CAPÍTULO 5
Era uma espécie de sonho extremamente real. Um sonho vívido como nunca antes havia experimentado. As imagens, sons e demais sinais captados por seus sentidos, incluindo o tato, eram tão perfeitas quanto a realidade. Mas como poderia ser real? Sabia que estava no navio de An Lepard, em seu primeiro dia de viagem. Como poderia então estar naquela floresta? Logo, um aspecto fez com que Kyle abandonasse seus pensamentos a respeito do que via. Veio uma imensa dificuldade de concentrar-se e pensar, até mesmo de controlar suas ações, seus passos e seu olhar. Resistir parecia inútil e ao mesmo tempo não parecia haver motivos para tal procedimento. Seu último pensamento foi: "Vou embarcar nisso e ver o que acontece".
A floresta era grandiosa e diferente de tudo que já havia visto. Ainda assim, lhe parecia um tanto familiar, como se na realidade ali fosse seu lar. Por entre sombras e folhas, confundiam-se formas. Troncos escuros que se misturavam ao chão coberto de folhas e frutos secos e em decomposição. Entretanto, não havia cheiro desagradável. Apenas o ruído de cigarras e pássaros colorindo as tonalidades sombrias daquele ponto da floresta. Onde os raios do sol conseguiam chegar formavam-se ilhas de verde brilhante nos galhos e folhas e pequena vegetação rasteira.
Após andar por um estreito caminho de pedras, avistou uma construção antiga no meio de uma clareira. Era uma construção incomum e não conseguiu perceber do que se tratava. Era como um farol fora das proximidades marítimas. O sol estava forte e delineava sombras nos tijolos velhos que variavam seus tons de vermelho gasto, dos claros aos escuros. Havia quase uma dezena de entradas construídas em arcos. Baixas demais para um ser humano adulto passar. Concluiu que era uma obra de uma raça de menor estatura. Na ponta da construção havia uma grande torre, sem portas ou janelas, na forma de um obelisco de ponta romba.
Aproximou-se e ficou de frente para uma das entradas. Posicionou-se sob a sombra de uma árvore e o calor foi aliviado. Observou que a entrada escondia um interior escuro, sem piso definido e coberto com cascalho. Ao contrário do que imaginava, a entrada era de sua altura e formava uma espécie de corredor de tijolos com o teto em arco conduzindo ao seu interior.
Não escutou nada ali e resolveu entrar. Seus passos fizeram barulho no cascalho e teve que se curvar. Escutou barulho de passos e saiu. O que poderia ser? Chamou, mas ninguém respondeu. Resolveu entrar novamente. Ao entrar, sentiu correr um vento frio. Estava fresco e agradável no interior. Observou o local que era um corredor comprido com o teto curvo. A luz do dia penetrava por uma dezena de portais semelhantes ao que tinha atravessado formando desenhos de sobra e luz ao longo do chão.
Havia pequenos buracos no topo e imaginou que se fosse um pouco menor, sua cabeça poderia passar. Deles descia a luz do dia e dentro de alguns deles havia um emaranhado de teias de aranha. O teto era velho com muitas rachaduras e falhas nos tijolos. Viu um pequeno utensílio de madeira pregado na parede. Era madeira nova e parecia ser uma colher, salvo que a parte inferior era de madeira chata. Havia folhas secas e pequenas pedras em cima desta. Parecia estar lá há algum tempo. Tocou a folha que bastante seca e quebradiça esfarelou-se emitindo som característico.
Avançou pelo túnel escutando seus próprios passos e constatou que de alguns arcos saíam pequenas folhas verdes. Havia mais alguns utensílios de madeira pendurados e concluiu que deviam servir para suportar velas.
Encarou um grande tronco retorcido perto do final do corredor. Teve a ligeira impressão de tê-lo visto se movendo. Ficou alerta, mas não ocorrendo mais nada, resolveu sair do local.
Ao sair, escutou os sons da floresta novamente. Não havia percebido, mas de dentro da construção não conseguia escutar nenhum ruído externo. Subiu até chegar próximo à torre. Devia ter pelos menos cinco vezes a sua altura e seu topo estava um pouco despedaçado. Rodeou a torre e viu que em um de seus lados havia uma fenda que levava ao subsolo onde estivera há pouco.
Sentou-se no chão de pedras que contornava a torre e retirou de uma bolsa de couro um grosso maço de papeis. Foi um momento de confusão, pois ao mesmo tempo em que escrevia uma série de símbolos no papel, não conseguia entender seu significado. A consciência, mesmo estando de certa forma suprimida naquele estranho sonho, em um lampejo constatou: "Estou escrevendo em sílfico!"
Pouco depois ouviu a própria voz no sonho comentar que faria as anotações depois. O sol forte atrapalhava sua concentração. Segurou a pena por alguns instantes e o sol projetou sua sombra sobre o chão. Naquele contexto veio a ideia de que estaria atrasado. Viu-se levantando muito apressado e correndo em direção à estrada de pedra que percorrera antes de chegar naquelas ruínas.
Corria pelo terreno acidentado da floresta de forma perigosa. Chegou a ficar com medo de cair várias vezes. Mas, de alguma forma, parecia haver um instinto, ou mesmo uma agilidade sobrenatural que impedia os tropeços e quedas de ocorrerem. Manteve equilíbrio mesmo ao atravessar um pequeno riacho pisando nas rochas de aparência escorregadia depositadas no leito. Outro paradoxo sentido durante a corrida foi o fato de sentir medo ao mesmo tempo em que cantarolava e saltava serelepe. Algo nitidamente incompatível com a natureza mais centrada de Kyle.
Ao fim da corrida, avistou um belo cavalo de pelo amarelado e crina laranja escura. O equino era esguio e não estava selado. Havia apenas uma fina manta de um azul vibrante sobre o lombo do animal. Terminando a corrida, no mesmo ritmo animado, saltou para cima do cavalo que, com naturalidade, seguiu seus comandos disparando por entre as frondosas árvores da floresta.
A cavalgada durou um bom tempo. Durante este período contemplava a natureza ao seu redor. Nada do que via lembrava Lacoresh, ou mesmo os arquipélagos pelos quais passara no último ano. Estava certo de que desconhecia todos aqueles lugares. Mas essa certeza entrava em conflito direto com a sensação de intensa familiaridade com tudo que ocorria.
De súbito, o cavalo empinou muito assustado. Mesmo com a agilidade aumentada que experimentava naquela situação, não conseguiu evitar a queda. Sentiu o braço doer de forma intensa, uma dor verdadeira que nunca fora capaz de experimentar num sonho.
Acordou com o coração acelerado percebendo o interior da cabine ainda escura. O primeiro som que pode identificar além do habitual ranger de madeiras e o sons das águas foi o forte ronco de Gorum. Sentou-se na cama, analisando o braço ainda com forte memória da dor sentida após cair do cavalo. Conforme sua visão se habituou ao escuro, percebeu que a cama de Archibald estava vazia.
Aquele sonho havia sido muito perturbador. Ficou sem sono, decidiu sair da cabine e andar pelo convés principal. O vento era intenso e frio do lado de fora. Talvez já fosse alta madrugada. Kyle não era bom em acompanhar o tempo através da observação de estrelas, luas, etc.
– Hei, Kyle! – chamou Archibald. – Problemas para dormir?
O jovem aproximou-se e assentou-se próximo do amigo. – É o que parece.
– Algo errado? – indagou o ex-monge analisando a expressão preocupada do amigo.
– Tive um sonho muito estranho.
– Me conte – pediu Archibald.
– Não consigo me lembrar dos detalhes. Sei que no final, caí de um cavalo e machuquei o braço. Antes disso, lembro-me vagamente de estar numa floresta. Estava sozinho e fazia algo, mas não sei bem o que.
– Me parece normal. É mesmo o sonho que o incomoda?
– Não sei. Sei apenas que esse sonho não foi normal, ao contrário, sequer parecia um sonho. Era como se eu estivesse lá, todos os detalhes eram muito reais. Muito mesmo! Lembro-me do canto de um pássaro, cheiros, temperatura...
– Entendo, os detalhes eram reais, mas você não está conseguindo entender de onde veio tudo isso, estou certo?
– Acho que sim.
– Você pode ter tido uma experiência ligada ao mundo invisível.
– Talvez, mas acho que não. Aprendi um pouco sobre isso com Noran e me pareceu bem diferente. Os vislumbres que tive do plano invisível eram pouco coloridos e muitos detalhes eram escuros ou mesmo embaçados.
– Entendo – Archibald baixou os olhos.
– E você? Também andou tendo sonhos perturbadores?
– Nada disso. Durante a noite consigo o espaço e calma para meditar. Tenho pensado muito em tudo que já enfrentamos e no que ainda nos aguarda.
– E tem predominado bons ou maus pensamentos?
– Não vejo as coisas deste jeito. São questões de fé. Depois de tudo que vi, tudo por que passamos, não consigo mais ter fé na Real Santa Igreja, nem mesmo fé nos ensinamentos dos monges Naomir. Descobri que mesmo sem a fé nos Deuses encontro forças para evocar os sagrados ofícios.
– Você diz, coisas como a magia.
– Algo assim. Vejo que o que aprendemos no monastério é um método diferente de despertar e direcionar as energias existentes para alcançar um propósito. Venho pensando que isto se dá da mesma forma que Kiorina e outros magos produzem os efeitos da chamada magia.
– Então você constatou que não precisa da fé para produzir os efeitos.
– A fé e necessária até mesmo para dar um simples passo. Mas o que percebo que a tal fé proferida e defendida pelos clérigos seria dispensável.
– Entendo. Deve ser como o que aprendi com Noran. Aquela história de Jii...
– Sabe Kyle, às vezes, não consigo deixar de pensar que não fosse nossa ida a Tisamir, Noran ainda estaria por lá, vivo e ajudando as pessoas.
– Ele escolheu o caminho a trilhar, não nós. Fiquei abalado com o encontro que tivemos ontem com aquele jovem. Especialmente quanto ao que ele disse sobre Noran. Fico pensando se esse sonho que tive tem relação com meu contato com o tal Renè.
– Não é uma má hipótese. Havia alguma força mística muito forte nele. Mas para mim o mais perturbador foi saber da morte de Modevarsh e as implicações disso.
– Que nós somos responsáveis por tomar ações depois que questionarmos o oráculo?
– Exatamente isso. Sentia antes que nossa missão era como a tarefa de um mensageiro, mas agora, vejo que talvez sejamos nós os responsáveis por reverter a situação de Lacoresh. Talvez nós mesmos tenhamos que tomar as ações para neutralizar os necromantes. Isso me assusta.
Kyle deu um longo suspiro. – Sinto-me um tanto impotente. O que nós podemos fazer contra um reino? Contra todo o poderio daqueles malditos bruxos?
– Puxa! Quer algo melhor para acabar de tirar o sono!?
Kyle sorriu para o amigo. Depois de tanto, sentia-se feliz por estar ao lado de um verdadeiro amigo para quem poderia confiar sua vida.
Eles riram e conversaram muito mais até o alvorecer. Relembraram histórias, lugares, festas e costumes de sua terra natal. Trocaram dúvidas e inquietações estreitando ainda mais os fortes laços de amizade que mantinham.
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