CAPÍTULO 78

Derek acordou e viu Calisto reunindo os pedaços da armadura do esqueleto. – O que houve com Dagon?

Calisto não respondeu. Tinha muito em mente. Pensava sobre o que o espírito de Dagon havia dito. Que ele era um Greysnow, assim como Maurícius e Serin. Derek se aproximou e cutucou-o com a ponta do pé e repetiu a pergunta. Calisto virou-se tremendo e disse – Ele se foi.

– Se foi?

– É... Para o além. Tome isto. – Calisto ofereceu com as mãos trêmulas as peças da armadura. – Parece ser melhor que a sua.

Derek avaliou as partes e concordou. Havia visto antes a armadura usada pelo rebelde conhecido como Cavaleiro Vermelho. Era feita de um metal cinzento, mas sutilmente avermelhado. – Vou ver se cabe... Quer dizer então que Dagon morreu?

– Não estúpido! Ele já estava morto, lembra? Apenas se desfez em pó. Ao menos ele agora está livre de ser um títere nas mãos de Serin.

– Quanto a nós – resmungou o grandalhão – continuamos a ser peões nas mãos de Thoudervon e dos demais.

– Tem razão, Derek.

– Me ajude aqui, Calisto. Não queremos ser apanhados desprevenidos.

Calisto, a contra gosto, foi ajudar Derek a vestir a nova armadura.

A luz da manhã preencheu o templo e todos os demais acordaram. Durante o desjejum o assunto foi o sumiço de Dagon. Não foi fácil para os demais entenderem. Mas a explicação de Calisto foi aceita – Ele era um morto-vivo, uma criatura das trevas. Não resistiu passar uma noite neste templo. Ao menos isso prova que eu não estou do lado dos maus, certo?

Kyle aproveitou que estavam todos reunidos e mentiu – Escutem, tive uma nova visão. Vi que Kel vem para cá com forças muito maiores do que previ. Temos que fugir, senão seremos trucidados.

A voz sinistra que vinha com o vento soou – Há, há! Não há para onde fugir. Fujam para ganhar mais uns dias de vida, insetos miseráveis!

– Como assim, Blackwing? – contrapôs Calisto – Não devemos fugir! Viemos aqui para confrontá-lo. Recebi uma missão e não posso falhar.

– Se quiser se suicidar, tudo bem, fique. Nós vamos sair, talvez, eu consiga enxergar um outro jeito de confrontá-los depois. Mas tenho certeza, se ficarmos, farão picadinho de nós.

A voz de Noran soou na mente de Calisto "Isso faz parte do plano para ludibriar o demônio".

– Se você diz que é assim, vamos.

– Há, há, há! Seus insetos covardes! Vou cuidar de persegui-los pessoalmente. Vocês serão meus! Serão meus! – A voz do demônio veio acompanhado de uma forte ventania.

Todos montaram e saíram do templo em disparada. Kiorina tinha o coração acelerado, a voz daquele demônio causava-lhe horror.

Kyle pensou "Ótimo, tudo está correndo conforme o previsto".

– Para o norte – gritou Kyle – vamos arranjar um navio e partir deste lugar.

Seguiram o caminho até que Noran comunicou-se com Kyle "Ele não tem mais a atenção sobre nós. Está ansioso pela chegada de Kel e da comitiva. Esperou por tempo demais o momento de sua libertação. Está confiante que será liberto, ainda hoje".

Kyle puxou as rédeas do cavalo e ergueu a mão – Vamos dar a volta. Iremos fazer um assalto sobre a comitiva na floresta, antes que cheguem às ruínas. Nosso ataque precisa ser cirúrgico. São forças muito grandes, como disse, mas além do elemento surpresa temos outro trunfo. Örion, meu meio-irmão, viaja junto da comitiva. Tenho meios de usá-lo. Ele irá prover a distração de que precisamos.

– Meio-irmão? Que história é essa? – Kiorina franziu o cenho.

– Não tenho tempo de explicar.Temos que atacar já. Nosso objetivo é abrir espaço para Calisto disparar seu cajado contra Kel.

Calisto sorriu – Entendi! Seu plano é genial.

– Vamos! – Kyle liderou a cavalgada para o leste. Seguiram-no apreensivos. Tudo acontecia muito rápido. Kiorina sentiu um aperto no peito. Desde que conversara com Kyle, no navio de Lepard, esteve fechada e nunca o perdoou. Agora temia que pudessem morrer naquela ação. Isso a angustiava.

Kyle sentia o peso do mundo nas costas. Tinha uma boa ideia do que iria acontecer, mas sabia que o futuro era difícil de cercar que algo poderia sair errado. As memórias do espírito de Dagon o assombravam. Não havia previsto aquilo. Teria a linha de futuro sido quebrada? A incerteza crescia, e seu coração se comprimia. Noran, bem de perto, estimulava-o com eflúvios de força e coragem.

Gorum seguia para mais uma batalha se recordando das tantas que havia enfrentado. Tudo havia começado com a perda da esposa e da filha. Sentia-se em paz, pronto para dar sua vida, em especial, se fosse por Kyle ou Kiorina.

Ector tremia de medo. O temor que teve de Thoudervon parecia pequeno se comparado à sensação que tinha agora. Não havia como fugir. Para confrontar seus medos lembrou-se de Mestre Fangos. Ele havia o ajudado a tornar-se um membro ativo na rebelião e participar de diversas ações arriscadas. Pensava nele e em sua própria família para ganhar forças para o que estava por vir.

Derek por outro lado, não tinha nenhuma gota de medo. Tinha plena confiança em seu machado para arrasar qualquer inimigo.

Kyle comunicou-se com Noran "Agora é com você!" e concentrou-se para abandonar seu corpo. A tênue linha que o ligava a seu meio-irmão ficou visível e o corpo espiritual de Kyle a seguiu.

Örion cavalgava ao lado da bruxa Zeah, de Rílkare, Poul, Keledrel e outros. Várias carroças carregadas com centenas de crianças raptadas do reino de Aldancara compunham o cortejo. A energia a ser liberada pela execução de centenas de inocentes iria quebrar as defesas finais do encanto que protegia o templo. Este era o dia esperado por Zeah e todos seguidores de Marlituk. 

O jovem meio-silfo, assim como os outros, vinham sendo corrompidos pelas forças malignas dos espectros de Marlituk. A corrupção de Örion, Poul e Rílkare ainda não era tão profunda. Eles haviam testemunhado coisas indizíveis na fortaleza da torre negra. Poul vira sua esposa Adria e outras tantas mulheres, darem a luz terríveis criaturas, demônios, filhos de Marlituk, gestados para incorporar seus espectros.

O monstro que saiu de Adria, chamado Ayon, cresceu em poucos dias para se tornar um demônio magro e de aparência horripilante. Este seguia o cortejo ao lado do rei. Kel, já não exibia aparência totalmente humana. Sua boca havia crescido e os dentes deformados eram pontiagudos e numerosos. O rosto assumira um aspecto escamoso, mas usava a coroa sobre a cabeça e seus cabelos longos, agora mais ralos, escorriam até a cintura. Os olhos tornaram-se amarelos e fendidos como os de um lagarto e as mãos escamosas apresentavam garras. Era meio-humano, meio-besta. Seguiam também o cortejo, bestiais, ogros, tardos e mortos-vivos. Era uma larga e longa coluna com cerca de trezentos membros.

Kyle chegou até Örion e mergulhou em sua mente. Sentiu-se imediatamente mal, pois o corpo de Örion começava a ceder aos efeitos da corrupção de Marlituk. Diferente de seu meio-irmão, a mente de Kyle era mais dura, focalizada e treinada. Conseguiu deixar as influências malignas à margem e saiu da formação avançando para encontrar-se com o rei.

– Majestade – chamou Örion.

– O que é, meu servo?

– Vim adverti-lo a respeito de uma visão.

– Visão? Que assunto é este?

– Eu vi, no templo... Estrangeiros. Eles representam uma ameaça.

– Ah, isto? Eu já sabia deles. Não são mais um problema. Fugiram com o rabo entre as pernas. Mas obrigado por avisar. Logo mais, enviarei você e seus companheiros para persegui-los. Irão se divertir.

– Obrigado, majestade, mas penso que será mais divertido ver você estrebuchar e morrer!

– Há?

Örion convocou um feitiço fazendo lama voar contra os olhos das montaria de Kel e de diversos outros cavalos. Houve comoção e alguns cavalos correram, outros derrubaram quem os montava.

Kiorina dissipou o feitiço de silêncio que havia aprendido com Zoros. Os cinco cavalos voltaram a fazer barulho ao sair da mata e dirigir-se para o local onde estava o rei. O cortejo atravessava uma trilha em meio a densa floresta.

– Esboscada! – alguém gritou.

Kyle abandonou o corpo de Örion deixando-o confuso, sem entender o que havia acontecido. A presença de Kyle havia pressionado para fora a essência maligna de um fragmento espectral de Marlituk. Ele pode pensar com clareza pela primeira vez em semanas. Lembrou-se dos acontecimentos do período recente e sentiu-se enjoado e culpado. Estava disposto a lutar para obter vingança.

Kyle retornou a seu corpo que foi conduzido por Noran durante sua breve ausência. Kyle e Calisto cavalgavam lado a lado em meio a confusão. O cavalo do rei ainda empinava descontrolado.

Kiorina convocou um elemental de fogo na forma de um pássaro que dava proteção a ela e Ector. Gorum e Derek se adiantaram travando combate contra bestiais. O demônio, Ayon, veio proteger seu pai e mestre. O rei visitava a torre negra para plantar sua semente corrompida nas mulheres que Zeah capturava para este fim.

Ayon saltou sobre a montaria de Calisto provocando uma queda feia. Se ele se machucasse o plano poderia ruir. Ector lançou um rápido feitiço para amparar Calisto fazendo-o pousar suavemente. Calisto, com espada e escudo, defendeu-se de mortos-vivos que o cercaram.

Kyle saltou do cavalo e fez uma acrobacia para cair no chão correndo. Lutava de olhos fechados usando sua terceira visão. Saltou sobre Ayon atingindo-o com os dois pés no rosto. A energia do Kishar fluía e o chute o atirou para trás fazendo-o perder os sentidos.

O elemental de Kiorina se fez útil protegendo-a de um ataque do tardo Nergon. Um ogro enorme atacou Derek, mas teve o braço decepado pelo machado encantado.

Poul veio confrontar Örion gritando – Traidor!

Örion recuou sem coragem para confrontar o velho amigo.

O Rei Kel atirou-se do cavalo e rolou no chão. Kyle queria atacá-lo, mas deparou-se com o silfo Keledrel. Teve que recuar e esquivar-se de repetidos golpes de espada. Keledrel era ágil demais para Kyle antever seus movimentos. Kiorina lançou uma bola de fogo que atingiu Keledrel em cheio, envolvendo-o em chamas. Calisto se defendia dos mortos-vivos e conseguiu abater um deles. Kel já estava de pé e com uma lâmina envolta em energia negra avançou e atacou Calisto.

Ele se defendeu com o escudo, mas o golpe atravessou-o provocando uma dor congelante e paralisando seu lado esquerdo. Calisto largou a espada e pegou o bastão dado por Thoudervon. Haveria apenas uma chance de acertá-lo.

Um ogro veio por trás de Ector e Kiorina e chutou a montaria que compartilhavam, derrubando-os. Gorum foi cercado por bestiais viu a morte se aproximar e vociferou – Que ironia! Logo bestiais!

Rílkare avançou contra Örion e derrubou-o do cavalo com um golpe. Derek foi atingido por uma flecha certeira disparada pela silfa Ardívilla.

Kyle tinha passagem livre para chegar em Kel, mas Zeah lançou um feitiço sobre ele. Era tudo ou nada. Kyle saltou desviando-se da magia atirada por Zeah e concentrou todas suas forças para lançar um golpe distante. O alvo era o bastão de Calisto, mais precisamente, o local onde estava acoplado o jarro que continha o cintilante amalgama de tempo comprimido. O golpe distante de Kyle zuniu como uma flecha invisível e estilhaçou o jarro. O líquido amarelo expandiu-se formando uma bolha, mas voltou a contrair-se. Expandiu-se novamente e contraiu-se. Seguiu fazendo assim, porém a cada movimento, a expansão ia mais longe. Tudo começou a ficar muito devagar.

Kiorina rolava no chão, mas conseguia pensar em muitas coisa antes de dar uma nova volta em torno de si mesma. O rei erguia a espada negra para desferir o golpe fatal contra Calisto, mas o golpe não avançava, o tempo estava se paralisando. O congelamento temporal que deveria ser aplicado por Calisto, apenas em Kel, foi progressivamente se ampliando a todos presentes.

Noran viu tudo ficar extremamente lento e se sentiu congelado. Derek viu tudo de um modo diferente. Todos tinham parado, apenas ele se movia. Achou que estava delirando. Pessoas que giravam em pleno ar estavam paradas como estátuas. Seus próprios movimentos foram ficando mais lentos, e mais lentos. A flecha no peito não o impediu de correr para tentar escapar daquele efeito que se expandia. Ao longe, viu que as árvores estavam parando de agitar os galhos. Pássaros parados no céu. Tudo congelava.

Derek corria, mas a sensação é que fazia uma lenta caminhada. Noran observou Derek se mover enquanto dos demais estavam congelados. O espírito sentia os próprios pensamentos lerdos. Viu Derek dar alguns passos, o sol se mover no céu, mas o pé de seu corpo espiritual, não se movia mais que alguns milímetros.

Tudo ficou muito quieto e Noran conseguiu formular um pensamento "Deu certo! O plano de Kyle funcionou! Preciso seguir suas instruções. Devo sair daqui e buscar ajuda. Devo ir até Tchilla buscar por Archibald". Quando este pensamento se concluiu, notou que o sol já havia se posto.

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