CAPÍTULO 64

Kyle não mudaria de ideia, foi o que Wbick lhes disse. Então, Gorum e Kiorina decidiram seguir para Tonuak e encontrar An Lepard, conforme combinado. Foram necessários cerca de trinta homens para levar a pequena embarcação de uma das vilas de Banzanac até o rio. Há muitos anos os habitantes de Banzanac haviam abandonado o hábito da navegação. Para seguir com o comércio, eram visitados, ocasionalmente, por tonuakianos no pequeno cais, ainda ativo, nas proximidades da grande árvore. Embarcaram no velho barco, três senhores de idade que quando jovens eram navegadores.

- Este barco foi de meu pai - disse o velho Gangi emocionado ao vê-lo novamente flutuando. Ele tinha mais de setenta anos, mas como os demais moradores de Banzanac, possuía uma saúde invejável. O jovem senhor de cabelos brancos e pele morena já havia demonstrado possuir mais fôlego do que Gorum, cerca de vinte anos mais moço.

- Nossa família - Gangi disse a seu neto que iria navegar pela primeira vez - sempre esteve nos rios. Meu tio foi um dos que morreu quando o rio foi tomado pelos invasores. Muitos barcos foram afundados e o Sr. Wbick ordenou que abandonássemos os restavam. Mas agora, quem sabe, nossa família poderá voltar a navegar, como nos velhos tempos.

O rapaz que ainda não tinha vinte anos estava excitado. - Ah, nós vamos sim, vovô! Vai me ensinar tudo o que sabe, não é?

- Sim, mas é claro - disse Gangi deixando lágrimas correrem dos olhos.

Ver aquela cena deixou Kiorina emocionada. Somando-se a isto, mal podia acreditar que estava se separando de Kyle. As memórias do último encontro ainda martelavam em sua cabeça. Aquilo era tão injusto! Tão errado!

Ela havia saído para procurar Kyle naquela noite. O que viu deixou-a perplexa. Ele estava aos beijos com aquela mulher, Lila.

- Entendi tudo! É por causa dela que decidiu ficar, não é mesmo? - Ela precisou se conter para não gritar. - Quem é ela?

Kyle corou e disse - Kiorina, esta é Lila.

Kiorina reparou que uma forte energia mágica emanava dela. Seus olhos brilhavam sutilmente durante a noite.

Lila disse - É uma pena não termos nos conhecido em melhor ocasião. Vou deixá-los, penso que há muito para conversarem.

Kiorina segurou-se para não saltar no pescoço da mulher e esganá-la. Era alta, forte e muito bonita. Até mais bela que Claudine. A ruiva chegou a sentir os dedos rijos com uma magia pronta para ser lançada. Poderia queimá-la em instantes. Ou melhor, queimar os dois. Mas não, essa ideia dispersou-se e, em seguida, conseguiu se conter.

Lila os deixou e Kiorina disse - Kyle, eu acho que ela o enfeitiçou.

- Enfeitiçou coisa nenhuma! Ora Kiorina, não torne as coisas mais difíceis que já estão.

- Quem é ela afinal? Não a vi aqui em Banzanac antes, aliás, ela nem se parece com os locais.

- É uma história complicada e difícil de acreditar. - Kyle balançou a cabeça demonstrando nervosismo - Nem eu mesmo consegui acreditar bem. Ela era uma fada que encontrei em Nish saída de um nexo dimensional.

- Fada saindo de um nexo? Mas que maluquice é essa?

- E isso não é tudo. Eu e ela, já fomos casados numa outra vida, há tempo atrás.

Kiorina corou e sibilou - Outra vida, é? Casados? Humpf!

- Eu disse que é difícil de acreditar, mas acredite, é a verdade.

Lágrimas rolaram nos olhos de Kiorina. - Não acredito que depois de tudo que passamos você esteja abandonando seu reino. Não falo dessa mulher... Você ter sentimentos súbitos por alguém e até acreditar numa fantasia destas, ainda vai... Mas decidir abandonar nossa missão! Como pode abandonar o compromisso que assumiu com Alunil? E nisto que não acredito!

- Vou explicar de novo, mas você não quer entender. O contato que tive com o Oráculo...

Kiorina interrompeu-o gritando - Eu já entendi! - A ruiva procurou se conter e prosseguiu num tom de decepção - Isso destruiu você. Transformou-o numa outra pessoa. Eu nem te conheço mais. Falei com Wbick, hoje à tarde. Ele me disse que você não mudaria de ideia. Mas depois do que vi, entendo melhor. Seja feliz aqui Kyle, você e sua esposa perdida. Eu e Gorum retornaremos a Lacoresh para tentar ajudar. Enquanto isso, divirta-se aqui, seu egoista! - Kiorina voltou a explodir e deu um tapa no rosto de Kyle. Ele apenas aceitou o golpe. - Fique aqui, seu covarde! Eu não quero ver você nunca mais!

Kiorina deu as costas e correu dali em prantos. Lágrimas rolaram no rosto de Kyle e ele chegou a erguer o braço em direção a ela, mas não foi capaz de dizer nenhuma palavra.

Gorum observou as lágrimas de Kiorina, mas não disse nada. Ambos podiam entender o que Gangi dizia por causa do presente recebido de Wbick. Um fruto da árvore no qual foram imbuídos conhecimentos que seriam úteis na jornada deles. Sabiam agora falar a língua de Banzanac, e por extensão, a língua de Tonuak, pois eram semelhantes entre si.

Gorum estava triste e abalado, mas como o de costume, contava piadas à tripulação para afastar sua tristeza. Kiorina já o compreendia neste aspecto. Uma vez, Kyle contou a ela sobre a tragédia no passado de seu tutor. Contou sobre a perda da esposa e da filha e depois sobre a ocasião em que viu-se forçado a tirar a vida de seu próprio irmão, Tarne, o traidor que assassinou o pai de Kyle.

Em seu íntimo, Gorum ainda esperava que Kyle fosse mudar de ideia. Quando o barco se moveu rio abaixo, ainda ficou mirando o horizonte na esperança de ver o rapaz vindo atrás deles correndo, mas isto não ocorreu.

Gorum se recordou do que haviam conversado naquela manhã.

- Então é isso, garoto. Nos despedimos aqui.

Kyle abraçou-o e disse chorando - desculpe Gorum, simplesmente não posso ir. Não posso!

- Tudo bem garoto, acho que suas visões lhe mostraram algo muito assustador. Deve ser um terrível fardo. Converse mais com Wbick. Ele é muito sábio e talvez possa lhe ajudar a compreender o que deve fazer.

- Sim, meu pai, farei isto.

Gorum chorou também, pois Kyle nunca o chamara de pai antes.

- Eu o amo, Kyle. Espero que possa ser feliz aqui.

- Também te amo Gorum! E me faça um favor...

- Sim?

- Cuide de Kiorina. Eu não pude... - soluçou.

- Essa é difícil de engolir, mas você é como um filho para mim. Foi uma coisa terrível o que você fez, penso que poderei perdoá-lo, mas acho que talvez ela nunca te perdoe.

- Eu sei, pai, eu sei.

E abraçados, choraram juntos por um longo tempo. Até que Gorum forçou-se a ir embora. Era a hora da despedida.

***

Kyle estava muito quieto e Lila não conseguia animá-lo.

- Foi um dia difícil para você, meu amor. Vou deixá-lo. Com o tempo se sentirá melhor.

- Sim. - concordou Kyle. - Boa noite!

Lila se retirou e ele ficou pensando em Kiorina e Gorum. Mais que isso, em suas visões. A chuva de partículas luminosas desceu da copa da árvore e Kyle ficou a observá-la. Sua mente foi se limpando e entrou em estado meditativo. Pensar muito não o ajudava em nada. Mergulhou numa meditação profunda o que permitiu que aos poucos pudesse enxergar os contornos luminosos de um homem diante de si. Ele focalizou a visão e o reconheceu.

- Noran? - o cavaleiro balbuciou.

- Olá Kyle, fico contente que possamos nos comunicar, uma vez mais.

- Você esteve por perto? Viu tudo?

- Sim, meu amigo, vi sim.

- Você acha que eu conseguiria viajar mais uma vez? Digo, ir de encontro ao Oráculo? Acredita que conseguirei retornar?

- Sim, é possível. Penso que devido às boas energias de Banzanac você consiga evitar o pior.

- Tive uma visão sobre minha separação. Digo de Kiorina e Gorum. Mas nunca vi nada sobre Lilástrata.

- O que significa que suas visões não são totalmente assertivas, certo?

- Isto foi a única coisa que falhou. Poderia este fato novo mudar as coisas? Digo, em relação às visões prévias. Será que se eu mergulhar novamente haverá uma visão alternativa? Um novo destino?

- Talvez...

- Eu não consigo entender. Se os Deuses possuíam tais capacidades, por que eles permitiram as guerras? Por que estão permitindo o retorno dos demônios? Eu vi três grandes demônios retornando a este mundo. E talvez, não haja como impedir que nenhum deles retorne. Como alguém com tanto poder pode permitir tais atrocidades?

- Veja Kyle, depois que meu espírito se libertou de meu corpo, passei a ver muitas coisas sob nova perspectiva. Acho que pensar nisto desta maneira é um equívoco. Você está tentando fazer a mente de um Deus caber na mente de um homem, mas isto é impossível. Estou certo que na perspectiva deles, tudo isso tem um motivo e que de algum modo, o porvir trará benefícios a todos.

- Não entendo... Porque os deuses não destruíram, ou baniram os demônios de uma vez por todas?

- Pode não ser o objetivo deles. Talvez estejam tentando ensinar algo a eles. Talvez estejam tentando convertê-los para o bem. Se nós homens somos tão teimosos e apegados, o que não dizer dos demônios?

- Pode ser... Talvez eu deva buscar ver algo diferente. Sempre que rastreio os futuros estou à busca de uma solução para destruir o mal. Algo que possa salvar todos meus amigos e povos de boa índole. - Kyle olhou para o alto pensativo e disse - Acho que agora sei o que procurar.

- O que?

- Esta árvore me fez pensar muito. Eu acho que compreendi isto após o encontro com Lila e a separação de Kiorina e Gorum. Eu precisava plantar uma semente. A solução não está comigo, nunca esteve. Está além de mim e de meu tempo. Assim que a semente estiver plantada estarei livre para seguir meu caminho e fazer o melhor por aqueles que precisam de nosso auxílio. O destino já me trouxe até aqui. Sou um instrumento dos Deuses. Vamos ver o que eles tem a me dizer. Preciso saber o que farei. A próxima lua se aproxima. Logo saberei.

- Sim, Kyle, estarei contigo. Vou apoiá-lo no que for necessário.

- Obrigado Noran.

- Conte comigo!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top