CAPÍTULO 54
Podia não parecer, mas o velho e frágil Rei Maurícius, tão torto, cheio de rugas e que sentia peso da velhice, já fora outrora um rapaz jovem e vigoroso. A ambição e persistência sempre foram características marcantes no monarca. Sua ambição atual era estender sua vida por mais alguns anos até que pudesse realizar um ritual, durante a Grande Eclosão, que lhe traria a vida eterna.
Seus dois filhos problemáticos, Serin e Hana, ocupavam suas preocupações. Ambos teriam importantes papéis a cumprir no avanço do estratagema de Lacoresh para ampliar seu poderio. Viajariam para o Reino de Homenase para oficializar a anexação deste a Lacoresh. O regente, Alneir, irmão do deposto Lorde Nasbit, logo mais prestaria juramento de lealdade e submissão frente a sua corte.
O breve conflito serviu para mostrar que Lacoresh tinha superioridade militar. Foi previsto um desfile das tropas de Lacoresh, guiado pelo primeiro cavaleiro, Julius Fortrail, pelas ruas da capital de Homenase. Lacoresh então, prestará auxílio militar para combater uma horda de bestiais que invadiu Trelis, um pequeno reino aliado localizado ao norte de Homenase. Com a iminência de invasão de Homenase pelos bestiais, e possível destruição do reino, mesmo aqueles que não nutriam simpatia por Lacoresh, seriam obrigados a aceitar a aliança. Isto tudo, é claro, arranjado pelos Lacoreses para anexar o reino vizinho e preparar-se para as guerras vindouras.
O velho rei aguardava, com impaciência, por seu único amigo, Alexanus. Eles ajudaram-se mutuamente durante toda a vida. Memórias voaram longe eclipsando as preocupações com os filhos e a preparação do exército. Lembrou-se do período final do reinado de seu tio-avô, Corélius II. Maurícius era o jovem primogênito e herdeiro do primo do rei, Arquiduque Aídus Kaman Greysnow. Seguindo as tradições do reino, apesar do alto título, os arquiduques de Lacoresh não possuíam grandes terras. Viviam nas proximidades da capital, no castelo de Snowshore, no alto de uma falésia rochosa à beira-mar. Os arquiduques sempre foram designados pelos reis para cuidar dos assuntos de estado, administrando o tesouro e as forças militares do rei. Maurícius tinha uma difícil relação com o pai e após sua morte, abandonou o sobrenome Greysnow de que seu pai tanto se orgulhava e passou a ser chamado de Arquiduque Maurícius.
Quando criança, Maurícius visitou a Alta Escola de Magia e ficou deslumbrado. Anos depois, comunicou ao pai que desistiria de seu título de nobreza para tornar-se um feiticeiro. O pai abominou esta ideia e o proibiu de se envolver com qualquer coisa relacionada à magia. A antiga lei, que era seguida em Lacoresh e outros reinos, proibia que lordes, ou governantes fossem feiticeiros.
Maurícius não desistiu de seu intuito e subornando as pessoas certas, conseguiu ingressar na escola em Lacoresh com uma identidade falsa. Durante dois anos, o plano funcionou, sendo um tempo de felicidades no qual fez amigos e aprendeu magia com avidez. Seu melhor amigo era o colega de classe, Alexanus. Estavam sempre juntos e foi o único para quem o rapaz havia confiado seu segredo. Quando o pai descobriu e denunciou o esquema, Maurícius foi expulso e o conhecimento adquirido foi selado por um feitiço por um dos mestres da escola.
Mesmo depois disso, encontrava-se com Alexanus que passou a instruí-lo secretamente nos caminhos da magia. Entretanto, despistar o pai ficava cada vez mais difícil. Maurícius resolveu a situação, eliminando o pai e tornando-se Arquiduque mais cedo, aos vinte e dois anos. A partir daí, instalou seus laboratórios no Castelo Snowshore e iniciou sua pesquisa das perdidas e proibidas artes necromânticas. Maurícius sempre tinha sonhos que o impeliam a pesquisar mais fundo e aprender os antigos segredos. Patrocinou expedições para encontrar antigas ruínas dos Vetmös e conseguiu recuperar livros e artefatos.
Maurícius tirou licença de seus deveres junto ao reino para explorar uma cidadela dos Vetmös muitos anos depois da morte do pai. Lá encontrou Arávner e seu servo Kurzeki. Arávner passou a colaborar o Arquiduque e o treinou ainda mais nas antigas artes necromânticas do antigo império dos Vetmös. Uma nova sociedade secreta se formou em Lacoresh e seus experimentos, eventualmente, chamaram a atenção de outros, como o Silfo Rodevarsh e o misterioso Thoudervon.
Agora em seu novo palácio, nas proximidades de Lacoresh, Maurícius tinha duas alas subterrâneas dedicadas a seus laboratórios.
Alexanus chegou ao grande salão demonstrando certa fadiga.
- Arf - resmungou o Rei - Mas já não era hora!
- Desculpe-me pela demora majestade, houve um pequeno contratempo.
Maurícius tirou força de um dos anéis simplesmente para por-se de pé e o fez com uma espécie de leveza sobrenatural.
Alexanus lançou um olhar de reprovação e a isto o Rei respondeu - Bah! Não me venha com seus sermões, velho amigo. De que adianta ter conquistado tanto poder, se não para utilizá-lo?
- Mas seu corpo poderá resistir?
- Irá resistir o suficiente, garanto-lhe. Mas deixemos essa conversa de lado, exceto se tiver obtido algum progresso com o ritual de troca de corpos.
- É ainda um dos segredos perdidos das antigas artes. Ainda estou convencido que Arávner possa estar guardando este segredo para si.
- Será mesmo? Ele já teria arranjado um corpo melhor, penso eu.
- E quem disse que aquele corpo é ruim? Até onde sei, é melhor que os nossos.
- Frígido, insensível, semimorto e desproporcional. Penso que a vida sem poder desfrutar os prazeres do corpo tornaria a existência algo um tanto quanto apática...
Os dois passaram para a antecâmara atrás do salão do trono e Maurícius acionou outro anel fazendo surgir uma porta antes invisível. Tomaram a passagem secreta que levava às catacumbas. O caminho era longo, escuro e sinuoso. O único ruído que se ouvia ali embaixo eram os passos arrastados do rei. Depois de um tempo, Alexanus tomou coragem para falar.
- Estou apreensivo quanto ao que irá ocorrer doravante. Lacoresh é nosso, mas agora, essa campanha contra os Silfos do Mar, Dacs, Tchilla e sabe quem mais? Não há garantias...
- E você acha que eu, como rei deveria mudar estes rumos?
- Poderia, penso que poderia.
- Assumimos um compromisso com os demais, ou melhor, uma dívida. Não podemos mudar mais isto.
- O próxima reunião do conselho se aproxima, poderíamos argumentar...
- Contra Arávner e Thoudervon?
- Ou então explorar as diferenças entre eles.
- E colocar nossa aliança em risco?
- Aliança? Não vejo assim. Fico surpreso de ter durado tanto tempo sem sermos traídos de algum modo. Quanto tempo ainda temos?
- Espero que o suficiente. Lembre-se, estamos juntos nisto.
- Sua majestade chega a ser gozado às vezes com tais observações. Como se não fossemos amigos...
- Perdoe-me Alex, é a força do hábito. Enfim, aqui estamos.
Havia uma câmara grande, sem qualquer iluminação. Alexanus girou o dedo mínimo e luzes mágicas amareladas surgiram onde havia meia dúzia de archotes para fogo. Ali havia nove mesas feitas para acomodar corpos, mas apenas três estavam em uso. Dois destes corpos estavam inchados e em estado de putrefação inicial. O rei os ignorou chegando até o terceiro.
- Este está fresco - disse colocando as mãos sobre a cabeça do defunto sentindo-o frio ao toque, mas não gelado - chegou esta madrugada.
Alexanus operava outro feitiço provocando a movimentação do ar e eliminação de odores. O velho mago resmungou com expressão de asco - Nunca vou me habituar a certos aspectos desta atividade.
- Isto já não me incomoda tanto, mas agradeço pela renovação de ares - retrucou o Rei examinando partes do corpo com as pontas dos dedos.
- Bastante jovem - comentou Alexanus.
- E linguarudo também. Blasfemava contra a Real Santa Igreja e a Família Real.
Alexanus trouxe uma série de apetrechos para junto da mesa. Retirou um longo cristal fixado num bastão metálico que tinha na outra extremidade um hexágono com um vidro escuro encaixado. Fechou um dos olhos e com o outro passou a inspecionar o cadáver através da entranha lente.
- Sim, o espírito não se desprendeu. Esta gritando e agonizando sem compreender o que se passa.
- Ótimo, ainda está seguro aqui conosco. O isolamento da câmara tem funcionado bem, não é mesmo?
Alexanus olhou para a porta e a lente revelou uma turba de espíritos escuros se batendo contra a barreira invisível. As energias liberadas por uma alma se desprendendo eram como um banquete para estes.
Enquanto isto, Maurícius usava tinta para escrever sobre a pele do rapaz ainda preso entre a vida e a morte. Não faz muito tempo que haviam desenvolvido a técnica para provocar a morte de uma pessoa sem danificar o corpo deixando-a num estado de semimorte, por algumas horas. O coração ainda pulsava lentamente, uma ou duas vezes por minuto, e a temperatura do corpo era mais baixa, mas não igual à do ambiente.
Alexanus aproximou-se e iniciaram o demorado ritual. O rei então despiu-se de seu manto real e depois da túnica, ficando apenas com as roupas de baixo. Revelou-se um corpo magro e curvado. A corcunda parecia mais pronunciada sem a cobertura do traje. Com alguma dificuldade subiu na mesa ao lado sentindo a pedra gelada morder sua pele. Deixou-se e fechou os olhos. Alexanus pintou símbolos no peito muxibento do monarca e afastou-se. Ficou observando a nova tentativa de Maurícius através de sua lente encantada.
O espírito de Maurícius ergueu-se de seu corpo. Não tinha a mesma forma. Era escuro e tinha dedos longos e finos como facas. Estes brilhavam com fios de luz ligando-se aos anéis que o rei usava em ambas as mãos.
Maurícius volitou até o corpo do rapaz, sobre o qual seu espírito se debatia agonizante.
- Isto é um pesadelo! Ó grande mãe! Salve-me piedosa Ecta. - gritava o rapaz - Ai! Quem é você? O que quer de mim? - Disse ao encarar a figura sombria e de olhar perverso que se aproximava. Os olhos do rei brilhavam numa tonalidade verde fantasmagórica.
- Sou seu rei - retrucou o espectro.
De algum modo o rapaz o reconheceu. Ele era um jovem escudeiro que havia perdido o pai durante a "Noite dos Mortos", ocasião na qual a capital foi invadida por uma horda de zumbis e o Rei Corélius e outros tantos foram mortos.
- Me ajude alteza! Eu ouvi histórias... Acreditei nelas... Mas eu juro, eu, eu posso ser um súdito leal!
- Súditos leais não maldizem a realeza e tão pouco a Santa Igreja que a sustenta e legitima.
- Peço perdão, alteza! Foi um momento de fraqueza. Posso servi-lo bem, apenas me liberte deste pesadelo!
- Não é um pesadelo. Você não está dormindo rapaz. Olhe para lá - Maurícius tomou a cabeça do rapaz e virou-a para a porta onde uma dúzia de espíritos famintos se debatiam.
- Aquilo é o que está lhe aguardando - informou.
- Oh, não, por favor! Faço qualquer coisa! Afaste-os de mim. - O rapaz se recordou daquelas criaturas que o assediavam, seguravam-no e mordiam-no enquanto era trazido para ali.
- Vou lhe dizer o que fazer e prometo que não será entregue a eles.
- Sim, meu rei, qualquer coisa!
- Ótimo! Agora segure em minhas mãos. - O rei puxou-o com vigor, mas este não se afastou muito do corpo.
- Sinto dor! - ele reclamou.
Com os dedos afiados e que funcionavam como tesouras, Maurícius começou a cortar, um a um, os fios tênues que prendiam o espírito do rapaz ao corpo. Isto provocou choque nele levando-o a manifestar espasmos.
Alexanus observava e sentou-se de pernas cruzadas colocando-se em meditação. Convocou um feitiço que fez surgir em torno de si uma gosma semitransparente que começou a tomar forma. Demorou, mas uma espécie de vespa com o tamanho de um gato surgiu. No lugar da cabeça, o inseto possuía uma pequena cabeça humana com as feições de Alexanus. Debaixo dela, pequenos ombros que se ligavam a bracinhos longos e finos terminando em pinças como as de uma lagosta. A vespa de ectoplasma, invisível a olhos normais, aproximou-se do rapaz batendo as asas. Maurícius terminava de cortar os últimos fios que ficavam flutuando no ar como algas fariam lentamente sob o balanço do mar.
Maurícius levou o corpo espiritual do rapaz, agora entorpecido e em delírios até uma das mesas depositando-o. A mesa, fora do plano material, era equipada com uma espécie de colchão feito de ectoplasma que acomodou o rapaz suavemente.
Maurícius voltou para o corpo físico do rapaz, mas fraquejou. Levou a mão direita ao peito. Concentrou-se fazendo seu corpo respirar fundo. Precisava ter forças para continuar. Retornou mais uma vez ao espírito do rapaz e cravou-lhe as unhas na garganta e no peito sugando dali a energia de que precisava. Este reagiu assumindo a posição fetal e em seguida convertendo-se numa espécie de ovóide.
O espectro do rei saltou para cima do corpo do rapaz e flutuou acima deste para combinar sua posição. Aproximou-se até ficar poucos centímetros acima.
A vespa de Alexanus começou seu trabalho. Com uma das pinças furava o corpo espiritual de Maurícius e puxava tendões e com a outra tomava os fios que flutuavam a partir do corpo do escudeiro conectando-os. Uma costura delicada de centenas de nervos espirituais que levou cerca de uma hora. Finalmente, Maurícius conseguiu despertar dentro daquele novo corpo. Com tremendo esforço, conseguiu mexer debilmente os dedos das mãos e dos pés. Continuou exercitando-se até que conseguiu abrir os olhos voltando a ver a sala de teto baixo iluminada pelas luzes de Alexanus. Maurícius grunhiu ao tentar falar usando o corpo recém adquirido. A respiração tornou-se ofegante e o coração disparou. Os músculos estavam rijos e doloridos e Maurícius gritou sentindo dor. O grito se prolongou culminando com o corpo tomando impulso e se sentando sobre o tampo da mesa. O corpo suava e a face foi invadida por uma tonalidade rosada. Maurícius babava com a boca torta e disse - Shim! Ais ua ez essá uncionan...
Olhou para aquelas mãos jovens e vigorosas e fez os dedos abrirem e fecharem repetidas vezes. Limpou a baba que escorria no queixo com as costas da mão.
- A cada momento, eu sinto... - jogou os pés para fora da mesa e segurou firme nas bordas com ambas as mãos. Desceu lentamente sentindo os pés descalços tocando o chão frio. Depois de dar uns passos em falso apoiando-se na mesa, sentiu maior firmeza. Andou livremente e gargalhou alto.
- A cada tentativa o processo está se apurando, meu caro amigo! - disse o rei excitado ao ouvir a voz vigorosa do rapaz, diferente de sua própria voz rouca e débil.
Ele estava eufórico e deu pequenos saltos e correndo ao redor das mesas. Enquanto isso, Alexanus, preocupado, fez um rápido exame no corpo do velho rei.
- Veja isto! - Maurícius chamou. Agora estava andando sobre as mãos. Excitado, começou a vislumbrar a possibilidade de uma nova vida naquele corpo jovem. Colocou-se a gargalhar - Finalmente, meu amigo! Obtivemos sucesso! Sucesso completo!
O outro tinha o cenho cerrado numa expressão de preocupação. Em seguida, o rei levou a mão no peito sentindo uma dor tão profunda que o derrubou no chão. Se velho corpo estava falindo e estremeceu sobre a mesa. A iminente falência do velho corpo do rei fez com que seu espírito se desprendesse do outro corpo em instantes. O velho arquejou de dor de volta em seu corpo.
Alexanus deu-lhe um elixir curativo cuja metade lhe escapou pelos lados da boca. A quantidade ingerida foi suficiente para estabilizar a crise. Maurícius tossiu se contorcendo.
- Maldição - disse com os dentes cerrados - Maldição!
O mago encarou perplexo a transformação de expressão de fúria que fazia o rosto do rei estremecer dando lugar àquela velha máscara que, exceto pelo brilho nos olhos, escondia qualquer emoção.
- Estamos progredindo - controlou-se o rei - Sim, meu caro. Estamos progredindo!
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