CAPÍTULO 71

Estar de volta ao plano físico, após uma passagem pelo plano netéreo, tinha suas consequências. Calisto ponderava sobre o aprendizado que a experiência havia proporcionado. Teve o vislumbre de uma faceta de seus poderes que até então desconhecia.

Thoudervon havia observado com interesse toda a jornada daquele grupo pela dimensão que lhe era familiar. O ente estava no local para recepcioná-los. Seu manto vermelho cobria os ossos e usava sobre o crânio o elmo cravejado de gemas com os longos chifres subindo pelas laterais. Assim que colocaram os pés na câmara dos portais, Ector e Vekkardi foram capturados por tentáculos escuros controlados pelo morto-vivo que os imobilizou. Ele ainda não sabia ao certo o que faria com a dupla. A câmara era ampla e dotada de quinze portais semelhantes ao que haviam cruzado. Apesar de diferentes, Calisto percebeu semelhanças com os que viram no último andar da torre Vëtmos que visitaram.

– Poderoso Thoudervon – Calisto fez uma reverência.

– Prematuro. Yourdon. – dirigiu-se aos dois mais ignorou Derek e Dagon.

– Mestre – O mago ajoelhou-se – aqui está Lorde Calisto, conforme ordenado.

– Muito bem, jovem, foi um trabalho satisfatório. Tranque estes nas catacumbas. – indicou Ector e Vekkardi – Quanto a você, Calisto, venha comigo, conversaremos.

Dagon sentiu-se estranho. Não sentia o impulso que lhe era natural para servir seu criador, o Príncipe Serin. Estaria agora livre? Sem pensar em receber instruções de Thoudervon, seguiu Yourdon. Indagou a este se nas catacumbas haveria prisioneiros dispensáveis para usar como alimento.

– E por falar em comida – veio Derek – Pode me mostrar onde fica a cozinha, mago?

– Claro, depois que trancafiar estes vamos juntos. Também estou faminto.

Já seguindo caminhos separados, Calisto percebeu que voltava a claudicar no plano físico e disse – Obrigado por ter me socorrido.

– Continua sendo difícil para você se comportar, não é mesmo criança? Sua tendência a fazer jogo duplo poderá bem ser sua ruína.

– Peço desculpas, poderoso Thoudervon. Reconheço que ainda tenho muito que aprender.

– É verdade. Venha. É hora de aprender um pouco sobre a história deste mundo. Sou, talvez, aquele que mais conheça sobre este assunto, pois testemunhei o surgimento das primeiras civilizações.

– Porra... – Calisto deixou escapar chocado pelo que ouvira. Sua mão tremia e ele esboçava uma risadinha excitada.

O rapaz tinha noção que Thoudervon era um ser antigo, mas nunca antes ele revelara algo que explicitasse o quão velho era. – Já exerci papel semelhante a o de deuses, em outros tempos. Foi com pesar que testemunhei a queda das antigas civilizações. É curioso como esta esfera atrai para si demônios como uma lamparina atrai insetos na noite.

Calisto pensou "Ele fala com mais abertura..." e viu oportunidade para externar suas indagações.

– Maurícius e Arávner, seus aliados, cada qual tem suas pretensões. O senhor as compartilha? Por que aliou-se a eles? Minha função será servir de vaso carnal para algum demônio?

– Ah, criança. Tantas perguntas... Façamos o seguinte: se for realmente competente em realizar uma importante tarefa para mim, responderei a tudo que desejar.

Calisto resistiu ao impulso de resmungar. – É claro...

O esqueleto o conduziu pelo labirinto subterrâneo até chegarem à câmara especial, um lugar de aparência antiga, mas que Calisto nunca havia visitado. Esta se tornou iluminada pela simples presença dos dois. Era um grande salão circular e tinha centenas de padrões escritos em baixo relevo no solo. Era como um círculo cortado por uma centena de curvas e retas formando um intrincado mosaico ininteligível para Calisto. Nenhum símbolo parecia familiar. Ele estava curioso – Isto é obra dos antigos Vetmös?

– Não criança, isto é obra minha. Coincidência, ou não, eu já habitava este lugar desde muito antes que seu povo viesse para cá e fundasse o reino de Lacoresh. Infelizmente, minha antiga cidadela foi devastada por uma força que não pude deter.

– Algo mais poderoso que o senhor?

– Não devo ser tomado como referência de extremo poder, Calisto. Meu conhecimento é profundo e vasto, mas ainda assim, não pode tudo.

– Compreendo.

– A história dos humanos é mesmo cheia de lendas. Algumas verdadeiras, outras, pura fantasia. Mas falávamos de criaturas de extremo poder, vou lhe contar sobre o demônio conhecido como Marlituk.

Thoudervon fez um movimento amplo com as mãos e um zumbido soou. Em seguida, linhas luminosas surgiram no grande círculo. Ambas tangenciavam a borda e Calisto viu surgir, em pleno ar, fagulhas de luz que foram se agitando até formar imagens.

As imagens eram vistas do alto, como se vistas pelos olhos de uma ave. Calisto demorou a compreender. Ocorria uma batalha entre exércitos de números que pareciam infinitos. Aos poucos, as imagens foram se ampliando fixando-se numa região mais próxima da batalha. As proporções do confronto faziam as guerras travadas entre Lacoresh e os Bestiais parecer brincadeira de criança. À frente do exército composto por homens deformados havia uma figura colossal. Um bruto de olhos amarelos que faiscavam com ódio. Era mais alto que dez homens e seu corpo era escuro e espinhoso. Centenas de flechas disparadas contra ele eram defletidas por seu couro grosso e umas poucas se cravavam superficialmente. Parecia invencível.

Um oponente surgiu. Um homenzarrão que brandia uma espada enorme abrindo caminho entre os homens comandados pelo demônio. Outros seres que se assemelhavam a humanos, mas que emitiam luzes e faíscas se juntou para combater a criatura. O choque entre estes gerou uma explosão e estilhaços voaram longe. Um fragmento voou contra o portador daquela visão e a imagem se desfez de súbito.

– Quem eram aqueles feiticeiros que enfrentava o demônio?

– Não eram feiticeiros. Mas sim, seres superiores que o povo denominou como deuses.

– E o que aconteceu?

– O demônio foi derrotado e aprisionado.

– Por que não o mataram?

– Teriam feito isso, se fosse possível. Entretanto, Marlituk é um demônio imaterial que se apossa e corrompe outros corpos para manifestar sua vontade. Muitos anos depois deste confronto ele escapou e provocou uma terrível e longa guerra. O desfecho foi uma nova derrota e subsequente aprisionamento. Seu cárcere, desde então, tem sido sob a antiga e gloriosa cidade de Ilm'Taak. Esta e seus habitantes foram devastados pela mesma força que destruiu minha cidadela durante a Guerra Milenar.

– Por que me mostrou isto?

– Pois é importante conhecer seu oponente. Sua tarefa será deter este demônio.

– Eu? Deter aquela coisa?

– Sim. A verdade é que um confronto de forças não é uma boa estratégia contra ele. O que faremos é algo mais sutil. Precisamos ganhar tempo e para isto, usaremos o próprio tempo como arma.

– Podemos convencê-lo a escutar a história de sua vida. O senhor é tão velho que vai levar anos até que ele possa fazer alguma coisa.

– Sua tentativa de fazer humor é lastimável – Thoudervon caminhou sobre o mosaico no chão e acionou o dispositivo novamente. Desta vez, houve um suave tremor e partes do chão se deslocaram. Surgiu uma pequena plataforma da qual o esqueleto retirou um objeto. Um recipiente transparente semelhante a uma garrafa ricamente ornamentada. Em seu interior havia um líquido cremoso que pulsava entre o amarelo e o vermelho.

– O que é isto? – Calisto olhava o líquido com fascinação.

– Este Amalgama contém tempo comprimido.

– Tempo?

– Não espero que compreenda isto. Espero apenas que seja capaz de aplicá-lo seguindo minhas instruções, precisamente.

– Sim, eu o farei.

– Mas advirto, há muito poder nisto e em caso de mau uso pode haver problemas.

– Que tipo de problemas?

– Melhor não saber. Basta saber que se a aplicação não for correta, sua vida e de todos que estiverem próximos poderá chegar ao fim.

– Desculpe-me ser insistente, mas a aliança de que o senhor faz parte não procurou estabelecer aliança com outros demônios para atingir objetivos superiores? Por que não procurar uma aliança com Marlituk?

– Pactos com demônios é negócio de perdedores. Isto é, se for mais fraco que estes, perdas são a única certeza. O fato é que o demônio com quem meus aliados estabeleceram pacto é um antigo rival de Marlituk. Portanto, neste caso, por extensão, Marlituk é inimigo desta aliança.

– O senhor não soa muito fiel a esta aliança.

– Eles precisam mais de mim do que eu deles, no entanto, suas atividades me serão úteis. Digamos que nossas preocupações estejam circulando em torno de esferas distintas.

Calisto ficou em silêncio observando Thoudervon trabalhar e ponderava sobre o que havia visto. Estava consciente do jogo que ele fazia consigo. Usava sua curiosidade para impeli-lo a realizar suas tarefas. Não seria o próprio Thoudervon um tipo de demônio? Ao trabalhar para ele não estaria se condenando a sair sempre perdendo? Como enfrentá-lo se sabia tão pouco a seu respeito?

Apesar de sua criação ter sido junto àquele ser, percebia agora o quanto inumano ele era. O quanto era para ele apenas um instrumento a ser usado em seu elaborado jogo de conquista. No fundo, ainda guardava forte ressentimento pelo assassinato de sua amada, a Rainha Alena. Será que um dia reuniria forças para combater e derrotar Thoudervon?

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