CAPÍTULO 8

Por fim, as previsões de An Lepard se concretizavam. Não que fossem previsões sobrenaturais, pois as águas turbulentas do Mar Bramante, que separava as terras de Dacs do antigo continente, eram bem conhecidas. Com o mar agitado, o Estrela do Crepúsculo jogava bastante. Entretanto, os ventos não eram muito fortes e não chovia, assim estava longe de ser uma situação extrema. Depois de viajarem nestas condições por mais da metade do dia, a tripulação já começava a se habituar à nova situação.

Lepard explicou que passariam por vários encontros de correntes e provavelmente haveriam tempestades na região. Seriam três ou quatro dias de viagem em condições adversas e depois disso chegariam às águas rasas das proximidades dos nove vales.

Kiorina estava introspectiva e pode captar certa alteração nas energias mágicas depois de entrarem no Mar Bramante. Havia fortes tendências dos elementos água e ar combinados. Sentia com firmeza a predominância do elemento água com o qual não tinha muita afinidade. Mesmo assim, foi capaz de aprender alguns fundamentos de sua manipulação com o silfo Zoros. Imaginava se a pujança energética da região teria relação com a total ausência dela nos arredores das terras de Dacs.

No interior da cabine de An Lepard, que era dividida em três cômodos, Kiorina observava quieta o comportamento da espadachim, Claudine, rodeando e assediando Kyle. Apesar de Claudine ser uma pessoa atenciosa, Kiorina não gostava nada dela. Era forte a impressão de que usava Kyle para provocar ciúmes em An Lepard, ou mesmo, irritá-lo. An Lepard, por sua vez, era um marujo experiente no mar e na vida. De forma alguma cedia ao jogo de Claudine sendo que as atitudes da mulher faziam-no reconsiderar se realmente desejaria reatar a relação rompida. A necessidade de reparar os males que teria provocado a Claudine talvez fossem apenas devaneios de sua parte. Talvez para a moça, a separação não tivesse sido tão traumática, ou mesmo teria sido superada. Mas no fim, sempre ficava a dúvida. Por mais experiência que Lepard tivesse, tinha dificuldades em compreender as mulheres por serem frequentemente enigmáticas.

O jogo em andamento fez justamente que An Lepard voltasse a se aproximar de Kiorina.

- Escute Lepard, não me venha envolver nos jogos de Claudine, certo?

- Jogos de Claudine? Mas de que você está falando? - Mentiu convincente An Lepard penteando a cabeleira loira com as mãos.

Kiorina estava apenas parcialmente convencida. - Não me esconda! - Ameaçou a ruiva com um olhar inquisidor. - Sei que vocês tiveram uma relação no passado.

- Sim, não vou mentir para você. Estivemos juntos e foi muito sério.

- Por que nunca me contou sobre ela? Quero dizer, quando estivemos juntos.

An Lepard deu com os ombros. O navio sofreu um forte solavanco e Lepard segurou-se na mesa que era fixada no chão. - Acho que falar de ex-amores não ajudaria em nada, ajudaria?

Kiorina fez uma careta, mas concordou. - Pois é... - Ao mesmo tempo, observou como Claudine aproveitou o solavanco para atirar-se nos braços de Kyle. Ambos riam e conversavam. Kiorina fixou um olhar raivoso, perdendo a discrição.

An Lepard deu uma olhadela para trás e voltando-se para Kiorina com um sorriso debochou - Parece que você é quem está ligada nas ações de Claudine. Ciúmes do velho Kyle?

- Ora seu! Não me venha com essa! - Retrucou irritada, mas mantendo o controle sobre o tom de voz.

- Quer um conselho? Esquece esse cara, meu bem! Ele nunca vai se aperceber de você. Da pequena e preciosa joia que você é minha cara.

- Dispenso essas intimidades. Entendido, capitão Baltimore?

- Kiorina, Kiorina... Eu a conheço. Conheço seus sentimentos, seus desejos. Por isso soube que não podia competir com seu príncipe. Mas saiba que na mente dele não haverá tempo para você. Há coisas mais importantes, como achar o oráculo, ajudar o reino de vocês...

Kiorina irritou-se bastante, pois ao mesmo tempo em que escutava An Lepard, observava Kyle segurando as mãos de Claudine. 

- É espertinho? - Retrucou venenosa e sussurrante. - Você diz que Kyle não tem cabeça para mulheres? Mas o que é aquilo, uma ilusão?

- Não benzinho, você não o compreende. Antes de ser cavaleiro e portador de grandes responsabilidades, Kyle é um homem. Pode até ser que se envolva com alguma mulher, mas nunca algo sério. É só um mexerico.

A ira de Kiorina irrompeu e num reflexo impensado acertou um tapa no rosto de An Lepard indignada. - Mexerico? Vocês homens são todos iguais.

An Lepard recebeu o tapa e fez uma expressão incrédula levando a mão ao rosto. Logicamente, todos voltaram suas atenções para o ocorrido. Mas antes que algo pudesse ser dito ou feito, Kiorina saiu da cabine marchando e com o rosto rubro.

Em seguida, Kyle comentou com Claudine - Esse An Lepard é mesmo um sem vergonha. Já não basta ter seduzido e ferido a pobre Kiorina uma vez? É mesmo um sem vergonha insistente.

- Você quer dizer que Lepard e a ruivin já...

Kyle deu com os ombros. E voltou os olhos novamente para o rosto de Claudine. Se fosse outra situação, tomaria satisfações com o capitão, mas estava muito à vontade ao lado da mulher e preferiu não sair. Acabou comentando - Kiorina sabe se defender, como você pôde ver.

Claudine respondeu sorrindo - Ah sim, foi um bom tapa, nan é Blequiuin?

Kyle sorriu de volta e com um novo solavanco do navio, perdeu o equilíbrio aproximando-se de Claudine. Por um breve instante os lábios se tocaram e Kyle recuou ruborizado e avexado. - Perdoe-me.

- Nan se preocupe queridin! Gosto de ter você por perto. - Disse e piscou o olho.

O coração de Kyle acelerou e antes que algo progredisse. An Lepard aproximou-se empurrando-o nos ombros e dizendo. - Não perde tempo, hein Blackwing?

- Olha capitão, não estou disposto a brigar com você. Por que não paramos por aqui?

- Brigar? - Debochou Lepard. - Quem falou em brigar? - Seu problema Blackwing é que leva tudo muito a sério.

Kyle irritou-se e deu um passo em direção a An Lepard, mas parou, pois Claudine segurou-lhe o braço e foi severa com Lepard - Deixe-o em paz, certo? Você é tão corrupto que sequer admite que haja alguém verdadeiramente inocente?

An Lepard engoliu o fel e recuou. - Desculpe-me Kyle, acredito que interpretei mal suas ações.

Claudine observou-o incrédula. - Pedindo desculpas, capitão? Uma mudança e tanto.

- Escute Claudine, sei que às vezes sou um cretino, mas mudei muito nos últimos tempos é não é só no físico. E devo muito a este jovem, não fosse isso, não estaria aqui arriscando meu barco nesta jornada perigosa.

Houve silêncio, mas An Lepard voltou a falar. - Aceita minhas desculpas, Blackwing? Não queria ser rude ou fazer brincadeiras desagradáveis, se estivesse de fato mal-intencionado, sei que sua reação seria outra.

Kyle estava um pouco sem graça, abaixou a guarda e concordou - Tudo bem Lepard, tudo tranquilo.

Antes do desfecho da situação um novo solavanco violentíssimo acompanhado de um estrondo atirou todos ao chão.

An Lepard arregalou os olhos e anunciou - Isso não foi o mar!

- Outro navio!? - arriscou Kyle colocando-se de pé.

- Duvido - replicou aceitando a ajuda de Kyle para ficar de pé. - Vamos verificar!

Saíram para o Convés e havia muita agitação. Do alto da gávea um marujo gritava em dacsiniano - Uma besta! Uma besta do mar!

- O que está havendo? - Quis saber Kyle.

Claudine que estava próxima explicou - Arme-se Blequiuin! É um monstro do mar!

Kyle correu para sua cabine para buscar sua espada. Neste ínterim, An Lepard comandava as ações dos tripulantes. Entre um e outro choque que o navio recebia contra o casco, as velas eram recolhidas. O capitão buscava minimizar o efeito das guinadas do navio que eram potencializadas pelo forte vento contra as velas. O marujo posicionado na gávea avisava quando haveria novo impacto, pois conseguia ver a sombra da criatura que ia e vinha contra a embarcação. A tripulação reconhecia a perda de um marujo que foi ao mar após o primeiro impacto. Teria sido devorado. Arpões eram preparados ao mesmo tempo em que alguns marujos desciam aos conveses inferiores para cuidar dos danos provocados no casco.

Quando Kyle retornou ao convés principal, um marujo reportava sobre a situação do casco. Informava a ocorrência de diversos vazamentos, mas nenhum dano maior até o presente momento. Até então, a criatura castigara o Estrela do Crepúsculo com cerca de dez encontrões. Esperavam que a criatura se cansasse e fosse embora.

- A bombordo! - o marujo da gávea gritou. 

Do tombadilho, os tripulantes puderam acompanhar a aproximação. Era uma grande massa escura que se assemelhava a uma baleia. Era muito veloz e nadava abaixo da superfície. Acima dela, a água deslocada formava um ovo. Neste momento, puderam avaliar o tamanho da criatura. Seu comprimento correspondia a aproximadamente metade do comprimento do navio. Com a aproximação, um dos marujos precipitou-se contra a amurada arremessando com muita habilidade um grande arpão de pesca contra a besta. Antes que o arpão atingisse a água, um forte espirro d'água surpreendeu a todos. Quatro ou mais tentáculos projetaram-se para fora em direção ao marujo. Seu tronco e braços foram agarrados e com violência e velocidade incríveis foi puxado para fora do navio. O pobre coitado sequer teve a oportunidade de gritar. Um dos tentáculos também agarrou a lateral do navio e com o forte puxão, as madeiras se quebraram fazendo com que a nau sofresse forte inclinação.

Após este ataque alguns marujos começaram a gritar desesperados - Blukutil! Blukutil! Vamos todos morrer!

Kyle indagou a An Lepard - O que é um Blukutil? Nunca ouvi falar...

An Lepard respondeu - Uma terrível besta que afunda navios! Dizem que nenhuma embarcação já sobreviveu a um ataque.

Archibald que estava por perto questionou - Se ninguém sobreviveu, como sabem como é a criatura?

- Calem-se! - Ordenou Kiorina furiosa. - Precisamos afugentar esse monstro.

- Alguma ideia? - Quis saber An Lepard.

- Pensei em castigá-lo com o fogo. - Sugeriu a ruiva.

Enquanto discutiam sobre o tombadilho, a criatura voltou a atacar com seus tentáculos pelo flanco esquerdo. Neste momento, ela trouxe para fora a cabeça. Havia cinco ou seis tentáculos maiores que saiam de cima da cabeça e da nuca, enquanto duas dezenas de tentáculos menores situavam-se ao redor da sua boca enorme dotada de diversas camadas de dentes pontiagudos do tamanho de pequenos punhais. A coloração era pele era escura, com tonalidades predominantes de azul profundo e ocasionais rajadas marrons e amareladas. O par de olhos grandes e escuros, do tamanho de melões, tinham as pálpebras semicerradas. Havia uma pequena íris avermelhada que girava frenética. Nas costas do bicho, a confirmação da boa pontaria do marujo devorado. O arpão estava fincado e parecia provocar dor. Umdos grandes tentáculos tentava removê-lo sem sucesso. Algumas flechas foram disparadas, e apesar de atingirem a criatura na região da cabeça, pareciam não penetrar o suficiente na espessa carapaça para machucar a besta.

Um dos tentáculos enroscou-se contra o mastro principal, mas não tinha força para rompê-lo. Alguns marujos tentavam atacar os tentáculos com espadas, mas logo eram envolvidos por estes e arremessados ao mar. Outros eram trazidos para as proximidades da boca. Nesta situação, os tentáculos menores esticavam e partiam o corpo entre uma e outra mordida da criatura, que tinha a garganta um tanto estreita para engolir um homem de uma só vez.

Kiorina concentrou-se para realizar magias e atirou duas bolas de fogo contra a cabeça do Blukutil. Devido ao balanço, uma delas perdeu o alvo.  Chiou forte ao cair na água dissipando fumaça clara. Mas a outra atingiu um dos tentáculos que envolviam um marujo salvando-o. Ele fugiu e jogou-se para dentro o porão do navio. Com a situação ruim, Archibald desceu para buscar o cajado em sua cabine. O ex-monge quase trombou com Claudine que saiu com uma tocha acesa nas mãos e vidros com óleo na outra. Atirou um projétil incendiário certeiro contra a criatura que guinchou de dor. Mesmo enquanto queimava, a besta atacou Claudine. Suas pernas foram envolvidas por um tentáculo que a derrubou no chão. Assustada gritou deixando cair para trás a tocha e os vidros. Foi arrastada com violência pelo chão do convés, mas no último momento conseguiu segurar-se no cordame que ia das laterais do navio aos mastros. Gritava desesperada. An Lepard e Kyle avançaram para ajudá-la, mas logo o capitão ficou para trás por causa de seu aleijão. Kyle saltou do tombadilho com a espada em punho e correu para acudi-la.

- Claudine! - gritou o rapaz sentindo o coração disparado quase saindo pela boca.

A força dos braços da dacsiniana resistiu apenas por alguns instantes. O tentáculo da besta, muito mais forte, arrancou-a das cordas num forte baque, mas novamente a sorte impediu-a de trazer a mulher até a bocarra. A bainha da espada de Claudine que estava atada ao seu cinto ficou embaraçada no cordame.

A criatura estava furiosa com o ataque ígneo recebido da dacsiniana e queria vingança. Com isso, aproximou-se do ponto em que ela estava presa e projetou seu corpo para cima do navio, quebrando parte da amurada. O navio inclinou-se em sua direção. Claudine sentiu o hálito quente da besta e gritou em pânico, sendo enroscada por meia dúzia de tentáculos menores que buscavam levá-la ao alcance de suas mandíbulas mortíferas.

Ao mesmo tempo, Kyle tomou forte impulso, aproveitando-se da forte inclinação da embarcação e caiu sobre a lateral da cabeça besta incrustando nesta sua espada. O monstro guinchou de dor e com o choque afrouxou os tentáculos que espremiam e puxavam Claudine. Ela ficou pendurada nas cordas pelo cinto. Kyle segurou firme no cabo da espada, mas seus braços latejavam de dor. Em seguida, buscou apoio com os pés, mas a pele do monstro marinho era muito escorregadia. Sendo assim, ficou pendurado por uns instantes e caiu no convés, ao lado da criatura.

O Blukutil tentou recuar para o mar, mas estava preso à lateral da embarcação, que se mantinha inclinada. Suas nadadeiras laterais estavam enganchadas na estrutura do navio. Usando seus tentáculos menores a criatura conseguiu agarrar o cabo e parte da lâmina da espada de Kyle desenterrando-a e atirando-a contra o convés. Kyle havia caído de mau jeito e tentava ficar de pé quando foi envolvido pelos tentáculos da besta. Sem conseguir segurar-se foi levado até a boca da criatura. Kyle gritou sentindo sua perna esquerda e parte do abdome sendo rasgados pelos dentes afiados da besta.

Archibald retornara ao convés de posse do cajado e, ao ver o amigo sendo ajeitado pelos tentáculos mandibulares para mais uma mordida, gritou - Kyle!

Kiorina desceu do tombadilho e atirou uma bola de fogo certeira que rodopiou para o interior da boca da criatura. O efeito foi pequeno, mas suficiente para evitar que Kyle continuasse a ser mastigado. 

De imediato, a ruiva percebeu alta densidade energética emanando do cajado de Archibald. Um olhar foi suficiente para Archibald e Kiorina percebessem que deviam unir forças. Seguraram juntos o cajado e a potência das chamas que Kiorina pode evocar foi ampliada. Os olhos da ruiva brilharam saturados com a energia mágica e com isso convocou uma magia poderosa que nunca tinha conseguido evocar. Lançou-a contra a cabeça da besta, atingindo-a em cheio. Um forte estrondo soou e chamas e fumaça foram projetadas em todas as direções. Mesmo não tendo sido alvo da magia, Kyle e Claudine foram envolvidos pelas chamas.

Com a boca, cabeça e tentáculos em chamas, a criatura contorceu-se violentamente, chacoalhando o navio. Ela desvencilhou-se, voltou a submergir apagando o fogo. Kyle foi deixado para trás. Ao perceber o perigo afastando-se, Kiorina controlou e extinguiu as chamas que se espalhavam no convés. A criatura não mais retornou. Haviam sobrevivido.

Kyle estava inconsciente e sua situação era ruim. Logo foi acudido pelos marujos e levado à cabine do capitão. Os cortes em seu corpo eram profundos e o sangue corria em grande volume. Archibald convocou orações curativas e pode estancar os sangramentos. Ao cair da noite, apesar de todos os esforços aplicados, Kyle não recobrou a consciência. Isto deixou todos apreensivos.

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