CAPÍTULO 62
Weiss claudicava e subia com dificuldade a extensa escadaria que circundava a muralha oval do Forte Nevado, maior construção do complexo de Snowshore. Foi o lar dos Greysnow por algumas gerações até que Maurícius, ao assumir o título de arquiduque, abandonou o sobrenome Greysnow em favor de Kaman, remontando sua linhagem que ascendia até Norvandel Kaman, irmão de Forbald Kaman, fundador de Kamanesh, ambos primos de um antepassado do rei Corélius IV.
O segundo lance de escadas alcançava altura suficiente para dar vista para o mar e dali, o vento marítimo fez o capuz de Weiss soltar-se revelando a face queimada e grotesca, quase inumana. O monge usou a mão para proteger do vento um dos olhos, sem pálpebras. A escadaria sobre andaimes rangia, mas era um atalho conveniente para chegar na área de habitações do forte.
A escada terminava na larga sacada de pedra branca. Ali fora, algumas mesas e cadeiras de metal enferrujadas pela maresia pareciam que iam se desmanchar. O forte estava praticamente abandonado desde que Maurícius se mudou para Lacoresh, mas há alguns meses voltou a ser ocupado por um dos membros da família, a princesa Hana. O conjunto de uma dezena de portas de metal e vidro estavam em melhor estado e haviam sido pintadas recentemente de branco. Weiss encontrou uma das portas abertas e entrou num amplo salão finamente decorado e voltou a cobrir-se com seu capuz. O local estava limpo e na parede o retrato do pai de Maurícius, Arquiduque Greysnow IV ocupava lugar de destaque ao lado de outros retratos de família. O retrato não estava ali anteriormente quando esteve no mesmo salão, anos atrás para um breve encontro com Maurícius. Weiss sabia que Maurícius odiava o pai e este sucumbira vítima de uma estranha doença, há mais de trinta anos. Antes de prosseguir, Weiss olhou com atenção cada um dos antepassados retratados ali. Ao lado do pai de Maurícius estava sua mãe, a princesa Anestra Ildi Lacorirshen Greysnow, filha do Rei Corélius Edwain. Na outra parede pode ver o retrato do Barão Dagon Greysnow que teve o túmulo violado pelo príncipe Serin para trazê-lo do mundo dos mortos.
Próximo deste retrato estava o portal duplo em vidro e metal. Weiss seguiu seu caminho lenta e ruidosamente. O longo e obscurecido corredor que virava à direita o levou à sala de leitura. Havia diversas estantes repletas de livros e pergaminhos, uma escrivaninha e poltronas. Uma criada trabalhava no local e apontou para a sacada. A princesa estava lá fora e trajava um vestido escuro, de corte simples com uma saia rodada na altura dos joelhos que esvoaçava ao sabor do vento mar, assim como seus cabelos longos e negros. Ela virou-se para o velho monge acolhendo-o com um sorriso. Tinha aparência jovial que não combinava com seus quase cinquenta anos de idade. Se aquilo era natural, ou resultado de bruxaria, Weiss não tinha certeza.
Apesar de não integrar o Conselho dos Sete, Hana tinha proximidade suficiente para conhecer alguns de seus membros e seus segredos. – Irmão Weiss, que bom que pode atender ao meu chamado!
Weiss fez a reverência por pura formalidade e disse com sua voz falha e chiada – A mensagem de vossa alteza me deixou intrigado.
A princesa estendeu a mão para que o monge a beijasse. Para fazê-lo, ele teve que revelar as mãos deformadas assim como parte do rosto. Hana não demonstrou nenhuma repulsa.
– O Conselho dos Sete perdeu um de seus membros... – Ela afirmou.
– Uma infelicidade. Entre todos, era aquele com quem eu podia contar para obter apoio.
– O silfo, correto?
Weiss suspirou num longo chiado – Sim, mas não foi para falarmos dele que vim até aqui.
– Não. O caso é que não confio em meu pai, ou em meu irmão e os demais são inacessíveis para mim. Eles consideram o Barão Calisto para a vaga em aberto?
– Não penso que não haverá substituição. O número sete é de fato interessante, mas seis também atenderá perfeitamente.
– Compreendo.
– Conforme sua mensagem, Vossa Alteza convocou-me para discutir visões envolvendo o Barão Calisto – lembrou Weiss.
– Se formos direto ao assunto, não penso que compreenderá o que se passa. Portanto é melhor nos sentarmos. Tenho uma longa história para relatar. – A princesa assentou-se primeiro e chamou a criada – Menina! Traga-nos chá e algumas quitandas.
– Sim, senhora – a criada murmurou e retirou-se.
A respiração ritmada e chiada de Weiss pareceu mais forte depois que se sentou. Ele encarou a princesa enquanto ela parecia reunir forças para contar alguma confidência enterrada.
– Na verdade, tudo isto começou em minha infância. Eu tinha onze anos quando meu avô faleceu. Foi quando as visões começaram. Eu sabia sobre sua morte. Eu vi meses antes. Fiquei assustada e me convenci de que aquilo era apenas um sonho tolo. Cheguei a esquecer, mas tudo voltou quando o fato ocorreu. Sua morte foi uma grande perda para mim. Ele tinha um afeto comigo que nunca tive de meu próprio pai. Tive muita raiva de meu pai naqueles dias, mas não sabia bem por quê. Só muito depois consegui compreender que meu pai havia matado vovô para assumir sua posição. Passei a detestar ainda mais meu pai. As visões iam e vinham, mas aprendi a acreditar no que via.
Não tive dificuldade de descobrir todas as passagens escondidas deste castelo e ter acesso aos laboratórios de magia com suas bibliotecas secretas. Até meus dezoito anos, penso que meu pai ainda estudava apenas magia limpa. Todo o segredo era por causa da antiga lei de segregação. Em seus esconderijos, consegui aprender um pouco de magia por conta própria. Tinha facilidade com feitiços sobre a vontade das pessoas e divinações. Nas feiras em Lacoresh eu escapulia e visitava barracas de divinações. Gostava de testar as capacidades daquelas pessoas. A maior parte simulava, mas encontrei uns poucos com poder genuíno, mas tênue.
Isto mudou quando eu conheci uma jovem que possuía capacidades extraordinárias. Seu nome era Giordana e eu a visitava com frequência. Ela gostava de minhas visitas e do meu dinheiro. Em certa ocasião, me contou sobre sua terra natal, Tisamir, a cidade oculta. Ela abandonou o local devido a uma desilusão amorosa, mas disse que via Tisamir em meu futuro e que algo terrível me aconteceria caso eu para lá fosse.
Algum tempo depois, meu pai e o Duque de Kamanesh me comunicaram a respeito de meu casamento com o filho do Duque, Sir. Clyde Kaman. Seria um casamento adequado para a filha do Arquiduque. Quando o prometido veio até aqui, eu já tinha dezenove anos e ele ainda era um fedelho de quinze. Ficamos noivos e nos casaríamos assim que ele completasse dezoito. A perspectiva de casar-me com alguém que não amava e sair do meu lar me assombrava. Detestava meu pai, mas era muito ligada a meu irmão, Lanark, e minha avó.
Escutando aqui e ali e usando uma magia ou duas, descobri muita coisa sobre as atividades irregulares de meu pai. Vovó também me ajudava muito. Ela foi a primogênita do Rei Corélius Edwain e nunca aceitou que ela própria não pudesse tornar-se rainha. Seu irmão mais novo, Corélius Esselvio foi coroado. Desde que me lembro, ela era obcecada com seu desejo de que meu pai um dia assumisse o trono. Pouco sabem, mas ela é a verdadeira responsável pela extinção da linhagem dos Lacorishen. "Já houve Corélius demais!" sempre escutava isso de vovó.
– Curioso, eu mesmo não sabia disto. – comentou Weiss.
– Mas voltando ao assunto do casamento... Com sua proximidade eu passei a ter crises nervosas. Aproveitei uma viagem de meu pai para Fannel e pedi para acompanhar a comitiva. Em Liont, não tive dificuldades em fugir, pois meus conhecimentos em magia eram desconhecidos para minha família. Tudo que eu representava era a figura de alguém que iria se casar. Percorri toda a fronteira norte de Fannel procurando por pistas ou algum contato que pudesse me levar a Tisamir. Chegar àquele local era minha única esperança de escapar em definitivo daquele casamento. Fosse sorte ou destino, conheci o senhor Kyu em Audilha. Ele estava acompanhado de tisamirenses que vieram até ali buscar estátuas encomendadas a um escultor de renome que lá vivia.
– Sim – interrompeu o monge – Mestre Carulvo.
– Ele mesmo! Não preciso dizer que os tisamirenses eram estranhos, mas o senhor Kyu era o mais estranho de todos. Era muito alto e corpulento, talvez a pessoa mais alta que já tenha visto. Fui a seu encontro e contei-lhe toda a verdade. Disse quem eu era que desejava fugir para Tisamir. Ele disse que poderia me levar até lá, mas que não residia lá. Fazia apenas serviços ocasionais para os tisamirenses. Disse que se eu desejasse morar lá, teria de aprender a purificar minha mente. Falou-me sobre coisas que nunca ouvira falar, os fluxos de Jii. Afirmou poder me ajudar através daquela espécie de magia que eu mal compreendia. Disse que eu teria que confiar nele e abrir minha mente para que ele pudesse purificá-la. Na ocasião, aquilo não fazia muito sentido e eu aceitei. Durante a vigem ele visitou minha mente muitas vezes para trabalhar na purificação.
Quando cheguei em Tisamir, fiquei deslumbrada. Era o lugar mais bonito que já tinha visto. Pedi para ficar e fui aceita. Depois, conheci um homem por quem me apaixonei. Ele sabia que eu era estrangeira, mas nunca lhe contei sobre minha identidade. Tinha medo que ele me rejeitasse caso descobrisse sobre as sombras de meu passado. Nos casamos e fiquei grávida. Foi quando as coisas se complicaram. Passei a ter terríveis visões, mas nada revelava a meu marido. Eu via nosso filho lutando contra o pai e o matando. Nas visões, era um rapaz perverso, mas nunca pude ver seu rosto. Estava muito perturbada e acabei contando sobre as visões nos meados da gravidez. Ele me pressionou a contar mais e eu o fiz. Ficou decepcionado por eu ter mentido e disse que não sabia se conseguiria seguir me amando. Em meu desespero, busquei uma solução fácil. Tentei usar magia para que ele se esquecesse do episódio, mas foi um erro. Ele resistiu e sentiu-se traído.
Procurei pelo senhor Kyu, que estava em Tisamir a negócios. Ele me acolheu. Convenceu-me a ir com ele e ficar em sua casa, fora de Tisamir. Parti da cidade sem ter coragem de confrontar meu marido.
Kyu morava longe, nas proximidades de Xilos, no antigo Condado de MontGrey. A viagem foi tortuosa e passei muito mal. Quando chegamos, faltava pouco tempo para o nascimento. O parto foi horrível e demorado. Ele trouxe uma parteira de Xilos, mas por algum motivo, a criança não nascia. Demorou um dia e meio. No fim, fiquei fraca, a beira da morte. O bebê saiu morto. – Hana contou com lágrimas nos olhos. – O acontecimento terrível previsto por Giordana se concretizou. Chorei por dias depois da perda. Chorei até minhas últimas forças. Achei que nunca mais iria parar até que um monge de sua ordem que visitava o senhor Kyu, veio me consolar. Ele se compadeceu do meu sofrimento e trouxe palavras de esperança. Perguntou sobre a minha família e eu lhe contei quem eu realmente era. Ele foi compreensivo e sugeriu que eu retornasse ao meu lar. Deu me esperanças de que seria acolhida de volta e poderia recomeçar minha vida.
– Que história triste, vossa alteza. Mas fiquei pensando... Qual a relação desta com o motivo de me chamar aqui. Disse que queria falar sobre o Barão Calisto.
– Sim, vamos a isto. Quando conheci Lorde Calisto no banquete em sua homenagem, achei-o atraente e de algum modo, familiar. Minha primeira visão veio ainda naquela mesma noite. Vi que estaríamos destinados a governar lado a lado. Vi que ele ascenderia ao trono após a morte de meu pai. Tão logo vi isto, pensei em seduzi-lo, colocá-lo ao meu lado, controlá-lo. Como minha avó, sou primogênita e herdeira por direito. Eu seria a rainha e ele meu rei. Depois vieram mais visões. Vi não apenas o reino de Lacoreh, mas um império. Outros povos se submeteriam a Lacoresh. Estávamos entre os Silfos do Mar em uma enorme cidade. Ele todos se curvavam diante de nós.
– Certo, mas por que me chamou afinal?
– Porque ele foi seu aluno. Sei que o conhece bem. Chamei-o para partilhar essa visão, para que meu auxilie a me aproximar dele. Se formos bem-sucedidos, haverá uma grande recompensa para você. Qualquer coisa que desejar neste novo império que está para surgir.
– Compreendo. – veio o chiado suave. – Posso ter a solução para o problema proposto, mas talvez, não esteja preparada para ela.
– Como assim?
– Há mais em sua história do que você me revelou...
– Como assim, há mais? Certamente resumi os fatos, mas não omiti nada relevante.
– Está certa de que deseja saber?
– Ora, mas sim! Agora mais que nunca!
– Muito bem, mas não me diga que não a preveni. Seu marido em Tisamir se chamava Shaik Kain, não é mesmo?
– Como sabe disto? Lê mentes?
Weiss tirou um amuleto de seu hábito. Hana se arrepiou ao ver o objeto.
– Mas como? – Dei isto para o irmão DeReifos... – Você o conhece?
– Sim, mas não como Vossa Alteza imagina. Fui eu quem esteve na casa de Kyu dezessete anos atrás.
Hana levantou-se e chorando tomou a mão de Weiss – Era o senhor? Irmão DeReifos?
– Sim, este era o nome que usava naquela época. Mas isto não é tudo. A pessoa que você conheceu, na verdade, é um dos outros membros do Conselho dos Sete, ou Seis. Naqueles dias, já planejavam a conquista de Lacoresh, e muito mais.
– Estou confusa. O que pretende me dizer?
– Sente-se, por favor, Alteza.
Ela obedeceu enxugando as lágrimas, mas respirando curto. A ansiedade tomava conta de si.
– O que tenho a dizer é sobre seu bebê. Ele não nasceu morto. Em verdade, ele ainda vive.
– Mas eu o vi! Eu o vi!
– Quem viu foi outro bebê morto.
– Para Kyu, ou melhor, Arávner, foi fácil manipular suas percepções, afinal, você lhe concedeu livre acesso à sua mente para purificá-la. Ele planejou tudo. O encontro de vocês, em Audilha, não foi obra do acaso. Nem sua viagem até Liont. Ele circulava nos bastidores. O Conselho dos Sete já vinha se estabelecendo. Seu pai, Arávner e Thoudervon já trabalhavam juntos. A primeira guerra contra os Bestiais foi obra deles. Assim como a vinda do prematuro. Este precisava ser especial, ter acesso aos Fluxos do Jii. Ele precisava ser filho de um tisamirense.
– Não! Não pode ser! – Hana deu um grito agudo e desesperou-se.
– Sim Alteza, Calisto é seu filho.
A princesa chorou amargurada. Seu rosto se contorceu. Estava atordoada.
Weiss tomou sua mão e disse – Escute Alteza, sei que é terrível saber disto. Mas pense. Agora sua visão faz sentido pleno. Vocês juntos, não como marido e mulher, mas como mãe e filho.
Hana engoliu o choro e olhou-o com desconfiança.
– E quanto a você, DeReifos? O que fazia lá? Por que veio me consolar? O que você tinha a lucrar com isto?
– A consolei por que me compadeci de seu sofrimento. Fiz isso sem o consentimento de Arávner. Mas estava lá, justamente para transportar o bebê para seu futuro tutor, Thoudervon.
– Kyu, digo, Arávner, ainda mora no mesmo local? – ela indagou com fúria nos olhos.
– Vamos, não pensemos em vingança, ao menos não tão cedo.
– Não me diga em que devo ou não pensar! – explodiu Hana.
– Digo apenas para não ir confrontá-lo. Seria inútil. Devemos sim, pensar melhor no assunto, pois tenho certeza de que não está nos planos do conselho ter Calisto como regente de Lacoresh, ou de qualquer império. Muito pelo contrário.
– O que vai fazer? Denunciar-me a meu pai? A Arávner?
– Apesar de ser membro do conselho, sei que Arávner, Thoudervon e seu pai têm por mim pouquíssima consideração. Conquistei a cadeira quando trouxe para o grupo o Silfo Rodevarsh e por que para eles seria útil ter alguém infiltrado na ordem dos Naomir e na Real Santa Igreja. Enfim, o que quero dizer é que pessoalmente tenho minhas dúvidas sobre os rumos que os planos do conselho estão tomando. Sinto que este possa estar próximo de seu fim. Alexanus e seu pai, já estão com suas próprias conspirações, Arávner e Thoudervon parecem possuir planos ocultos e seu irmão, está tramando contra seu pai para tomar-lhe o trono. E quanto a mim? Por hora eu tenho condições de substituir o papel de Rodevarsh junto aos Silfos do Mar. Mas isto é apenas o que eu lhes disse.
– Estaria disposto a me apoiar e meu fi... Calisto?
– Gosto de Calisto. O rapaz tem muito potencial. Resta saber se reunirá poder suficiente para confrontar Arávner e Thoudervon.
– O que tem em mente?
– Há muitas opções em termos de inimigos que poderiam ser nossos aliados. A rebelião, alguns renegados de Tisamir, os Silfos do Mar, dacsiniamos e talvez meu sobrinho, Archibald DeReifos, um monge renegado muito poderoso que está na cidade bárbara de Tchilla.
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