CAPÍTULO 76
Depois de algum tempo percorrendo corredores e câmaras escuras, Calisto, Ector, Derek e Dagon chegaram a um lugar iluminado. Era um grande salão de uma construção em ruínas. Musgo e pequenas plantas cresciam nas regiões próximas às janelas. Lá fora, o céu estava alaranjado, seria o alvorecer ou crepúsculo? A saída estava coberta por uma pilha de blocos de rocha.
– Teremos que sair por uma janela – sugeriu Ector.
– Aquela – apontou Derek – e subiu uma pilha de escombros coberta por relva e pequenos arbustos. Ele alcançou o beiral da janela e escalou com facilidade.
– É um pouco alto do outro lado – o cavaleiro comentou.
– Vamos ver – Ector disse e subiu. Sua reação foi mais intensa que a de Derek ao ver além da janela.
– Pela Alta Magia! Esse lugar é enorme! Podia ver dali ruínas tomadas parcialmente por vegetação até perder de vista. – Então essa é a grande Ilm'Taak!
– Deixe-me ver – Calisto fez força para subir e depois de uma boa olhada disse – São ares muito diferentes de Lacoresh.
Ector convocou um feitiço sobre Calisto e instruiu – Pode pular, eu retirei seu peso por uns instantes.
Calisto olhou nos olhos do rapaz que não inspirou desconfiança. Caiu devagar à princípio, mas depois acelerou. Quando caiu no chão teve que rolar para não se ferir.
O mago fez o mesmo com Derek, mas o feitiço dissipou-se rapidamente. – Não funcionou!
– Vá com Calisto – ordenou Derek. – Vou descer e procurar outra saída com Dagon.
Ector obedeceu, saltou e pousou suavemente.
Calisto resmungou, ainda limpando sujeira e folhas de seu traje – Será que não podia ter feito um serviço decente?
Ector mentiu – O feitiço não funciona tão bem em outros.
Antes que uma discussão surgisse ouviram um barulho vindo de dentro da construção.
Derek havia sacado seu machado e acertou-o com violência contra um bloco de rocha que bloqueava a saída. Esta partiu-se em duas e rolou para baixo da pilha.
– Dagon, me ajude aqui – disse e atingiu outro bloco de rocha provocando fagulhas. Menos um. A barulheira das pancadas de Derek seguia constante, interrompida por períodos em que a dupla rolava blocos partidos para fora do caminho.
Os sons do quebra-quebra iam longe e preocupavam Calisto. A última coisa que queria era chamar atenção.
Derek sentia-se cada vez mais confiante. O machado mágico fazia-o sentir-se poderoso. Acertava as pedras com um sorriso estampado no rosto.
Fora, Calisto e Ector aguardavam ansiosos. Seu tique do rosto e dos olhos surgiu com intensidade. A cada batida a tensão crescia. Calisto tinha a impressão de que alguém, ou alguma coisa, se aproximava. Tinha razão. Viu ao longe vultos escuros deslocando-se com agilidade e saltando de um ponto a outro das construções.
– Você viu também? – indagou Ector
Calisto confirmou com um gesto. Tentou sondar as mentes dos seres que davam saltos sobre-humanos entre os edifícios. Não havia pensamentos humanos. Se aproximavam rapidamente e estavam em grande número. Calisto sacou sua espada e tirou o escudo das costas. Podia ver o sol se pondo e o céu escurecendo aos poucos, agora rubro.
Derek abriu uma brecha pequena para o lado de fora. Tão logo o fez, Calisto disse – Rápido! Há criaturas que logo estarão sobre nós!
Os seres grandes e corpulentos se aproximavam. Tinham braços grossos e longos se comparados às pernas. Os troncos largos mostravam pelos marrons escuros. O modo de se mover lembrava o de macacos, mas as expressões e formato do rosto não. Tinham grandes orelhas de abano um pouco acima da cabeça, olhos escuros e pequenos, queixos largos e o rosto sem pelos, cinzento e de pele enrugada. Tinham expressões zangadas, grunhiam e gritavam. Eram mais que dez.
Calisto tentou um ataque mental, mas isto apenas pareceu irritá-los. Ector convocou uma barreira de fogo e fumaça, mas eles avançaram. Subiram em árvores e se atiraram por cima da linha de fogo que queimava rente ao chão.
O primeiro avançou num estranho galope contra Calisto. O rapaz saltou de lado e rasgou o braço do opoente com sua lâmina. Segurando-a com firmeza ele conseguia anular suas tremedeiras movido pelo calor da batalha. Outro atacou em seguida e teve o golpe bloqueado pelo escudo. A pancada ressoou, o braço de Calisto doeu e ficou dormente. Ele revidou com uma careta, suportando a dor, e deu uma estocada certeira na garganta do bruto que recuou e tombou.
Ector repeliu um deles com um jato de chamas, mas foi atingido no peito por um pedregulho atirado por outro monstrengo. O mago caiu sem fôlego e atordoado. Calisto viu-se só e rodeado por cinco das criaturas. Suas mentes pareciam blindadas. Ao vê-las agir de maneira coordenada, ele concluiu que não eram meros animais, mas criaturas inteligentes. Notou que conseguia ler suas intenções e conseguiu desviar-se e defender-se de algumas investidas, mas seu fraco preparo físico o trairia a qualquer momento. Suava muito e sentia o corpo mais pesado a cada esquiva.
Dagon entrou na batalha cravando sua enorme espada no ombro de um dos oponentes. Derek chegou e partiu uma das criaturas em dois com seu machado. Calisto foi atingido por um safanão que o atirou girando para o chão. Perdeu a espada quando sua cabeça bateu-se contra um pedregulho que fez seu elmo metálico estalar e ressoar.
Derek e Dagon se posicionaram ao lado dele e seguiram dando combate. Dagon alertou – São muitos! Veja!
Derek abateu mais um girou seu machado que brilhava intensamente ao ser usado como instrumento de morte. Mais criaturas se aproximavam, talvez centenas delas.
Calisto levantou-se e pegou a espada de volta. Sentia sangue escorrer por seu rosto. Lembrou-se do anel encantado por Yourdon e disparou contra as criaturas. Um relâmpago cegou a todos com sua luz intensa. O raio elétrico espalhou-se num leque atingindo um grupo de seis inimigos que estrebucharam e caíram envoltos em fumaça.
– Diabos! Isto não será suficiente!
Em meio à confusão e gritos das criaturas ouviram o som de cavalos galopando. O sol estava prestes a se por.
Calisto disparou outra carga de seu anel e fulminou mais quatro criaturas. Em seguida, teve que usar sua última carga para evitar que fossem cercados. Mais e mais chegavam sem cessar. Um clarão veio de onde chegava o som dos cavalos. Um pássaro de fogo surgiu e sobrevoou as criaturas para finalmente formar uma muralha de fogo cinco vezes maior que a erguida por Ector. Este percebeu que não era magia simples, mas sim um elemental do fogo.
Entre os que se aproximavam, Calisto captou uma forte aura semelhante à do tisamirense Vekkardi. Os cavalos surgiram a dois quarteirões de distância. Eram cinco, mas apenas três deles carregavam pessoas. Eram dois homens e uma mulher. O elemental protegia Calisto e os demais do avanço das criaturas.
Uma voz soou nas mentes de Calisto, Ector e Dagon – Rápido! Por aqui!
O grupo correu em direção aos cavalos. Um homem que conhecia a todos pelos nomes ordenou – Dagon, Derek, tomem estes cavalos. Ector, vá com ela e você, Calisto, venha comigo.
– Ector? É você mesmo? – disse a ruiva.
– Kiorina De Lars? – o jovem mago estava atônito, mas abriu um largo sorriso e convocou um feitiço para saltar para a garupa do cavalo.
Kyle estendeu a mão para Calisto subir em seu cavalo, enquanto Derek e Dagon tomavam os dois cavalos livres.
– Soldado Derek? – indagou Gorum.
– Cavaleiro Gorum! – ele o reconheceu. Haviam lutado juntos na guerra contra os bestiais, anos atrás.
– Vamos todos! Para o templo! – Kyle ordenou com firmeza.
– Mas quem são vocês? – Calisto queria saber.
– Assim que estivermos seguros darei explicações.
Kyle liderou a cavalgada pelas ruas cobertas de relva. Chegaram a uma larga avenida e seguiram até uma praça aberta, tomada por mato e algumas árvores. Além destas, havia uma pirâmide, uma das maiores construções da cidade. Perto dela, o templo que ainda preservava seus enormes portões de metal.
– Vamos entrem! Estaremos seguros no templo.
Lá desmontaram e não puderam se examinar, pois o resto de luz do dia que penetrava pelas janelas era insuficiente. Kiorina ateou fogo nas duas piras metálicas localizadas próximas ao altar.
– Notei que são lacoreses, mas afinal, quem são vocês?
– Sou Kyle Blacking, esta é Kiorina e ele, Gorum. Somos de Kamanesh e estamos aqui por uma causa em comum, confrontar o demônio Marlituk.
Quando Kyle pronunciou aquele nome, um vento soprou no interior do templo e uma espécie de relva negra e gelatinosa invadiu o local, mas não conseguiu se aproximar do altar. Acomodou-se numa meia-lua a um dez passos em torno deste. O piche vivo se agitava com suas centenas de tentáculos raivosos se esforçando para avançar mais. Era uma coisa assustadora.
Calisto ignorou a criatura e continuou seu inquérito – Como nos encontrou? Como sabia nossos nomes?
– Através de visões. Vi o futuro e o passado. Aquelas criaturas que confrontamos, por exemplo, são os últimos habitantes desta cidade presos a uma maldição que os converteu em bestas, há milênios. Morrer para eles não é uma opção. Os que perecem durante o dia, retornam durante a noite.
– Então você vê o futuro? – Calisto estava desconfiado.
– Sim.
– E o que ele me reserva?
– Um confronto com terríveis forças que virão a este lugar, logo mais. Eles vem para realizar um ritual a fim de libertar o restante da essência do demônio, assim como seu último corpo que está selado no subterrâneo deste templo.
– Restante da essência?
– Sim, uma parte desta já se libertou. Habita e corrompe o corpo de várias pessoas que vivem nesta região, entre elas, o Rei de Saubics, Kel.
Aquilo atiçou a curiosidade de Calisto que quis descobrir mais sobre as visões daquele estranho. Tentou sondar a mente de Kyle, mas foi repelido. Uma voz diferente da de Kyle, calma, mas ameaçadora soou na mente do rapaz. "Fique longe se não quiser se ferir."
Calisto cambaleou e encarou Kyle com ódio. Irritou-se em perceber que ele era de algum modo mais forte e poderoso.
Noran transmitiu a Kyle "Nossa fusão está funcionando bem!". Kyle sorriu.
Kiorina disse baixinho – Veja Kyle, ele tem os mesmos olhos negros que o filho de Jeero.
– Jeero, você disse? Armand, seu filho, é meu afilhado. – Calisto encarou Kiorina, mas ela sentia desconforto em olhar para olhos tão estranhos.
– Afilhado? – Kiorina desviou o olhar – Que história é essa?
– Sim, o dono da tecelagem DeFruss-Lars pediu-me pessoalmente para apadrinhar seu filho.
– Então, eles estão bem?
– Bem? Muito bem e muito ricos. Ele também é o mestre da moeda de meu domínio.
– E o menino, como está?
– Armand é um bom menino. Pretendo que ele herde minhas terras, um dia.
– Você é um dos necromantes?
– Não, longe disso. Já trabalhei para alguns deles, mas no fundo não gosto nada deles. Se tiver uma oportunidade me livrarei dos malditos. Posso ver que os odeia tanto quanto eu, quem sabe nos aliemos em outra causa após deter Marlituk?
Um sussurro sinistro misturado com vento soou ali – Não podem me deter, insetos...
– É o que veremos! – desafiou Calisto.
– Há há há.... – soou uma gargalhada fantasmagórica.
– Uma coisa é certa. Não temos o elemento surpresa. – Calisto disse aos demais.
– É melhor ficarmos quietos – sugeriu Kyle – Vamos comer e repousar.
– O que vocês tem aí para comer? – Perguntou Derek.
– Trouxemos alguns mantimentos de Nevreth – Gorum pegou uma sacola presa à sela de sua montaria. Neste momento, Gorum notou que o rosto do outro cavaleiro era estranho. Ele permanecia longe do altar mexendo os pés naquela gosma pegajosa.
– Ei, você, não vem comer?
– Não, obrigado. Não tenho fome.
Gorum achou a voz estranha, mas deu com os ombros e foi até os demais.
Assaram algumas carnes nas piras e conversaram um pouco durante o jantar. Kiorina e Ector conversaram longamente noite adentro. Lá fora, chovia. Ela contou sobre suas viagens, sobre os Silfos do Mar, Tchilla, a terra dos Inikutz e Banzanac. Ector contou sobre Lacoresh e como esteve colaborando com a rebelião até pouco tempo, quando partiu numa missão com Vekkardi e Calisto que culminou na captura de ambos por Thoudervon e com a morte do silfo Roubert.
Roubert também foi tema de uma longa conversa entre Gorum e Derek. Falaram também sobre Julius Fortrail e Gorum ficou chocado ao saber da anexação de Homenase a Lacoresh.
Ector também falou sobre o estranho plano netéreo e Kiorina achou aquilo fascinante. Kiorina evitou falar sobre o oráculo, pois recebera instruções de Kyle para não mencioná-lo. Apesar de saberem da presença maligna do demônio nos arredores, sentiam-se seguros próximos ao altar do templo. Era uma região muito abençoada, na qual perdurava um antigo o potente feitiço protetor. Ambos os magos podiam sentir as energias do feitiço. Kiorina também contou sobre Teris, o esqueleto de um antigo feiticeiro e sobre a incrível magia que trouxe o navio até as proximidades de um porto do reino de Nevreth.
Kyle ficou quieto, assim como Calisto. Apenas escutavam as conversas dos demais. Mais tarde, o cansaço os venceu e adormeceram, com exceção Dagon e Calisto.
Era madrugada, Dagon olhava para o altar fixamente. Calisto estranhou quando o viu retirar todas as peças da armadura ficando apenas em osso. Notou que a gema que ele carregava no peito parecia brilhar mais intensamente. Dagon tomou-a nas mãos e segurou diante de si. Esforçou-se para caminhar para dentro do círculo de proteção.
– O que está fazendo? – sussurrou Calisto.
– Agora sim, eu vejo.
– O quê?
– A luz! O meu destino... – Sua voz soava trêmula. Seus pés tremiam ao tocar no solo. A cada passo, seu corpo tremia mais e mais. Um de seus pés se destacou da perna e ficou para trás. Dagon seguiu mancando para o altar.
– O que pretende? Se matar? – Exaltou-se Calisto.
– Já estou morto... Eu pretendo... me libertar...
Arrastou-se um pouco mais, seus ossos iam ficando pelo caminho formando uma trilha.
– Ajude-me... Por favor, Calisto, ajude-me a chegar ao altar.
Calisto tomou o restante da ossada de Dagon nos braços e levou-o até o altar. Quando o depositou no lugar sagrado a gema brilhou e se quebrou. Os ossos se partiram e começaram a se decompor até virar pó. Calisto testemunhou a imagem de Dagon se formar a partir da luz que escapava da gema.
Kyle havia acordado com a comoção. Seu coração disparou. Havia algo errado. Aquilo nunca fizera parte de suas visões. Foi assolado pela dúvida. Estariam mesmo no caminho certo?
Calisto encarou a imagem de um homem, não mais de um esqueleto, diante de si.
– Obrigado, meu filho! Você me ajudou! Eu estou livre! Sim! Livre! – sua voz continha júbilo e gratidão.
– Filho? Que papo é esse de filho, Dagon?
– Sim Calisto, nos estivemos juntos na mesma família, por muitas gerações. Você é um Greysnow, assim como eu fui. Agora devo ir para a luz...
A imagem de Dagon se esmaeceu e sumiu.
Calisto ficou olhando para o pó dos ossos incrédulo. Como ele poderia ser um Greysnow? Como poderia ser da mesma família de Maurícius e Serin? Seu pai era o tisamirense Shaik Kain, mas quem era sua mãe? Ele nunca soube. Seria possível que fosse alguém da família de Maurícius?
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