CAPÍTULO 52

Kyle, Kiorina e Gorum precisavam superar uma imensidão de terras ermas e perigosas. Muita  história transcorreu naquela região. Civilizações que se ergueram e ruíram quase sem deixar rastros. Nos dias de hoje, eram extensas planícies verdejantes por onde passavam dúzias de rios e centenas de riachos, com regiões pantanosas aqui e ali. Uma terra de fauna abundante nas quais diversos povos viviam e cultivavam, cada qual à sua maneira, a cultura distante e perdida de seus antepassados. Em comum, havia um conjunto de mitos sobre a invasão de demônios e da guerra que devastou tantas cidades. Muitas afundaram, ou foram encobertas e se perderam. Era em uma dessas antigas ruínas que o trio buscou abrigo para passar a noite. Descansavam no alto de uma torre em ruínas e perigosamente inclinada.

Naquela época, ali fazia um calor infernal, mas no final da madrugada a temperatura caía ficando fresca e agradável, lembrando o clima de Lacoresh no outono. Kiorina foi a primeira a despertar sentindo uma terrível nostalgia. Primeiro, certificou-se de que o feitiço de alarme que havia preparando continuava ativo. Olhou para o céu plenamente estrelado e viu os campos banhados pelo crescente da imensa Teona, a lua amarelada e rachada que os silfos chamavam de Ukenojoer, ou Rainha da Noite. Era também a lua associada ao primeiro dia da semana, Ukenizu, ou dia dos reis, regentes, ou governantes. Aprendera muito sobre as luas com os silfos assim como na Alta Escola. Com eles também aprendeu algo sobre a influência das luas na realização de magia, sutilezas ignoradas pelos magos lacoreses e que Kiorina ainda tentava observar.

Imaginou por um instante se haveria alguma relação com aquela ruína, ou com a lua, o fato de ter tido sonhos tão doces. Como feiticeira, treinou algumas habilidades relativas aos sonhos, uma delas, era reter a imagem destes por mais tempo, antes que se desfizessem. Recordou que em seu sonho estava em Kamanesh. Muitas pessoas queridas estavam lá. Seus pais, Dora, Jeero e vários amigos da Alta Escola de Magia. Era um baile no castelo Duque e Kiorina era o par de Kyle, que estava muito elegante, num traje de gala dos cavaleiros ducais. Dançavam juntos, ou melhor, flutuavam juntos ao som da música. Ela estava feliz.

Agora, desperta e com aquelas imagens ainda vívidas, a tristeza cresceu. Engoliu o choro. Já havia chorado demais. Era melhor agradecer o fato de ter, ao menos, duas pessoas queridas consigo.   Amava Kyle, agora mais do que nunca. Entretanto, desde seu encontro com o Oráculo as coisas ficaram estranhas. A cada contato que Kyle procurava reiterar com o Oráculo, Kiorina observava que a força vital dele diminua. Se pudesse, o impediria de continuar com aquela loucura, mas no fim, tudo poderia depender daquilo. Haviam passado por muita coisa para chegar até ali. Não era momento de recuar, mas sim, de avançar.

Kyle dormia pacificamente e Gorum emitia seus roncos graves e ritmados. Aquele seria um bom momento para praticar alguns feitiços. Durante meses, ficaram na Ilha de Shind sob o acolhimento do pai de Mishtra, Melgosh. Na ocasião, o velho silfo Zoros demonstrou uma grande quantidade e variedade de feitiços. Kiorina concentrou seu aprendizado em magias elementais da água, mas também foi instruída sobre uma dezena de outros feitiços úteis. A jovem prendeu os cabelos num coque rápido e atirou-se da torre inclinada usando um feitiço de pequena levitação que evitou que se esborrachasse e quebrasse alguns ossos. Kiorina pensava nos povos perigosos que poderiam encontrar no caminho até o ponto de encontro na cidade de Tonuak. Foram advertidos contra os Racine e os Igoole. Os primeiros viviam ao norte e eram conhecidos como caçadores hábeis e como sendo muito intolerantes com intrusos em seu território.

Kiorina vinha praticando nestes últimos dias o olhar de feiticeira. Escutava as palavras de Zoros em sua mente, "É um olhar que pode tomar muitas formas. O importante é encontramos o veículo adequado e entrar em sintonia. Pedras, plantas, animais e até seres inteligentes podem tornar-se veículos para este fim".

Ela havia experimentado diversos veículos, mas tinha obtido pouco sucesso com plantas ou animais. Procurou um local adequado e ajoelhou-se. Cavou o solo até sentir a terra úmida entre seus dedos. Tocou a testa no chão e iniciou o feitiço. O efeito começou como uma pulsação fraca e lenta.  O ritmo era o mesmo, mas a intensidade das batidas crescia. Era a reflexão de toda a vida sobre o leito de terra. Quando Kiorina ergueu a cabeça assumindo uma postura felina, com as mãos enterradas no solo, seus olhos abriram-se envoltos num brilho amarelado e leitoso que escondia suas pupilas. Ela pode ver os contornos da ruína pesando incrivelmente sobre a terra compactada e esmagada que sustentava todo aquele peso. Abaixo da torre inclinada, atrás de si, sentia a pressão assumir uma linha mais dura, como os grilhões de ferro que lhe apertaram os pulsos e tornozelos quando esteve cativa de Shark, dos silfos do mar.

Mas não era nada daquilo que a jovem desejava vislumbrar. Do mesmo modo que foi capaz de localizar a presente ruína, alguns dias antes, queria enxergar além. Concentrou-se no caminho adiante de si, rumo ao sul. Havia um riacho não muito longe e depois dele, visualizou uma pequena manada. Os passos eram leves. Não fosse um grupo, teria passado despercebido. Seriam leões, ou um outro grupo de predadores? Os passos acariciavam o solo, mas de modo desigual. Então ela compreendeu que não eram animais, mas sim homens! Cerca de quinze e vinham em direção à ruína. Seria aquele um lugar sagrado pala eles? Vinham averiguar, ou seria apenas uma coincidência? Chegariam ali em poucas horas, avaliou.

Kiorina suspendeu o feitiço e só então percebeu que seu corpo estava todo suado. Aquilo demandava muito esforço. Levantou-se e caminhou lentamente de volta à torre. Convocou outro feitiço deslocando o peso para fora de seu corpo, e assim, escalou a torre com facilidade.

Ajoelhou-se ao lado de Kyle e acariciou seus cabelos para despertá-lo. Este se virou e ela notou algo sob sua camisa emitindo um brilho esmaecido. "O que será isto?" pensou intrigada enquanto, com cuidado afrouxou o encordoamento que unia as metades da camisa na altura do peito. Viu um cordão e um pingente parecido com uma semente. Naquele momento, Kyle despertou num sobressalto levando a mão ao peito e empurrando Kiorina para trás. Ela caiu sentada e o cavaleiro levou alguns instantes para compreender o que se passava.

– O que houve?

Kiorina sentiu um misto de vergonha e raiva e explodiu – O que é isso dentro de sua camisa?

– Do que você está falando? – Kyle sentiu a pulsação e calor em seu peito.

Kiorina ergueu-se sobre Kyle e apontou – Ora, isto!

– Isto? É apenas um amuleto. Nada demais...

– É? E por que andou escondendo este amuleto?

Kyle espreguiçou-se e retrucou calmamente – Tenha paciência, Kina, não estou escondendo nada. – deu alguns passos até a beirada da torre e disse – Com licença. – Começou a urinar lá embaixo.

Se houvesse bastante luz, o rosto de Kiorina estaria evidentemente vermelho. Ela mordeu os lábios e deixou aquela briga para depois. – Vamos Kyle, temos que acordar o Gorum e sair daqui o quanto antes. Há um grupo de homens vindo para cá. Acho que podem ser da tribo Racine, contra quem Azus nos advertiu.

Aquilo colocou o rapaz em estado de alerta – Onde estão?

– Não muito longe. Talvez cheguem aqui no alvorecer. Vamos!

Kyle tomou água do odre e jogou um pouco no rosto de Gorum. Era o jeito mais eficaz de acordá-lo rapidamente.

– Ora seu! – Gorum socou o ar – Mas o que? – e ficou sentado.

– Os Racine. – Kyle disse – Vamos sair já daqui.

– Onde?

– Os vi através de um feitiço – explicou Kiorina – Ainda temos uma hora.

– Quantos? – Gorum já reunia suas coisas.

– Uns doze, ou quinze.

– Estamos perdidos!

– Por que isso tudo? – Kyle estranhou a reação de Gorum.

– Não prestou atenção em nada que a lagartixa azul nos disse? Se forem mesmo os Racine, dificilmente escaparemos deles. São exímios caçadores e rastreadores.

– Não pode fazer algo sobre isto? – Kyle pediu a Kiorina.

– Ai não sei... Não entendo de rastreamento, não saberia o que fazer para despistá-los. Talvez  consigamos fazer isso num curso d'água.

– Talvez funcione – ponderou Gorum. – Vamos!

***

Partiram numa marcha forçada afastando-se da ruína e depois, sob orientação de Kiorina chegaram até o riacho. A água fresca foi muito boa para combater o calor e descansar do passo acelerado. Caminharam na parte rasa deste por algumas horas na esperança de despistar os caçadores. Ficaram em silêncio, como já era costume, a maior parte do tempo.

Kyle sentia o amuleto pulsando. Na realidade, tratava-se da fada que se convertera em algo semelhante a um casulo. Depois que ela veio do nexo, no confronto contra o feiticeiro Lévoro, recuperou suas energias e permanecia quase todo tempo invisível, mas sempre por perto de Kyle lhe oferecendo conselhos. Ela havia pedido para manter sua existência em segredo. Ele falou dela apenas para Archibald, depois da passagem deles em Dacs, uma terra estéril em magia. Lá ela regrediu para aquela forma. Depois de tanto tempo, Kyle acreditava que ela estava morta. Ele sabia que estava de algum modo ligado àquela fada, Lila. Noran havia revelado que alguém, de nome Lila o havia salvado de Rodevarsh em Lacoresh. E depois disso, no confronto com Lévoro, Kyle pediu socorro a ela. Apesar de perguntar diversas vezes a ela se sabia de algo, ela nunca soube dizer. Mas ele suspeitava que ela teria perdido suas memórias quando veio para esta dimensão através do nexo.

Agora, ele sentia que devia seguir certa direção.

– Sei o que estou dizendo – argumentou contra Kiorina. – O oráculo me mostrou. – mentiu – Devemos ir para lá. – Apontou novamente.

Kiorina irritadíssima pediu auxílio a Gorum – Explica para ele que estaríamos saindo totalmente do caminho que Azuz nos indicou.

– Se ele disse que o oráculo mostrou um novo caminho... – e deu com os ombros já indo na direção apontada. Kyle o seguiu e Kiorina ficou por uns instantes antes de segui-los contrariada e batendo os pés.

No final do dia, Kiorina voltou a convocar o olhar de feiticeira. Depois revelou. – Eles acharam nosso rastro! Estão vindo.

– A que distância? – indagou Gorum.

– Não dá para saber ao certo... Mas devem estar a algumas horas de distância.

– O jeito é continuarmos sem dormir, concordam? – indagou Kyle.

O cansaço foi tomando parte do grupo. Depois de três dias em marcha forçada estavam exauridos. Os Racine eram persistentes e Kiorina temia que pudessem alcançá-los a qualquer momento. Só um milagre poderia salvá-los.

Kyle parou e disse – Escutem!

Aquela parada fez com que o dardo voasse por cima da cabeça deles. Zuniu, errando Gorum  por muito pouco.

Olharam para trás e viram as silhuetas de uma dúzia dos caçadores surgir por entre a vegetação. Preparavam-se para lançar mais dardos.

– Corram! – gritou Gorum.

A perseguição não durou muito tempo e o milagre de que precisavam saltou para diante deles. Os três caíram numa vala, ou melhor, um barranco que não parecia estar ali no momento anterior. Rolaram no barranco de grama baixinha e aparada. Algo que não haviam encontrado até então. Quando pararam, uns bons vinte metros abaixo, puderam se levantar sem nenhum ferimento ou contusão aparente. Em desespero, olharam para trás, de onde esperavam surgir os caçadores a qualquer momento. Mas eles não apareceram.

Kiorina sentiu o corpo formigando e entrou num estado de profundo relaxamento.

– Está tudo bem. – ela disse – estamos a salvo.

– Como assim? – indagou Gorum.

– Não sei explicar. Mas acho que cruzamos algum tipo de portal. Esse lugar está saturado com energia mágica. Nunca senti algo assim...

Kyle olhou para o outro lado e seu queixo caiu em profunda admiração que a visão lhe causou. – Ela tem razão. Olhem! – apontou para a imensa árvore que estava diante deles cerca de um quilômetro adiante.

– Não tem como não termos visto isso antes. – Concordou Gorum – Só pode ser alguma magia.

Kiorina soube através de uma forte intuição que tomava conta de si – Eles não entrarão aqui. Estamos seguros. Ninguém com intenções agressivas pode entrar neste lugar.

– Como você sabe disso? – indagou Kyle desconfiado.

Gorum retrucou – Ela é uma feiticeira, seu tolo. Já devia ter se acostumado com essas coisas...

Kyle deu com os ombros.

Kiorina admirou a visão e deixou escapar – Aquela árvore deve ser cem vezes mais alta do que a árvore mais alta que eu já vi.

– É... concordou Gorum. E olhe o tamanho da copa. É imensa...

– Vejam – Kyle apontou para baixo – Há uma espécie de cidade entre as raízes... Mas que lugar é esse afinal?

Kiorina deu com os ombros animada. Estava completamente descansada, como se os últimos três dias em marcha forçada nunca tivessem acontecido. – Vamos descobrir! – disse sorridente e saltitou em direção à árvore colossal.

Kyle e Gorum pararam por alguns instantes, ambos apoiando as mãos nos joelhos.

– Mas que preparo físico! – Kyle comentou.

– Garoto, sabe que não devia ficar fazendo essas observações maliciosas...

Kyle acertou-lhe um soco na barriga – Gorum! Não falava disso. – Mas corou imediatamente, pois começou a reparar nas formas de Kiorina. Era uma mulher completa e cheia de curvas.

Ela virou para trás e sorriu encarando Kyle – Ué? Vocês vão ficar aí parados?

Kyle sorriu de volta e tomou fôlego para prosseguir. As pernas latejavam, mas certamente poderia caminhar sem maiores problemas.

– Vai que estou te vendo, Garoto. Já alcanço vocês. – Gorum suspirou e sentou-se para descansar.

Kyle alcançou Kiorina hipnotizado por sua beleza e não deu atenção ao fato de que o amuleto em seu peito estava mais quente e pulsava. ELe puxou a moça para si e deu-lhe um beijo demorado.

Gorum ficou assistindo e gostando do que via. Tanto o casal apaixonado, como a magnífica paisagem. Um lugar tão bonito que não se comparava a visão mais bela que já teve em sonhos. Por um instante pensou "Será que morremos?" E em seguida soube que não "Se estivesse morto não estaria com essa puta dor nas costas! Estou é velho, isso sim".

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