das catacumbas para submeter Vekkardi a jogos de sobrevivência.

Em certa ocasião, o discípulo de Modevarsh perdeu o olho direito. Yourdon achou que isto seria o início do declínio do guerreiro, mas estava enganado. O sentido da vida dele havia se alterado. Em sua mente, queria provar a seu mestre que era um discípulo digno, por isso precisava superar todos obstáculos que surgissem.

Vekkardi havia derrotado centenas de esqueletos, zumbis, carniçais, espectros, cavaleiros da morte e até mesmo demônios. Sua técnica de Kishar tornou-se perfeita através da simples e obstinada luta pela sobrevivência.

– Olá Vekkardi – disse Yourdon orgulhoso em seu traje imponente.

Ele fazia flexões dentro de sua cela usando apenas um dos braços musculosos. Seu corpo estava todo suado e refletia a luz bruxelante dos archotes.

– Há quanto tempo, Lambe-ossos. Algum desfio novo para mim?

– Digamos que sim. Vamos sair hoje.

– Sair? Se pensa que vou fazer algum serviço sujo para você, está enganado, Bruxo-brocha.

– Está enganado. Quero ver essa sua cara debochada quando seu corpo for violado, fibra após fibra, por Necranxelfer.

– Necran-chuchu? É este que irei confrontar desta vez? – retrucou o prisioneiro zombeteiro.

Ele não é um demoniozinho qualquer. Venha, vai gostar de conhecê-lo. – A cela de Vekkardi abriu-se com um gesto do mago.

– E nem se dê ao trabalho de me atacar. Esta é apenas uma imagem projetada. Siga-me.

Vekkardi seguiu a imagem do bruxo pelas catacumbas até uma sala de onde emanava vapor. Nela, sob pouca iluminação via-se uma pequena piscina com água quente.

– Banhe-se! – ordenou Yourdon – E depois, vista aquelas roupas. Não vou suportar viajar com você se estiver imundo e fedendo.

Depois de tantas privações ele não recusou a oportunidade de refrescar-se. Despiu-se dos trapos que usava mostrando o corpo todo desenhado por dúzias de cicatrizes.

– Ali estão os utensílios de banho, incluindo uma navalha, caso queira se barbear.

Vekkardi tirou a barba longa e embaraçada e fez um corte de cabelo curto, na altura do pescoço. Aos poucos sua velha aparência veio à tona. Seu olhar, estava mais severo e envelhecido. Ao mesmo tempo, seria difícil encara-lo, pois no lugar do olho perdido estava uma carne branca desagradável de se olhar. As olheiras profundas e a palidez poderiam fazer com que fosse confundido com um necromante qualquer. A roupa negra e justa era de um tecido leve que cobriu todo o corpo. Estava pronto para confrontar o demônio.

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