CAPÍTULO 60

Alguns dias se passaram e o entroncamento em que Kiorina e Gorum se hospedavam tornou-se bastante movimentado. Moradores de outros vilarejos vinham para ver o misterioso e belo casulo. Coincidência, ou não, na mesma noite em que Kyle despertou de seu longo sono, o casulo se rompeu, sem ninguém por perto para ver o que saiu.

O rapaz abriu os olhos, mas não era capaz de mover o corpo. Estava escuro e a única sensação que tinha era de estar deitado numa cama confortável. A memória do confronto na fortaleza da torre negra ainda persistia, causando confusão. Outros pensamentos e memórias galopavam pela mente de Kyle causando-lhe aflição. Sua respiração ficou acelerada e seu corpo transpirava. Em seguida, começaram as convulsões, e com o barulho, Wbick veio até o local. O ancião tocou Kyle e disse.

– Pode me escutar, rapaz?

Quando não houve resposta, Wbick saiu apressado para retornar logo em seguida. Kyle se contorcia e dizia coisas sem sentido. O velho forçou-o a tomar uma bebida amarga feita da seiva da grande árvore. Tratava-se de um forte calmamente que logo dissipou as convulsões. Wbick tentou comunicar-se mais uma vez e obteve a resposta em sílfico – Meu nome é Örion, onde estão Rilks e Con? Por que Keledrel nos traiu?

– Vamos, Kyle de Lacoresh, volte a si! Sua mente está confusa.

O que Kyle fez em seguida deixou Wbick ainda mais surpreso. Sentou-se encarou-o nos olhos e falou na língua morta do povo de Wbick, já extinto – Weinerbik Pristimos? A Cidade Branca sucumbiu! Nosso rei foi capturado. Eu não pude protegê-lo! O que será de nosso povo?

O ancião se arrepiou todo e tossiu. Concentrou-se e disse – Nosso povo encontrou o fim de um ciclo, assim como todas as coisas da criação.

Apenas por poucos momentos, outras mentes contidas no profundo inconsciente de Kyle vieram à tona, cada qual, falando sua língua peculiar. Ele voltou a falar lacorês – Archibald, meu amigo, eu vi o futuro. Você estava certo. Não podemos lutar contra o destino.

Kyle virou-se bruscamente e disse – Noran, é você?

Olhou para um ponto vazio e Wbick acompanhou o olhar, pois sentia vindo dali uma forte presença. Kyle voltou-se para o velho sentado ao seu lado.

– Quem é o senhor? Onde estou?

– Sou Wbick e está em minha casa. Consegue se levantar?

Kyle se esforçou. Sentia as pernas fracas, mas conseguiu ficar sentado e levou as mão à testa.

– Ai, que dor de cabeça.

Wbick ajudou-o a ficar de pé.

– Vamos dar uma volta. Caminhar vai lhe fazer bem.

Kyle foi conduzido pelo ancião para fora da casa. A cabeça doía e as ideias se embaralhavam. Reconheceu aquele ambiente, mesmo sendo noite. As partículas translúcidas caíam do alto. Aquilo ativou sua memória.

– Eu estava com a pequenina... E apaguei. Para onde ela foi? Onde estão Kiorina e Gorum?

– Seus amigos estão bem, mas não sei desta pequenina...

– É uma fada.

– Fada? Ora, mas que curioso. Não vejo uma há séculos.

Kyle franziu o cenho e concluiu que o velho falava em sentido figurado. Caminharam em silêncio aproveitando os ares noturnos. O efeito visual do chuvisco luminoso que emanava as folhas da árvore relaxavam o rapaz. Wbick o conduzia para o local onde estavam hospedados os demais. Aos poucos, a dor de cabeça se dissipou e a confusão mental recuou dando lugar a uma forte angústia. Isto, comparado ao estado mental anterior, era um alívio. Viram, ao longe, as luzes da vila em que estavam Kiorina e Gorum. Imagens e experiências vividas pelo rapaz foram aos poucos se ajustando em sua mente.

– Senhor Wbick?

– Sim, meu jovem, pode me chamar apenas de Wbick.

– A morte não é o fim, não é mesmo? Aprendi isto já na minha formação quando frequentava a igreja de minha terra natal.

– Sim, é nisto que muitos acreditam. Embora não haja consenso quanto ao que acontece depois.

– Verdade. Em Lacoresh, as pessoas acreditavam que depois da morte seguimos por dois possíveis caminhos: ir para a Morada dos Deuses, ou cair no Abismo dos Tormentos. Depois, aprendi sobre a crença dos tisamirenses. Eles acreditam no Ciclo do Eterno Retorno. Que morremos e depois renascemos, nos esquecendo das vidas anteriores. O que vivi recentemente me faz crer nisto, cada vez mais. Aqui vocês possuem crença semelhante?

– Sim. São as Jornadas dos Múltiplo Sonhos. Oportunamente, poderei instruí-lo a este respeito. Mas antes, poderia me falar sobre as experiências que vivenciou? Pelo que notei, você acabou de retornar de uma viagem onírica.

Kyle parou procurando organizar os pensamentos, mas não conseguiu dizer nada por um longo tempo. Wbick ficou de cócoras e furou o solo com os dedos. Uma planta brotou e cresceu velozmente. O galho converteu-se num tronco grosso em poucos minutos moldado pelo toque do ancião. Cresceu na diagonal com galhos e mais galhos surgindo até formar uma árvore de pequeno porte, mas com um grosso tronco rasteiro. O velho subiu e recostou-se no tronco, como se fosse um assento. 

– Sente-se ali – indicou uma posição para Kyle. – Coma um fruto e conversemos com calma.

Ele ficou impressionado com aquilo. Subiu e encontrou um local confortável para assentar-se.  Veio mais um longo silêncio até que Kyle encontrou as palavras e fez um longo relato de suas experiências como Örion. Falou sobre as visões de futuros que o Oráculo lhe revelou e até mesmo um pouco sobre as memórias que emergiram sobre a cidade branca e da terrível invasão que sofreu por hordas demoníacas. A conversa seguiu por muitas horas, madrugada adentro. Aos poucos, a mente de Kyle absorveu boas energias daquele santuário dissipando a confusão. Ele pode compreender melhor as visões e experiências extra-sensoriais que vivenciou.

Não fosse pela interrupção, a conversa poderia ter se estendido até o raiar do dia. Kyle percebeu que alguém se aproximava. Só puderam ver que era uma mulher quando estava bem perto. Wbick convocou uma luz branda que emanou das folhas da pequena árvore onde estavam sentados. Revelou-se uma mulher jovem, belíssima e completamente nua. Tinha a pele muito clara, longos cabelos negros que desciam encobrindo os seios e alcançando a altura da cintura. O coração de Kyle disparou quando pode reconhecer suas feições. Era quase idêntica à imagem de sua esposa em uma vida passada. Recordou-se de seu nome: Lilástrata. Porém, possuía linhas delicadas ao redor dos olhos por onde corria tênue luz de multicores e orelhas ligeiramente pontudas, com as de um silfo, diferenciando-a da Lilástrata original. Ela sorriu inclinando a face revelando uma expressão idêntica. As grossas sobrancelhas se arquearam do mesmo modo.

– Lilástrata? É você? Estou sonhando, ou tendo uma visão?

– Sim, sou eu quem um dia foi Lilástrata, sua esposa, mas que, assim como você, mudou tanto ao viver outras vidas.

Kyle sentiu uma forte emoção, pois era um reencontro que ocorria pela primeira vez em milhares de anos. O laço entre os dois fora tão forte que nunca se rompeu. E talvez, por isso, estivessem ali, reunidos, uma vez mais. Ele saltou da árvore e envolveu-a num longo e apertado abraço. Ambos estavam chorando. As feições de Kyle não eram as mesmas de outrora, mas algo ainda estava presente em seu olhar.

Wbick desceu da árvore e ofereceu à moça o manto que vestia por sobre calças e camisa simples. – Vista isto para aquecê-la.

Lila aceitou e franziu o cenho procurando reconhecer aquele rosto que lhe parecia familiar.

– Já é tarde e vou me recolher – disse o ancião – vocês dois terão muito sobre o que conversar.

Depois que ele se foi, recaiu sobre o casal uma sensação de estranhamento, pois possuíam apenas memórias rudimentares daquela outra existência, fortes sentimentos, mas talvez, pouco assunto para conversar.

Kyle disse – Quando o ataque veio sobre a cidade, lutei, mas acho que acabei morrendo. E você? Lembra-se do que aconteceu?

– Não muito. Não tinha memórias de nada disto até despertar aqui. Sabia apenas de minha existência em meu lar, um lugar bonito e cheio de paz, do qual já havia lhe falado quando navegávamos. Quando despertei do longo sono, energias me invadiram e com estas, visões. Eu fiquei confusa e quando me dei por conta do que me acontecia, estava mudando. Como é natural para as criaturas de minha raça, teci um casulo para mudar de corpo, e despertei neste. Depois, minhas ideias começaram a se acomodar. Entendi que tive outras vidas antes desta e que em uma delas, fui sua esposa. Nossa terra era bonita e pacífica, mas não existe mais. Lembro de viajar com muitos refugiados de nossa cidade até chegarmos numa cidadela, ou templo, em terras geladas ao sul. Havia proteção entre as torres de cristal e depois... Ah sim! A luz misericordiosa nos acolheu. Nos perdoou. Nos deu uma nova chance longe desta terra, longe destas belas luas. Eu poderia ter ficado, mas a luz... Era tão calorosa, tão pacífica. Me desculpe, estou falando e falando, mas vejo que nada disso faz muito sentido.

– Sim, as coisas mudaram. Os deuses nos deram uma nova chance.

– Sinto-me tão confusa! Não sei o que pensar. Não sei como agir.

Kyle tomou-a pelos braços e trouxe-a para perto de si.

– Não se preocupe. Nos encontramos num santuário... Haverá tempo...

Uma forte atração recaiu sobre o casal que se beijou. Estavam juntos, mais uma vez, e por hora, era tudo o que importava.

Ficaram juntos até o alvorecer. Nesta hora, Lila ficou eufórica. Escalou o tronco nodoso da grande árvore. Seu corpo era mais leve e ágil que de um humano. Já não podia voar como em sua forma de fada, mas escalava com facilidade e rapidez. Tinha o desejo intenso de ver o sol nascer do topo da árvore. Kyle achou a ideia absurda e riu. Em resposta, ela subiu com determinação.

Kyle lembrou-se de Gorum e Kiorina e decidiu ir procurá-los. Voltaria a ver Lila, mais tarde. Seguiu para o vilarejo indicado por Wbick. Olhava para trás, de vez em quando, para ver Lila como um pequeno ponto, subindo mais e mais no imenso tronco.

A sensação fabulosa que sentiu naquela madrugada dava lugar a um peso nos ombros na medida em que se aproximava da vila. Havia um aperto na garganta. Incerteza. Vontade de sumir.

Procurou informações com os locais e rapidamente foi direcionado para a casa da senhora Phyllis, onde encontrou Kiorina e Gorum sentados ao redor de uma farta mesa de café da manhã.

Kiorina saltou e quando ele se deu conta já estava pendurada em seu pescoço. 

– Kyle! Você acordou!

O rapaz recebeu-a com certa rigidez e Gorum pode ler por sua expressão corporal que algo estava errado. O gigante se aproximou e deu um tapinha no ombro.

– E então, garoto? Você está bem?

Kyle sentou-se e ficou calado. O silêncio durou.

– Vamos Kyle, diga algo! Estou ficando preocupada!

– Não se preocupe. Eu apenas não sei por onde começar... O que aconteceu comigo... Ainda é demais para minha cabeça...

Os dois ficaram sérios ao perceber sua postura tensa e modo de falar lacônico.

– Sei que poderão considerar isto desonroso, mas desisti.

– Desistiu? De que? – quis saber Kiorina.

– Não quero voltar a Lacoresh. Nem mesmo ira de encontro ao monstro que mencionei. Não quero mais lutar contra o mal. Vou ficar aqui em Banzanac pelo resto de meus dias.

Aquilo foi um golpe duro em Kiorina. De algum modo, tudo que havia suportado se baseava na ideia de que aquela jornada tinha algum significado. Que conseguiriam salvar Lacoresh, derrotar os necromantes, fazer justiça.

– É brincadeira, né Kyle? – ela retrucou sem acreditar no que ele havia afirmado.

– Não, Kiorina. Simplesmente descobri que não vale o sacrifício. Retornar a Lacoresh seria suicídio. Confrontar aquele demônio no Vale Verde, algo pior que isto! Simplesmente não temos forças nem recursos para contrapor o mal que recaiu sobre nosso mundo. É como querer ir até a praia e construir uma barreira de areia para impedir que a maré se eleve. Eu vi o futuro, ou melhor, muitos futuros, e em todos eles, nos vi sofrer e sucumbir ao tentar fazer alguma coisa.

Kiorina e Gorum ficaram mudos. O silêncio perdurou até que ela voltou a falar.

– Suicídio? Mas por que o silfo Modevarsh nos enviou para encontrar o oráculo? Ele era muito sábio! Talvez... – foi abruptamente interrompida.

– Ele não viu o que eu vi! – exasperou-se Kyle.

– Garoto – disse Gorum – eu confesso que toda essa conversa de visões me deixa confuso. Mas você mesmo já disse que viu futuros diferentes. Se um é diferente do outro, quer dizer que para um estar certo, outros tem que estar errados. Como sabe então que esses futuros ruins, não estão todos errados?

– Vocês não entendem! Este é o único lugar em que temos uma chance de sobreviver.

– Mas quando você falou de sacrifício... Será que há chances de que possamos reverter o mal, mesmo que para tal, precisemos nos sacrificar?

– Não vi nenhum final feliz! No máximo, poderíamos minimizar tragédias. É como se houvessem centenas de criancinhas prontas a serem atiradas, cada qual numa fornalha. Se todos eles fossem seus filhos e pudessem escolher salvar apenas um deles, qual escolheriam? Eu vi demais. Não posso suportar tal escolha!

– Então é isso? Vamos deixar todas morrerem. Prefere ficar aqui e omitir-se. É isso?

Kyle pegou um pão, levantou-se e disse secamente – Vocês não entendem... – e saiu.

Kiorina levantou-se para segui-lo, mas Gorum segurou-a pelo braço. – Dê um tempo para ele. Pouco sabemos sobre o que aconteceu nestes dias em que esteve desacordado.

– Até parece que você não conhece o Kyle, né Gorum? Quando ele coloca uma coisa na cabeça... E se ele desistir mesmo? – Os olhos dela ficaram marejados – Significa que a esperança acabou, que não voltaremos mais ao nosso lar?

Gorum abraçou a ruivinha – Vamos, minha garota, uma coisa de cada vez. Não adianta ficar pensando nessas coisas por agora. Vamos terminar o desjejum e depois falamos com ele, ou melhor, talvez o Sr. Wbick possa conversar com Kyle.

– Tem razão, Gorum, obrigado. 

Ela foi  se acalmando, mas a ansiedade permanecia. Enquanto isso, comia mais e mais daquelas guloseimas.

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