CAPÍTULO 69

Graças ao ambiente singular de Banzanac, Kyle conseguia agora atingir um estágio superior em suas meditações. Estava aprendendo a usar uma capacidade latente que possuía além do simples Kishar físico. Assim como Mishtra, agora podia ver o mundo invisível. Era como se portas estivessem se abrindo em sua mente. Fazia sua meditação matinal na arvorezinha erguida por Wbick na noite em que despertou do longo transe. Era um de seus locais favoritos naquele santuário.

Com os olhos da mente percebeu a presença de Noran. Além de vê-lo, podia também ouvi-lo.

- Estou impressionado com a sua recuperação - disse-lhe o espírito que se recostava na mesma árvore. Kyle podia vê-lo perfeitamente, apesar de sua transparência.

- Acho que devo isto a este lugar.

- Nesta noite, as luas voltarão a se reunir. Irá de encontro ao Oráculo, mais uma vez?

- Sim. Preciso confirmar minhas hipóteses. Acho que estive procurando a resposta para as questões erradas. Eu buscava uma solução completa, perfeita, mas temo que isto fosse um engano.

- O que o fez perceber isto?

- Isso tudo que me ocorreu. Perceber como funciona o ciclo da vida. Que morremos e renascemos sem cessar. Comecei a pensar que não precisamos resolver todos os problemas em uma só vida.

- Entendo. Vejo isto quando olho as coisas do alto. Tudo fica tão pequeno quando mudamos a perspectiva...

- Até mesmo os sacrifícios diminuem se pensarmos assim. Acho que agora estou pronto, até mesmo para sacrifícios, caso seja necessário. O problema de explorar muitos futuros e possibilidades é ficar paralisado, sem definir ações práticas. Agora vejo isto claramente. Meu pensamento está fluindo como nunca antes.

- Kyle, deixar o corpo é um pouco assim, mas agora percebo o quanto podia ter vivido minha vida com maior intensidade. Refletindo, vejo quanto tempo passei em rotinas repetitivas e sem significado. Arrependo-me. Devia ter sido mais ousado. Devia ter deixado Tisamir antes e buscado Giordana. Talvez conseguisse obter seu perdão.

- A vidente?

- Sim, nunca lhe contei, mas ela foi minha esposa. E eu traí sua confiança.

- Entendo... Fico pensando se voltarei a ver Kiorina e se ela me perdoará...

Houve silêncio entre os dois e Kyle indagou - Noran, você consegue viajar até Lacoresh? Conseguiria obter notícias para me contar?

- Tive vontade de fazer isso, mas temia me perder de vocês. Ainda não estou acostumado a esta dimensão. É difícil explicar a interação entre suas múltiplas camadas, mas tenho me mantido por perto através de uma espécie de âncora que estabeleci com você. Conversemos mais em outra ocasião, pois sua companheira chegou.

Kyle abriu os olhos rompendo seu transe. Lila se aproximava com um cesto de frutos frescos.

- Trouxe para você - ela estava sorridente e linda.

Kyle agradeceu e comeu uma das deliciosas peras douradas.

- Nosso encontro foi uma grande benção - Kyle disse - Hoje à noite descobrirei que destino me aguarda. Temo ter que sair de Banzanac para confrontar o mal que cresce fora daqui, mas...

- Sim, compreendo. Não vamos pensar nisto agora. Venha, quero lhe mostrar uma coisa - Lila puxou-o pela mão em direção à vila onde morava Wbick.

- A casa do senhor que faleceu na semana passada ficou vazia. Wbick e os nativos prepararam-na para nos receber. Podemos descansar nela hoje, sem maiores preocupações.

Kyle sorriu.


Depois de passar um dia tranquilo junto a sua amada, Kyle saiu para se preparar para a jornada. Cruzaria a ponte do destino, uma vez mais, para ir até o espaço sem tempo onde o Oráculo lhe proporcionava a exploração de cenários futuros.

Deitou-se na grama nos arredores do vilarejo e ficou a observar a chuva de partículas luminosas que desciam da copa da imensa árvore. Entrou em meditação profunda e flutuou para fora de seu corpo. Noran veio a seu encontro. A energia que emanava das luas deixava toda aquela região do astral mais iluminada. Kyle se sentia mais confiante para empreender a jornada do que das últimas vezes. Assim, foi até a ponte e volitou com determinação para cruzá-la. Noran não podia segui-lo, pois não possuía autorização do Oráculo.

Kyle avançou muitos anos no futuro, para depois do tempo em que estava prevista a vitória dos necromantes. Neste futuro, a Grande Eclosão, evento último planejado pelos necromantes fora bem sucedida. O mundo fora tomado pelo caos. As horadas demoníacas, outrora banidas, dominavam o cenário.

Viu emergir de profundas cavernas o povo exilado. Anões amaldiçoados, albinos e disformes que lutavam contra seu extermínio, enquanto as hordas demoníacas avançavam com voracidade.

Viu heróis desconhecidos que empunhavam três objetos de poder esquecidos desde a Guerra Milenar. Com eles, quebravam as barreiras físicas e penetravam em outras dimensões. Kyle compreendeu que competia àqueles desconhecidos acessar algo que traria paz e equilíbrio de volta ao mundo. Que apenas doravante as coisas iriam melhorar.

Retornou impressionado com o viu. Quis agora ver o que aconteceria se ficasse firme no propósito de permanecer em Banzanac. Viu que ele e Lila teriam filhos, e que Banzanac permaneceria intacta, indetectável aos demônios. Seria um oásis num mundo devastado pelo avanço do demônio Marlituk. Neste futuro, viu as terras de Lacoresh desoladas. A floresta de Shind queimada e estéril. Como legado do povo lacorês, vagavam esqueletos e zumbis. Um futuro em que os necromantes foram derrotados pelas hordas de Marlituk.

Kyle se viu velho, amargurado e impotente. Chorava, pois não conseguia sair de Banzanac, enquanto seus filhos deixavam o santuário, sensíveis às necessidades do mundo, para dar a vida num combate inútil contra o demônio e seus exércitos.

Kyle forçava os limites de sua capacidade e retornou e avançou, dúzias de vezes, indo muito além do que havia experimentado anteriormente. A noite correu e o sol do alvorecer queria surgir. A ponte iria se desfazer. O espírito de Kyle ficaria preso e os laços com seu corpo se romperiam, ou seja, estaria morto.

Noran resolveu agir. Tocou o fio que ligava Kyle a seu corpo e através dele conectou-se à sua mente. Antes de estabelecer comunicação, sua mente foi invadida por dezenas de visões. A mais forte mostrava Kyle acompanhado de Kiorina nas ruas de uma cidade grande, com arquitetura antiga, nunca antes vista por Noran. Estavam envelhecidos e pareciam felizes juntos, rindo enquanto caminhavam.

- Kyle! - Noran emitiu um grito psíquico. - Venha agora! O alvorecer!

Sob o chamado de Noran, Kyle rompeu o impulso de continuar vendo mais e mais futuros.

Acordou tossindo violentamente. A concentração se dissipou e uma forte e aguda dor de cabeça o tomou. Soube que fora salvo pelo amigo espiritual e agradeceu em pensamento "Obrigado, Noran. Obrigado por me salvar!".

Desabafou em voz alta, na esperança de seu ouvido - Esta foi a última vez. Cheguei ao meu limite. A ponte está fechada para sempre.

Kyle esforçou-se para ficar de pé e sentia a cabeça latejar. Cada uma de suas visões, mais de cento e cinquenta vislumbres de futuros, revelou coisas diferentes. Em nenhuma delas havia desfechos perfeitos e já esperava por isso. Compreendeu que seu destino e dos povos do mundo ainda era passar por duras e dolorosas provas. Ao mesmo tempo, pode perceber que quanto maior fosse sua indiferença, maior seria o preço a pagar pessoalmente. Precisava agir e dar o melhor de si. O futuro próximo podia ser previsto com certa precisão, mas com o avanço dos anos, as consequências variavam mais. Entendeu bem as limitações associadas à previsão do futuro.

Foi para a casa de Wbick. Entrou, passando pelos cortinados barulhentos, cheios de miçangas, e foi encontrar-se com o ancião no terceiro cômodo.

- Desculpe-me entrar assim...

- A casa é sua, meu filho. E então? Tomou sua decisão? - O velho estava sentado, com sua expressão plácida parecia já saber a resposta.

- Sim. Eu descobri nas minhas visões que o senhor guarda aqui um antigo portal que pertenceu aos Vetmös.

- Imagino o que mais o Oráculo lhe revelou...

- Muita coisa, na verdade. Preciso ira a Tonuak rapidamente. Poderia operar o portal para facilitar minha jornada?

- Confesso que não gosto nada de utilizar aquela coisa, mas como sei que é por uma boa causa...

- Obrigado, Senhor Wbick! Um dia, gostaria de poder retribuir tudo o que fez por mim e meus amigos.

- Não se preocupe, meu filho, foi um prazer poder servi-los. Quando pretende ir?

- O quanto antes.

- Então vá. Aproveite seu tempo aqui. Vá despedir-se da abençoada Lila. Volte esta noite. Penso que terei tudo preparado até lá.

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